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sábado, 31 de janeiro de 2015
Raízes do sangue e do ódio
Por Juremir Machado da Silva
Judeu, historiador, professor da Universidade de Tel Aviv, autor de vários best-sellers, entre os quais “A invenção do povo judeu” e “Como deixei de ser judeu”, Shlomo Sand, 68 anos, é um intelectual polêmico que não teme enfrentar as posições dominantes nem a ira de alguns dos seus colegas de profissão. De Nice, na França, onde passava alguns dias ao sol e escrevendo um livro sobre a relação da história com a ciência, ele concedeu, por telefone, esta entrevista ao Caderno de Sábado. Como sempre, foi implacável.
Passado o impacto da tragédia de Charlie Hebdo, Sand faz o balanço da relação do Ocidente com a religião islâmica e do conflito israelo-palestino,
Caderno de Sábado – Por que, após os atentados de Paris, o senhor declarou, contra boa parte da intelectualidade, não ser Charlie?
Shlomo Sand – Logo depois dos atentados de Paris, escrevi um texto intitulado “Eu sou Charlie Chaplin”. Expus a minha recusa ao slogan “eu sou Charlie”, que reuniu pessoas solidárias aos cartunistas de Charlie Hebdo assassinados por extremistas. O crime cometido não tem justificativa nem desculpa. Dito isso, eu fiz a seguinte pergunta: devo me identificar com as vítimas e ser Charlie porque os mortos representavam a encarnação da liberdade de expressão? Algumas das caricaturas de Charlie Hebdo eram de mau gosto. Apenas algumas delas me faziam rir. Havia na maioria das charges publicadas pelo jornal uma raiva manipuladora com o objetivo de conquistar mais leitores. A caricatura de Maomé com um turbante-bomba publicada por um jornal dinamarquês em 2006 já me havia parecido uma pura provocação. Algo como relacionar judeu com dinheiro. Tudo isso só tem servido para associar islamismo e terrorismo. Incita ao ódio, dissemina preconceito, desrespeita a fé do outro. Sendo assim, não sou Charlie.
Caderno de Sábado – O que deve prevalecer, a liberdade de expressão, de sátira, de humor, ou o respeito às crenças e às diferenças?
Sand – O limite da liberdade de expressão é a difusão do racismo. Duvido que Charlie Hebdo se atrevesse, como escrevi no meu artigo logo depois dos fatos, a publicar uma caricatura do profeta Moisés de quipá com ar de agiota numa esquina. Concordo com a proibição, na França, a que o humorista e polemista Dieudonné faça piadas com o holocausto, mas não posso admitir que ele seja agredido. Se fosse, porém, eu não sairia com um cartaz dizendo “eu sou Dieudonné”. O limite ao humor é a incitação ao ódio, ao racismo e ao preconceito. Uma coisa é satirizar uma religião dominadora e opressiva. Outra, atacar a crença de grupos dominados e humilhados. O Ocidente está acostumado a apoiar as piores opressões no Oriente Médio. Dito isso, precisamos lutar contra o extremismo de organizações como o Estado Islâmico, sem esquecer que europeus deixaram esse crescimento acontecer bancando, muitas vezes, os bombeiros incendiários.
Caderno de Sábado – O Ocidente tem então responsabilidade no que aconteceu como sustentam alguns intelectuais de esquerda?
Sand – É disso que estou falando. O Ocidente não faz o papel de Voltaire no Oriente Médio ou no mundo islâmico. É preciso não ridicularizar grosseiramente o islamismo na Europa onde vivem milhões de muçulmanos em condições precárias, realizando os trabalhos mais insalubres. Por tudo isso, não sou Charlie. Minha simpatia fica com os muçulmanos que vivem em guetos e poderão ser vítimas do ódio desencadeado pelos atentados. Minha referência é outro Charlie, aquele que nunca zombou de pobres e humildes, Charlie Chaplin. É fundamental lutar contra o terrorismo, que existe e produz devastação, tomando-se o cuidado de não estimular racismo e ódio. Além disso, a Europa não pode esquecer seu passado colonialista recente e os rastros que isso deixou. A Europa acompanhou os Estados Unidos ajudando a criar o caos no Iraque e na região. Com apoio de aliados “esclarecidos”, grandes defensores da “liberdade de expressão”, como os sauditas, ajuda a preservar fronteiras ilógicas estabelecidas por interesses imperialistas. A minha conclusão é simples: o Ocidente não é a vítima ingênua e inocente como gosta de se apresentar. A França é responsável pela situação atual do Mali. Precisamos dar uma basta à hipocrisia que dá aos ocidentais sempre o bom papel. Intelectuais e escritores desempenham um papel nisso.
Caderno de Sábado – Livros como o romance de Michel Houellebecq, “Submissão”, que trata da ascensão ao poder na França de um presidente muçulmano, em 2022, incitam o medo do islamismo?
Sand – Michel Houellebecq, mesmo que não seja a sua intenção, contribui para que as pessoas sintam medo do islamismo. Ninguém pode escrever um livro tendo como tema uma ameaça de judeização do mundo, mas o autor de um romance sobre uma ameaça de islamização ganha todos os espaços de mídia. A questão é: como lutar contra o terrorismo? A resposta, como venho mostrando nas minhas reflexões sobre o conflito israelo-palestino, está em entender as origens do conflito. Sem desconstruir os mitos não se chega ao cerne dos problemas maiores.
Caderno de Sábado – Como viu a participação do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu nas manifestações de Paris depois do atentado contra a mercearia judaica e contra Charlie Hebdo?
Sand – Terrível. Netanyahu nem sequer compreende o fato de que judeus possam viver em outros países. Na cabeça dele, todo judeu fora de Israel está em situação temporária fora de casa e deveria voltar para o seu lugar. Ele não entende o conceito de cidadão e de cidadania.
Caderno de Sábado – Um dos assassinos dos atentados de Paris, o que invadiu a mercearia de produtos judaicos, fez menção à questão da Palestina. O senhor é um estudioso das relações entre judeus e palestinos. Vê uma saída para esse conflito que parece sem fim?
Sand – Não. Não vejo saída. Seria preciso uma forte pressão internacional para salvar Israel de si mesmo. Essa pressão teria de vir dos Estados Unidos, mas isso não acontecerá, pois Barack Obama não é presidente que se poderia imaginar. Ele cedeu rapidamente ao lobby sionista e aos interesses da indústria armamentista. Israel não percebe as próprias contradições. Desde 1947, instalou um regime de apartheid que não para de se acentuar. Temo pelo futuro de Israel. As reações e revoltas poderão se ampliar atingido até a Galileia.
Caderno de Sábado – Não vê Israel como uma verdadeira democracia?
Sand – Claro que não. Israel é uma etnocracia, o Estado dos judeus, o que se baseia numa visão etnocêntrica. Uma democracia é de todos os seus cidadãos independentemente das suas crenças ou “raças”. As medidas recentes com o objetivo de enfatizar o caráter judaico do Estado de Israel enfatizam esse elemento inaceitável de separação. Israel e Líbano são dois países com elementos liberais e democráticos, mas Israel não pode ser visto como uma verdadeira democracia na medida em que não aceita o fundamento universalista do regime democrático. Os assentamentos, que continuam, e a lógica empregada pelo sistema dominante alimentam esse apartheid que tem consequências cotidianas deploráveis para palestinos vivendo em condições precárias e insustentáveis. Qualquer um pode ver isso. Repito, só a pressão internacional poderá levar Israel a ser democrático. Quanto ao conflito, precisamos de dois Estados com base nas fronteiras de 1967. Fora disso, nada poderá funcionar mesmo.
Caderno de Sábado – Como superar a questão dos refugiados palestinos que gostariam de ter direito de retornar à terra de pais ou avós?
Sand – Temos de ver a situação com moderação. Todos os refugiados não podem voltar, pois isso significaria o fim de Israel. Mas precisamos fazer com que uma parte desses descendentes de palestinos possa voltar. O princípio é simples: em 1947, a terra onde está Israel era deles, dos palestinos, que foram expulsos de lá. Essa história de direito de dois mil à terra de Israel é uma bobagem. Ninguém tem esse tipo de direito. Ou todos os brasileiros de origem europeia deveriam sair do país e devolver o Brasil inteiro aos índios? Os Estados Unidos também deveriam ser evacuados? Não existe isso. Os judeus não são um povo, não são uma raça. Há judeus russos, poloneses, judeus saídos do Iêmen, de origens distintas. Só a religião é comum entre eles. Os brasileiros não são uma raça. Nem os judeus. Boa parte dos judeus de hoje não descende de ninguém que jamais tenha vivido na Palestina, mas de pessoas convertidas ao judaísmo em outros lugares.
Caderno de Sábado – E a lei de retorno para judeus?
Sand – Só devem poder ir viver em Israel judeus perseguidos. É um critério factível e sustentável moralmente. Os demais têm as suas nacionalidades e não são nem devem ser israelenses. Os fundamentos que justificam a existência de Israel são o holocausto e o fato consumado. Dado que Israel existe, precisa continuar existindo. Para isso, temos de conciliar israelenses e palestinos no mesmo espaço. Como a terra era dos palestinos e não se pode receber de volta todos os refugiados, cabe juntar dinheiro e indenizar todos os que foram despojados. Um mítico direito de dois mil anos atrás não pode se sobrepor ao direito de propriedade legítimo de 1947. Israel precisa assumir o seu papel na tragédia da população palestina.
Caderno de Sábado – Não acredita numa unidade genômica dos judeus?
Sand – De jeito nenhum. Essas pesquisas de DNA, essas pesquisas que falam de um DNA comum a todos os judeus, são uma empulhação. Tudo isso faz parte de um mito perigoso, o mito do povo judeu como raça.
Caderno de Sábado – Seus colegas o odeiam?
Sand – Historiadores apegados aos mitos sionistas me odeiam, mas meus livros são best-sellers em Israel. Estou escrevendo um livro sobre história e ciência para mostrar que história não é ciência. Ideologias, mitos e emoções permeiam boa parte dos relatos.
quarta-feira, 18 de janeiro de 2012
BBB: Triunfo da Chinelagem
Juremir Machado da Silva | juremir@correiodopovo.com.br
Até que ponto o gosto do outro deve ser respeitado? O primado da tolerância deve silenciar a crítica? Toda crítica frontal a um tipo de gosto é preconceito? A expulsão de um participante do BBB12, reality show da Rede Globo, por suspeita de estupro obriga a falar disso. Quem gosta do programa, escorado na ideia simples de que é brincadeira, lazer e um jogo inofensivo, detesta que se fale mal do baixo nível do que é exibido. O Brasil parece ser um dos poucos ou o único país com 12 edições do Big Brother em rede nacional aberta e em horário nobre. É inegável uma evolução no programa: a cada ano, fica pior. Como se sabe, a baixaria não tem piso nem teto. Mas estamos vivendo a era do consumidor mimado, triunfante, incriticável, infantilizado, agressivo, sempre com razão, que se regala espiando o gozo obsceno dos outros para satisfazer os seus mais baixos e selvagens instintos.
Não se trata de dar lições de moral ou de fazer pose de intelectual. A questão é outra: como chegamos a esse ponto? Houve um tempo em que o elitismo sufocava os gostos populares. A hipocrisia se impunha como uma máscara social. Hoje, os gostos ditos populares, fabricados pela chamada indústria cultural, asfixiam qualquer crítica como expressão de preconceito, o que esconde um preconceito maior, a ideia de que as tais camadas populares só se divertem com chinelagem. O que é mesmo chinelagem? Uma casa com um número de camas inferior ao de moradores para obrigá-los a dormir juntos em público. Um jogo em que o sexo deve ser o horizonte incontornável para delírio de milhões de voyeurs. Uma brincadeira que termina em suposto estupro, em Polícia nos domínios da televisão e em constrangimento nacional.
Chinelagem também é colocar fama e dinheiro absolutamente acima de tudo. Chinelagem é produzir um imaginário centrado na ideia de que o mais importante é se tornar celebridade e que esse objetivo justifica os maiores micos e o abandono de qualquer limite. O suposto estupro do BBB12 é a cara de certo Brasil, o Brasil que quer cometer infrações de trânsito sem ter de pagar multas, o Brasil onde parlamentares são os primeiros a não respeitar normas, o Brasil onde estádios de futebol são prioridades em relação a hospitais, o Brasil onde os muito ricos pagam menos impostos, o Brasil que só quer gozar, ainda que seja um gozo passageiro, escabroso, cínico e feio.
Está mais do que na hora de se atacar em várias frentes: acabar com preconceitos, respeitar diferenças, levar na boa brincadeiras de estação e, ao mesmo tempo, defender uma utopia: a possibilidade de diversão para todos que exija um pouquinho mais do cérebro de cada um, o que, há alguns anos, era chamado de criatividade e inteligência. O pior mesmo, enquanto a utopia não se realiza, é a hipótese radical que rola nas redes sociais: o suposto estupro do BBB12 seria apenas uma estratégia de marketing. Aí, claro, só resta gritar: que baita chinelagem! Esse pode ter sido o nosso 11 de Setembro. Ainda que, claro, tudo acabe na pizza do mal-entendido.
Fonte da imagem AQUI.
Até que ponto o gosto do outro deve ser respeitado? O primado da tolerância deve silenciar a crítica? Toda crítica frontal a um tipo de gosto é preconceito? A expulsão de um participante do BBB12, reality show da Rede Globo, por suspeita de estupro obriga a falar disso. Quem gosta do programa, escorado na ideia simples de que é brincadeira, lazer e um jogo inofensivo, detesta que se fale mal do baixo nível do que é exibido. O Brasil parece ser um dos poucos ou o único país com 12 edições do Big Brother em rede nacional aberta e em horário nobre. É inegável uma evolução no programa: a cada ano, fica pior. Como se sabe, a baixaria não tem piso nem teto. Mas estamos vivendo a era do consumidor mimado, triunfante, incriticável, infantilizado, agressivo, sempre com razão, que se regala espiando o gozo obsceno dos outros para satisfazer os seus mais baixos e selvagens instintos.
Não se trata de dar lições de moral ou de fazer pose de intelectual. A questão é outra: como chegamos a esse ponto? Houve um tempo em que o elitismo sufocava os gostos populares. A hipocrisia se impunha como uma máscara social. Hoje, os gostos ditos populares, fabricados pela chamada indústria cultural, asfixiam qualquer crítica como expressão de preconceito, o que esconde um preconceito maior, a ideia de que as tais camadas populares só se divertem com chinelagem. O que é mesmo chinelagem? Uma casa com um número de camas inferior ao de moradores para obrigá-los a dormir juntos em público. Um jogo em que o sexo deve ser o horizonte incontornável para delírio de milhões de voyeurs. Uma brincadeira que termina em suposto estupro, em Polícia nos domínios da televisão e em constrangimento nacional.
Chinelagem também é colocar fama e dinheiro absolutamente acima de tudo. Chinelagem é produzir um imaginário centrado na ideia de que o mais importante é se tornar celebridade e que esse objetivo justifica os maiores micos e o abandono de qualquer limite. O suposto estupro do BBB12 é a cara de certo Brasil, o Brasil que quer cometer infrações de trânsito sem ter de pagar multas, o Brasil onde parlamentares são os primeiros a não respeitar normas, o Brasil onde estádios de futebol são prioridades em relação a hospitais, o Brasil onde os muito ricos pagam menos impostos, o Brasil que só quer gozar, ainda que seja um gozo passageiro, escabroso, cínico e feio.
Está mais do que na hora de se atacar em várias frentes: acabar com preconceitos, respeitar diferenças, levar na boa brincadeiras de estação e, ao mesmo tempo, defender uma utopia: a possibilidade de diversão para todos que exija um pouquinho mais do cérebro de cada um, o que, há alguns anos, era chamado de criatividade e inteligência. O pior mesmo, enquanto a utopia não se realiza, é a hipótese radical que rola nas redes sociais: o suposto estupro do BBB12 seria apenas uma estratégia de marketing. Aí, claro, só resta gritar: que baita chinelagem! Esse pode ter sido o nosso 11 de Setembro. Ainda que, claro, tudo acabe na pizza do mal-entendido.
Fonte da imagem AQUI.
terça-feira, 3 de janeiro de 2012
Ferreira Gullar: Triste fim de um poeta
Juremir Machado da Silva, para CP
Ano-Novo, vida velha. Ferreira Gullar foi um baita poeta. O seu "Poema Sujo" é arte das grandes. Foi artista engajado, mas a sua poesia conseguia ir muito além dos clichês bem-intencionados dos revolucionários. Hoje, certamente para ganhar a vida ou sentir-se vivo, escreve "crônicas" na Folha de S.Paulo. O seu primeiro texto de 2012 mostra o grande poeta transformado num cronista de meia pataca destilando lugares-comuns conservadores para felicidade de leitores conformistas que se acham cult ou muito críticos. Um mingau azedo polvilhado de certezas sem amparo dos fatos. Por exemplo: "A América Latina vive hoje, por determinadas razões, a experiência do neopopulismo, que tem como principal protagonista o venezuelano Hugo Chávez. É um regime que se vale da desigualdade social para, com medidas assistencialistas, impor-se diante do povo como seu salvador. Lula seguiu o mesmo caminho, mas, como o Brasil é diferente, não conseguiu o terceiro mandato. A solução foi eleger Dilma para um mandato tampão". Como prova? Apenas o seu ranço.
Nada mais conservador do que um ex-comunista. É a síndrome do ex-fumante ou do ex-drogado, o cara que cria uma fundação para pregar a moral que não viveu. Para ser colunista nos jornalões brasileiros, é preciso, em geral, ser muito conservador ou transferir capital de um bolso para outro, usando a fama de uma atividade como base para o exercício de outra. A direita domina amplamente os chamados espaços de formação de opinião na imprensa. Há jovens que sobem logo ao trono, adotando ideias reacionárias e velhas que, enfim, conquistam novos prêmios, espaços e adulações repetindo fórmulas gastas pela mídia soberana. Ao não buscar um terceiro mandato, Lula frustrou os seus críticos, tirou-lhes - para adotar o atual tom clichê de Ferreira Gullar - o pão da boca e deixou-os por aí a jogar conversa fora. Aquele que foi um poeta maior, de imagens desconcertantes, agora termina suas análises mal-iluminadas com uma frase formalmente constrangedora: "Temo pelo que possa acontecer à Argentina, nas mãos de uma presidente embriagada pelo poder". Pobre poeta, embriagado pela sua mediocridade. Embriagado pela mediocridade do poder da mídia. Enquanto isso, na mesma Folha de S.Paulo, um cronista de ofício, Carlos Heitor Cony, depois de algumas temporadas sentenciosas, faz o caminho inverso: termina de envelhecer bem, disseminando um ceticismo levemente irônico de dar inveja a um Machado de Assis. Assim: "Que venham as tempestades da natureza, contra a qual pouco podemos. Quanto às tempestades provocadas pelos escândalos e pela corrupção da qual estamos fartos, não custa apelar para o fervor de nossas preces". Como cronista, Ferreira Gullar é um Neymar improvisado de lateral. Há quem confunda ter criticado o stalinismo, na época da queda do muro de Berlim e das ditaduras do Leste europeu, com louvação ao capitalismo sem regulação, esse que quebrou a Europa e parte da economia dos Estados Unidos. Pois é, o poeta Ferreira Gullar perdeu-se em corsos, comícios, discursos a granel. Vai ver que é a coincidência do nome com outro maranhense: José Ribamar.
Juremir Machado da Silva | juremir@correiodopovo.com.br
terça-feira, 1 de novembro de 2011
Os quatro maiores
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VERDE E AMARELO (fonte da imagem AQUI) |
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Não tem para ninguém. Os quatro maiores presidentes da história do Brasil são Getúlio, JK, Jango e Lula.
Avançamos de um nome, tratado, às vezes, pelo sobrenome, para uma sigla e finalmente chegamos aos apelidos. Sintomas de uma evolução da democracia. Deixamos para trás os sobrenomes pomposos da elite quatrocentona paulista. O povo saiu da planície para o Planalto. Lula está com câncer. Alguns abutres vibram sem muita discrição. Imaginam-no fora do jogo. Nunca poderão, no entanto, apagar a sua figura imensa da biografia do Brasil. Getúlio e Lula são os maiores personagens políticos de todos os tempos em nossa história. Se Cabral descobriu o Brasil, se D. Pedro I o tornou independente, se D. Pedro II deu-lhe algum ar de civilização, se a República caiu no colo de Deodoro da Fonseca, Getúlio reinventou o Brasil. Arrancou-o do atraso mais profundo e imobilizador. Empurrou-o para a sua industrialização.
Não conseguiu, contudo, nem na ditadura nem na democracia, arrumá-lo totalmente. As resistências foram poderosas. Enfrentou quatro inimigos: os "carcomidos" paulistas, derrotados de 1930, os comunistas, os integralistas e alguns dos seus aliados de primeira hora. JK entrou no jogo como um campeão da modernidade, do dinamismo e da renovação tecnológica. Deu ao Brasil uma nova capital e uma nova maneira de se ver. Melhorou a nossa autoestima e fez-nos crer que o futuro havia chegado. Sempre tivemos a impressão de viver no passado. Com JK, passamos a viver no futuro. Jango tentou completar Getúlio e ir além de JK. Quis criar um presente satisfatório para os brasileiros. As reformas de base eram necessidades vitais. Como disse Darci Ribeiro, Jango caiu pelos seus acertos, não pelos seus erros. É perigoso demais estar certo antes do tempo. Jango pagou caro.
Passaram-se 40 anos até um homem do povo ser eleito para retomar as iniciativas de Getúlio, JK e Jango. Conta-se com a ciência para curar Lula e mantê-lo firme e forte para os próximos combates. Aos que já o estão secando, salivando pelos cantos da boca, é preciso lembrar que hoje Dilma é o segundo chefe de Estado mais popular da América Latina. O Brasil só melhora realmente quando um presidente consegue distribuir renda, desconcentrar a riqueza e gerar inclusão. Um assessor de Tancredo Neves escreveu para ele discursar: "Esforçar-nos-emos para criar uma nação mais inclusiva". Tancredo traduziu: "Lutaremos por um país em que ninguém fique de fora". Jango tentou. JK nem tanto. Getúlio e Lula conseguiram. Não tudo. Mas um grande salto. Atenção aos corvos: isto não é um obituário. É um elogio em vida. Os grandes também adoecem. Felizmente a medicina evoluiu.
Dentro de 500 anos, os historiadores ainda falarão de Getúlio, o maior de todos, de JK, o modernista, de Jango, o injustiçado, e de Lula, o metalúrgico desqualificado como semianalfabeto que, com seu apelido povão, fez mais e melhor do que a maioria dos doutores tratados por nome e sobrenome sonoros. Ah, antes que alguém tenha essa ideia, não sou petista nem pedetista.
Juremir Machado da Silva | juremir@correiodopovo.com.br
quinta-feira, 22 de setembro de 2011
Complexos e perseguições
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Nesta sexta, os palestinos apresentarão à ONU o seu pedido de reconhecimento como Estado soberano. Estados Unidos e Israel não querem ouvir falar do assunto. Israel afirma que é inadmissível um procedimento assim, unilateral. Em artigo na Folha de S.Paulo, Ibrahim Alzeben, embaixador palestino no Brasil, entende que chegou o momento de a ONU "pôr fim a seis décadas de violência na Palestina histórica". Segundo ele, desde a Conferência de Madri, em 1991, deu-se a "quadruplicação do número de assentamentos e colonos em terras palestinas". Além disso, houve a "criação do muro da vergonha, assassinato de milhares de líderes e cidadãos, judaização de Jerusalém, capital ocupada do Estado da Palestina, bloqueio de Gaza e milhares de presos políticos". Um quadro terrível que parece pouco evoluir.
Rafael Eldad, embaixador de Israel no Brasil, garante que Israel não se opõe à criação de um Estado palestino: "O que Israel não vê de maneira positiva, além de ser perigosa para a região, é uma declaração prematura unilateral de um Estado palestino. Se buscam uma solução sem dialogar ou negociar, então com quem querem a paz?". O termo "prematuro" soa estranho aos ouvidos de boa parte dos países-membros da ONU. Alzeben põe a criança no colo das Nações Unidas: "É a ONU que deve agir, e agora, após 18 anos de negociações estéreis que consolidaram a ocupação israelense de nosso território". Eldad defende-se: "Israel, como único país no mundo ameaçado constante e abertamente em sua existência, tem a obrigação de tomar precauções para garantir a sua segurança e sua sobrevivência (...) Israel está ameaçado também pelo Irã, pelo Hamas, pelo Hezbollah e por tantos outros".
O jornalista brasileiro Clóvis Rossi, analista com distanciamento em relação ao conflito, afirma que "Israel revive o complexo de Masada, a fortaleza em que 960 judeus resistiram até a morte às hordas romanas, vitoriosas no ano 73. Complexo de Masada é um tema frequente no léxico político-diplomático de Israel, por designar a sensação de que o mundo inteiro está contra os judeus". Rossi cita Carlo Strenger, chefe do Departamento de Psicologia da Universidade de Tel Aviv, que, em texto no jornal Haaretz, aconselha Israel a sair do mito para uma "avaliação realista da realidade internacional". Rossi cita também Tzipi Livni, líder da oposição no parlamento, para quem o governo age como se "todos fossem contra nós" e "como se todo mundo fosse antissemita". Ela destaca o óbvio estrelado: Israel tem um grande amigo, os Estados Unidos da América. Mas o amigo estaria descrente nas promessas israelenses de aceitar dois Estados, "mas não faz nada para isso". Empurrar com a barriga já era.
As conclusões de Rossi são banalmente certeiras: "Nem os palestinos conseguirão jogar os judeus no mar, como muitos, de fato, gostariam, nem Israel vai conseguir empurrar os palestinos para a Jordânia". Resultado: só a ONU pode resolver a pendenga. Rossi dispara uma última boa citação, de Shlomo (outro) Ben Ami, ex-chanceler israelense: "Enquanto não terminar a ocupação, enquanto Israel não viver em fronteiras internacionalmente reconhecidas e os palestinos não recuperarem sua dignidade como nação, a existência do Estado judeu não estará assegurada". Dá para falar em demanda prematura?
Juremir Machado da Silva | juremir@correiodopovo.com.br
sexta-feira, 9 de setembro de 2011
SHLOMO SAND
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O profeta dos Hebreus, o Príncipe da Paz, conduz os Judeus para a Terra Prometida |
Dois textos de Juremir Machado da Silva:
Mito judaico
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Segundo Sand, a ideia de que os judeus são um povo, uma etnia, ou que descendem de Moisés, Davi e Salomão, é apenas uma tradição religiosa recuperada no século XIX e oficializada a partir de 1960: "Qualquer israelense sabe que o povo judeu existe desde a entrega da Torá no monte Sinai e se considera seu descendente direto e exclusivo. Todos estão convencidos de que os judeus saíram do Egito e fixaram-se na Terra Prometida, onde edificaram o glorioso reino de Davi e Salomão, posteriormente dividido entre Judeia e Israel. E ninguém ignora o fato de que esse povo conheceu o exílio em duas ocasiões: depois da destruição do Primeiro Templo, no século 6 a.C., e após o fim do Segundo Templo, em 70 d.C.".
Sand vira o jogo: "Novas descobertas arqueológicas contradizem a possibilidade de um grande êxodo no século XIII antes da nossa Era. Da mesma forma, Moisés não poderia ter feito os hebreus saírem do Egito, nem tê-los conduzido à ''terra prometida'' - pelo simples fato de que, naquela época, a região estava nas mãos dos próprios egípcios!". Tem mais: "Tampouco há sinal ou lembrança do suntuoso reinado de Davi e Salomão. As descobertas da década passada mostram a existência de dois pequenos reinos: Israel, o mais potente, e a Judeia, cujos habitantes não sofreram exílio no século 6 a.C. Apenas as elites políticas e intelectuais tiveram de se instalar na Babilônia". Uau! É punk.
Rui o mito? "E o exílio do ano 70 d.C. teria efetivamente acontecido? (...) os romanos nunca exilaram povo nenhum em toda a porção oriental do Mediterrâneo. Com exceção dos prisioneiros reduzidos à escravidão, os habitantes da Judeia continuaram a viver em suas terras mesmo após a destruição do Segundo Templo." Conclusões de Shlomo Sand: não houve êxodos nem exílios. Os judeus espalhados pelo mundo não descendem, na maioria, de pessoas que um dia tenham vivido na Palestina, mas de um povo de origem turca, os kházaros, convertido ao judaísmo no século VIII da nossa Era. Entre os descendentes dos judeus de 2 mil atrás há palestinos da Cisjordânia convertidos ao islamismo durante a ocupação muçulmana.
-x-
Entrevista com Shlomo Sand
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JMS - O senhor lutou na Guerra dos Seis Dias?
Sand - Claro. Fui soldado. Infelizmente ajudei a conquistar Jerusalém para Israel. Saí sem ferimentos.
JMS - O senhor nasceu num campo de refugiados, não de concentração, obviamente, na Áustria ou na Alemanha?
Sand - Na Áustria, onde só ficamos três semanas. Passamos imediatamente para um campo de refugiados na Alemanha.
JMS - Mantém suas ideias de que judeus atuais askenazes descendem dos khazares, um reino convertido ao judaísmo?
Sand - Claro que mantenho. É uma evidência. Só os ignorantes e os sionistas rejeitam isso. Em todos os sentidos, inclusive demográficos, os judeus do Leste Europeu não poderiam ter saído de onde se diz. A origem mítica judia é uma construção sionista do século XIX.
JMS - As críticas não o abalaram?
Sand - Tive mais elogios do que críticas. Grandes historiadores, como Tony Judt, Marcel Détienne e Eric Hobsbawm, me elogiaram. Edgar Morin me apoiou. Noam Chomsky gostou. Eles são muito mais importantes do que os sionistas que me atacaram. Críticas sionistas são comprometidas. Ganhei o Prix Aujourd''hui 2009, o mais importante prêmio atribuído pelos jornalistas franceses. Meu livro será traduzido em 21 línguas. Só os sionistas fanáticos é que o recusam. Só não conseguem refutá-lo.
JMS - Alguns dos seus críticos afirmam que as suas ideias servem aos antissemitas? Isso chega a incomodá-lo?
Sand - Dizer que isso é uma asneira é pouco. Não passa de uma chantagem primária. Não sou antissemita. Sou de origem judaica. Mas ser judeu não é pertencer a uma raça. Isso não existe. Quem pensa assim é racista. Um judeu brasileiro é, antes de tudo, um brasileiro de religião judaica. Quase nada há em comum entre um judeu polonês e um judeu brasileiro. Não existe uma cultura laica judia.
JMS - O fato de ser um especialista em história europeia deslegitima o seu trabalho sobre a história judaica?
Sand - Outra bobagem. Trabalho na Universidade de Tel Aviv, onde tem um departamento de história judaica e outro de história geral, que não se comunicam. Por eu ser especialista em história geral não poderia falar da história judaica? Só aos sionistas interessa essa ideia.
JMS - Para o senhor, como mostra em "A Invenção do Povo Judeu", o judaísmo é uma religião, não uma nação ou um povo. Significa que Israel não tem direito histórico ao seu território ou que deve dividi-lo com os palestinos?
Sand - Israel não tinha mais direito histórico algum sobre o atual território. Isso é loucura. Dois mil anos depois, com gente nascida por toda parte e de origens diferentes, que direito é esse? Estou escrevendo uma continuação de meu livro "O Mito da Terra de Israel". Por que um brasileiro de remota origem judaica tem direito a ir morar em Israel e um palestino nascido em Jerusalém não pode voltar para a sua terra natal? Israel deve existir por ser um fato consumado. Recuar seria uma tragédia. Devemos formar uma confederação de dois estados nacionais para resolver o problema e ir em frente. Viveremos em paz quando formos israelenses, não judeus.
Juremir Machado da Silva | juremir@correiodopovo.com.br
Correio do Povo
sexta-feira, 13 de maio de 2011
Elite paulistana
É notório que as elites de Londres, Nova Iorque, Berlim e Paris são atrasadas. Ninguém discute que os ricos dessas quatro cidades representam o pior do mau gosto mundial. É gente com hábitos esquisitos. Vivem de maneira estranha. Teriam muito a aprender com as elites paulistanas e da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Paris é dividida em 20 distritos. Cada distrito (arrondissement) tem a sua subprefeitura. O XVI distrito é o mais chique da cidade. Paris orgulha-se de não ter ponto algum a mais de 500 metros de uma estação de metrô. Na média, 150 metros. Boa parte dessa elite bizarra deixa o carro em casa e usa o transporte público. Os intelectuais famosos são figurinhas carimbadas no metrô. Cansei de encontrar Jacques Derrida, Jean Baudrillard, Edgar Morin e o amigo de FHC Alain Touraine em vagões das linhas 12, 4 e 1. Gente louca.
Também esbarrei com Catherine Deneuve e Jean-Luc Godard na linha 4, descendo na estação Saint-Sulpice. Deneuve devia estar entediada ou com saudades dos seus tempos de "A Bela da Tarde". As celebridades intelectuais estrangeiras também circulam nos metrôs de Paris. Encontrei Umberto Eco várias vezes em estações do Quartier Latin. Quando fiz o seu curso no Collège de France, pegava, na saída, muitas vezes o mesmo metrô que ele, que fazia um barulho danado, falando alto, gesticulando, discutindo futebol, semiótica e o escambau. Gente estranha. Famosos e ricos com práticas de seres normais. Eu, hein! Paris é uma cidade tão bizarra que a gente passa seis anos lá e sai sem saber onde fica a rodoviária central. Em contrapartida, conhece como a palma da mão seis estações ferroviárias. Que atraso. Uau!
É aquela coisa de museu, trem, ensino público e gratuito do jardim da infância à universidade. Um horror! Enquanto isso, em São Paulo, dominada por uma elite altiva, arrojada e vanguardista, que Getúlio Vargas tentou infrutiferamente civilizar em 1930, o metrô é rejeitado num arrondissement fashion. Moradores organizaram-se para convencer a prefeitura a não abrir uma estação de metrô em Higienópolis. Alegaram que isso traria "ocorrências indesejáveis". Por exemplo, pobres. A avançada elite paulistana prefere viadutos, túneis, "minhocões", elevadas e muito asfalto. A cidade fica mais bonita, o trânsito, como se sabe, anda muito mais rápido e as empreiteiras fazem bons negócios, o que financia campanhas políticas e melhora o nível de vida em Higienópolis. O metrô, portanto, seria um retrocesso.
As reclamações dos pacatos e elegantes moradores de Higienópolis foram ouvidas com todo respeito. O pleito foi atendido. O bairro não terá estação de metrô. Mais uma vitória do bom gosto, do senso prático e do estilo de vida visionário das nossas melhores elites. Há poucos dias, o tucano Alberto Goldman, ex-governador paulista, publicou um artigo para sustentar a inutilidade de um trem-bala entre Rio de Janeiro e São Paulo. Tem razão. Trens de grande velocidade são típicos de sociedades atrasadas como a França, a Inglaterra e o Japão. Se não me engano, Goldman, assim como FHC, mora em Higienópolis.
Juremir Machado da Silva | juremir@correiodopovo.com.br
Correio do Povo
sábado, 9 de abril de 2011
ONDE ESTÁ A EXTREMA DIREITA NO BRASIL (ALGUMAS PISTAS)
A persistência do ódio
Está tudo esclarecido: vivemos na confusão. Queremos serviços perfeitos do Estado, de preferência, sem pagar impostos. Defendemos um trânsito organizado, desde que possamos cometer nossas infrações sem que venham nos multar por pouca coisa. Lutamos pelo respeito ao que há de mais sagrado, a infância, mas colocamos sutiãs em meninas de 6 anos de idade. Exigimos tolerância. Mas expelimos ódio. Continuo recebendo, todos os dias, e-mails contra o ex-presidente Lula. As acusações contra ele são três: analfabeto, populista e chefe de um governo que acobertou a corrupção. Nos e-mails em que Lula é chamado de analfabeto há, quase sempre, erros de português em profusão. Essas mensagens parecem revelar mais o ressentimento indestrutível de quem as escreveu.
Será que alguém acredita mesmo que os oito anos de Lula foram os mais corruptos da história do Brasil? Eu acredito na existência do mensalão. Acredito na existência de todos os mensalões. Quando era governador da Guanabara, Carlos Lacerda pensava em renunciar por se considerar cansado do sistema de compra de deputados. Acredito em todos os mensalões recentes, o do PSDB de Minas Gerais, o de FHC para aprovar a emenda que lhe garantiu mais quatro anos de mandato, o do PT e o do Dem de Brasília. Eu acho que Lula erra ao menosprezar o que aconteceu. Na ponta do lápis, porém, o saldo do governo Lula foi positivo. A turma do ódio vive de semear perigos que não se confirmam. O radicalismo de Dilma foi brandido durante a campanha eleitoral como uma certeza de tempestade administrativa. A presidente tem mostrado mais comedimento que o seu antecessor e padrinho notório.
O sucesso de Lula fortalece o ressentimento dos seus opositores. O mundo o admira. Universidades prestigiosas atribuem-lhe títulos de doutor honoris causa. O Bolsa-Família e o ProUni, concebido pelo então ministro da Educação Tarso Genro, estão mudando a cara do Brasil. Dilma, que Lula escolheu contra a opinião de todos, especialmente dos marqueteiros e dos homens "sensatos e prudentes", toca o barco com personalidade e competência. Sempre que a esquerda chega ao poder - não foram muitas vezes no Brasil -, a direita fica mais honesta que de costume e só fala em corrupção e em moralidade. É o que resta. Dados recentes mostram que o Brasil ainda precisa evoluir muito para diminuir a desigualdade social, esse "clichê" que horroriza muitos conservadores, e carimbar seu passaporte para o desenvolvimento sem exclusão.
O que chama a atenção é a violência dos críticos. Por que tanto ódio? Por que um ódio tão persistente? Alguns dos agressores, por coincidência, são os mesmos que tentam justificar o golpe militar de 1964 com ladainhas que o exame atento da história do período não respalda, salvo como mitologia ou manipulação. São também os mesmos que recusam qualquer investigação sobre a tortura no regime militar. São também, algumas vezes, outra coincidência, os que aplaudem os disparates do deputado racista e homofóbico Jair Bolsonaro, cujo direito de vomitar bobagens deve ser assegurado para que o Brasil possa saber com que triste figura está lidando. O preconceito tem a coerência do simplismo. É hermético.
Juremir Machado da Silva | juremir@correiodopovo.com.br
Correio do Povo
terça-feira, 8 de fevereiro de 2011
MARIA DA PENHA E OS JUÍZES
Magistrado quer voltar
O juiz de MG Edilson Rodrigues, afastado por dois anos da função por declarar que "a desgraça humana começou por causa da mulher", quer o cargo de volta. Ele impetrou mandado de segurança no STF com o objetivo de anular a decisão do Conselho Nacional de Justiça, de novembro de 2010.Juiz perde cargo em Três Passos
Pela primeira vez, um membro do Judiciário do Rio Grande do Sul foi demitido. Na primeira sessão de 2011, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado decidiu por unanimidade demitir o juiz Marcelo Colombelli Mezzomo, da Comarca de Três Passos, por conduta imprópria.O magistrado foi nomeado em 25 de junho do ano de 2007. Por causa do Processo Administrativo Disciplinar (PAD) a que respondia, estava afastado da jurisdição desde 1 de julho de 2010. O PAD teve início a partir de registro realizado na Delegacia de Polícia da cidade de Três Passos. Segundo o relato das vítimas, o magistrado teria ido, "com comportamento alterado", a uma sorveteria no mês de maio do ano passado, e feito comentários e elogios impróprios à nora da dona do estabelecimento.
O caso, contudo, teria sido apenas a gota d''água para a demissão. De acordo com o relator, desembargador Luiz Ari Azambuja Ramos, o juiz Marcelo Colombelli Mezzomo já havia sofrido pena de censura em Processo Administrativo Disciplinar por envolvimento em acidente de trânsito, e respondia a diversos outros processos por conduta inconveniente. Mezzomo também criou polêmica ao declarar que a Lei Maria da Penha, considerada um marco no combate à violência doméstica, é "populista" e "surreal". Enquanto juiz, ele negou a maioria dos pedidos de medida preventiva amparados pela lei.
Fonte: Correio do Povo
Pergunta do Blog: Quantos juízes em atividade pensam dessa forma?
sexta-feira, 5 de novembro de 2010
Patricinha fascista
A estupidez está sempre ao alcance de todos. Mayara Petruso, patricinha paulista, estudante de Direito, saiu do anonimato para fama, via Twitter, graças a um coice na inteligência nacional. Indignada com a vitória de Dilma Rousseff, a moça disparou este petardo: "Nordestino não é gente, faça um favor a São Paulo, mate um nordestino afogado. Tinham que separar o Nordeste e os bolsas-vadio do Brasil (...) Construindo câmaras de gás no Nordeste, matando geral". No Facebook, a burrinha racista se atolou um pouco mais: "Afunda, Brasil. Deem direito de voto pros nordestinos e afundem o país de quem trabalha pra sustentar vagabundos que fazem filhos pra ganhar bolsa 171". Mayara já perdeu o emprego no escritório onde trabalhava e sofrerá ação judicial protocolada pela OAB.
Alguns jovens universitários paulistas têm revelado um grau superior de idiotice. Depois da turminha que hostilizou uma guria por causa da sua minissaia, apareceu o bando do "rodeio das gordas", propondo tratar meninas obesas como animais. E agora entra em cena a tal Mayara. O escândalo maior é imaginar que isso representa uma opinião média difundida na Internet. Como será que a mulinha Mayara explica a vitória de Dilma em Minas Gerais? Achar que as ajudas sociais são incentivos à vagabundagem é típico de uma elite primitiva ou de uma classe média ignorante. Qualquer país civilizado, a começar por França, Alemanha, Inglaterra e, evidentemente, países escandinavos, oferece mais ajudas sociais que o Brasil. Não adianta ir à Europa só para comprar bolsas Vuitton. É preciso espiar o cotidiano.
Quem não recebeu e-mails dizendo que Dilma não podia ser candidata por ter nascido na Bulgária? Quantos analistas têm por aí sugerindo que os nordestinos são subeleitores que votaram com o estômago? Quando um empresário escolhe um candidato seduzido pela possibilidade de redução de impostos, o que é legítimo, não se trata de voto por interesse? Não é voto com o bolso? Quando ruralistas votam num candidato na esperança de conseguir mais incentivos, o que é comum, não é voto interesseiro? Mayara não deixa de ser o produto de uma estratégia perigosa, a divisão ideológica entre bem e mal. Foi essa perspectiva, cara ao vice Índio da Costa, que José Serra adotou. A revista Veja e o jornal Estado de S. Paulo deram aval a essa idiotice retrógrada. Uau!
O PSDB, que nasceu pretendendo ser moderno e racional, podia mais. Veja, que se acha mais moderna do que os modernos, acabou por produzir leitores Mayara. Isso não tem a ver com partidarismo como imaginam os mais simplórios ou ideológicos. Eu jamais terei partido. Meu único capital é a independência selvagem. Sou a favor do voto de castidade partidária para jornalistas. Tudo pela liberdade de dizer que quem acha o Bolsa-Família um incentivo à vadiagem pensa como Mayara. Esse foi o principal erro tucano na campanha eleitoral: ter guinado à direta para tentar seduzir as Mayaras, que arrastaram um intelectual progressista como Serra para o reacionarismo rasteiro do Estadão e da Veja. Mayaras, nunca mais!
Juremir Machado da Silva | juremir@correiodopovo.com.br
terça-feira, 2 de novembro de 2010
Sabedoria brasileira
Dilma Rousseff venceu o senso comum dos especialistas. Atropelou o preconceito. Passou por cima do machismo. Teve gente trabalhando duramente para transformar virtudes em defeitos. Ter sido guerrilheira na luta contra a ditadura militar brasileira é uma qualidade. Ter sido presa, aos 23 aninhos de idade, por defender seus ideais, é uma lição de moral. Ter sido torturada sem entregar companheiro algum é uma grandeza. Precisou recuar em alguns pontos. O jogo eleitoral não permite andar sempre em linha reta. Alcançou o objetivo. Tem todas as condições de fazer um excelente governo. É garantido? Claro que não. Mas é bastante possível. A base está estabelecida. A semente foi lançada. É só continuar.
José Serra fez tudo errado. Pisoteou a sua biografia. Oriundo da esquerda, abrigado num partido de centro, adotou um discurso de extrema-direita na esperança de ganhar a marteladas. Quanto mais sentia a vitória escapar, mais se atolava na retórica da maledicência e da simplificação. Foi mais a candidatura do tosco Índio da Costa, uma figura menor que voltará para o seu glorioso anonimato, do que a de um social-democrata. Luiz Inácio, mais uma vez, bateu o doutor FHC. Mergulhou na campanha. Fez ver que sua presença trazia pontos positivos para a sua candidata. FHC andou sempre meio de lado, entrando sem querer entrar no jogo, seja por vaidade, acha que um ex-presidente deve viver sozinho na lua, seja por medo de prejudicar o seu candidato.
Os "videntes" erraram tudo. Deve ter sido por isso que o polvo Paul morreu pouco antes da votação do segundo turno brasileiro. Morreu certamente de vergonha dos especialistas brasileiros. Quem não lembra do tal Montenegro, o cara do Ibope, garantindo que Serra massacraria Dilma, a sem carisma? Quando a revista Veja e o jornal O Estado de S. Paulo passaram a jogar pesado para eleger José Serra, parte da população percebeu a artimanha. O Brasil vem mudando. Em alguns aspectos, contudo, parece nunca mudar: Minas Gerais (Dilma) e São Paulo (Temer) estão novamente no poder, como na época da política do café com leite da República Velha. Os tempos são outros. A mulher tomou o poder. Minas levou a melhor.
No país da corrupção endêmica, o roto falou do descosido o tempo todo. Nada mais hilariante do que ouvir o Dem do mensalão de Brasília pregando moral contra o mensalão do PT. Nada mais paradoxal do que ouvir o PMDB gaúcho atacando o governo por aparelhamento do Estado. Logo o PMDB que desistiu de chegar ao topo do poder para ter sempre a possibilidade de aparelhar o Estado! Ri muito durante esses meses todos. Fui acusado de tudo um pouco. Tem gente achando que sou petista. Continuo o mesmo. Um franco-atirador solitário e implacável. Miro sempre na burrice, na contradição e no preconceito. Dilma ter sido guerrilheira sempre me pareceu um belo cartão de visitas. Os Estados Unidos têm seu primeiro presidente negro. A Bolívia tem um índio. O Brasil, depois de um operário, terá uma mulher. Só Veja não vê os avanços.
JUREMIR MACHADO DA SILVA | juremir@correiodopovo.com.br
quarta-feira, 13 de outubro de 2010
O novo eixo do mal
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Obra de Philippe Ramette |
A mídia de São Paulo é uma piada semipronta. É só dar um calor para passar do ponto. O Estado de S. Paulo brada aos quatro ventos que está sob censura judicial em favor de um filho do imperador do Maranhão, o marimbondo meio moribundo José Sarney. O Estadão tem razão em protestar. Mas, na semana passada, demitiu a psicanalista Maria Rita Kehl por um grave delito de opinião: ela publicou um artigo defendendo o Bolsa-Família. Viva a liberdade de expressão! Alguns dias antes, o mesmo Estadão, que volta e meia defende o jornalismo isento, abrira seu voto para José Serra. Achincalhado na Internet, o Estadão deu uma de Estadinho: enrolou. Kehl não teria sido demitida. Só convidada a não falar de um assunto bem pouco oportuno neste momento: política. Uau!
A conversa fiada evoluiu para algo assim: a rotatividade de colunistas é grande. Por fim, a casa caiu. Maria Rita Kehl confirmou sua demissão. O Estadão que demitiu Maria Rita é o mesmo que vive tentando assustar as velhinhas com uma suposta ameaça de ditadura, com censura à imprensa, pela esquerda brasileira, especialmente se Dilma, rotulada de "mal a evitar", for eleita. O que significa isso? Que o Estadão é um jornal reacionário, autoritário e desesperado. Teve medo que Maria Rita Kehl elegesse Dilma Rousseff com a sua imensa capacidade de formar a opinião dos leitores. O mais engraçado é ver e ouvir os serristas tentando justificar a atitude do provinciano jornalão paulista. A tese deles é muito sofisticada: ela teria passado dos limites. Uau!
A Folha de S. Paulo não quer ficar atrás. Convenceu a Justiça a bloquear um blog chamado "Falha" de S. Paulo. Torrou uma velha piada. Censurou o humor. Até parece a legislação eleitoral brasileira. Veja, Falha e Estadinho querem ter o monopólio do insulto, da ironia e da censura. Será que o Brasil jamais terá jornais nacionais? Veja, Falha e Estadinho formam o novo eixo do bem. O bem deles tem cara de mal para a maioria. São mais xiitas, fundamentalistas e radicais do que o Irã, a Al-Qaeda e o Bin Laden. Estão em cruzada contra o comunismo que não existe mais e contra o Bolsa-Família, programa que cria nos mais pobres um vício terrível: comer. O Estadão botou luto na sua capa quando morreu um dos mais nojentos ditadores da América Latina, o asqueroso Augusto Pinochet. A Falha de S. Paulo, ao final da ditadura brasileira, precisou mudar de cara para apagar o seu comprometimento com o regime.
O jornalismo vive de mitologias divertidas. Roberto Marinho, pilar da ditadura, que o ajudou a edificar a Rede Globo passando por cima das leis, foi biografado por Pedro Bial como um verdadeiro e hábil resistente ao arbítrio verde-oliva. O Estadão adora posar de censurado pelos brutamontes de 1964, instalados nas redações armados de tesoura, publicando Camões e receitas de bolo no lugar dos textos ceifados. Valeria uma receita de bolo de fubá no lugar da Maria Rita. A liberdade de expressão é total na Veja, na Falha e no Estado: basta estar com Serra em defesa do bem universal contra o mal vermelho.
Juremir Machado da Silva | juremir@correiodopovo.com.br
Correio do Povo, 13 de outubro de 2010
quarta-feira, 6 de outubro de 2010
Esquerda e direita
A direita brasileira adora afirmar que não há mais direita e esquerda. Imediatamente passa a criticar a esquerda. Conclui-se que no Brasil só haveria esquerda. A direita se vê como não ideológica, a pura expressão da verdade. Nos Estados Unidos seria o contrário: há direita, mas quem é mesmo a esquerda? Na Alemanha, todo mundo quer ser de centro. Na França, direita e esquerda designam-se como tal. Um parlamentar, na televisão, diz: "Nós da direita...". Em Israel, direita e esquerda representam projetos cristalinos. A campanha eleitoral brasileira revelou que o Brasil tem direita e esquerda bem definidas: PSDB e PT. Tem também extrema-direita e extrema-esquerda: Dem, PP, PSol, PSTU, PCO. Também não falta centro (direita ou esquerda): PTB, PMDB, PV, PDT.
Apenas dois partidos têm projetos nacionais: PT e PSDB. O PMDB oscila entre eles de acordo com as conveniências, com ligeira inclinação à esquerda e grande inclinação para os cargos. Os tucanos, ao firmarem pacto com o Dem, resvalaram para o discurso reacionário típico da UDN dos anos 1950. O último governo de Getúlio Vargas, que acabou no suicídio do presidente, foi de centro-esquerda. Não havia Bolsa-Família. Mas Getúlio assinou um aumento de 100% para o salário mínimo e criou a Petrobras, frustrando os interesses de multinacionais e de seus parceiros nacionais. Restou para a direita o discurso "moralista" contra a corrupção. A Tribuna de Imprensa, de Carlos Lacerda, era a Veja da época. O Estado de S. Paulo era o Estadão conservador de sempre.
A corrupção sempre deve ser denunciada. Impiedosamente. Pode-se, no entanto, perguntar: quando termina a denúncia e começa a campanha política disfarçada de jornalismo investigativo? O truque consiste em transformar o que é pontual em total. Converte-se um sinal na pele em sintoma de uma metástase. Já ouviram falar em metonímia? É uma figura de linguagem pela qual, segundo o Aurélio, entre outras coisas, a parte pode representar o todo. Direita e esquerda usam esse mesmo recurso: se a parte sabe, o todo sabe. Se a parte está contaminada, o todo também. Em geral, é pura inferência. Como dizia Balzac, para a imprensa tudo o que é provável (verossímil) é verdadeiro. Os fatos nem sempre concordam.
A direita brasileira recusa-se a assumir-se como direita. De quebra, tenta convencer a esquerda a negar-se. O PSDB bem que podia dar um bom exemplo e admitir que se tornou de direita. É legítimo. Essa conversa de que esquerda e direita são termos e expressões ultrapassadas está ultrapassada. Foi um golpezinho retórico dos anos hegemônicos do neoliberalismo. Caducou. Fez parte de uma guerra ideológica e de marketing. Todo tucano adora pensar que é racional e que só o seu adversário tem ideologia. Os tucanos acham que as ideias dos outros são opiniões, enquanto as suas seriam constatações. Há petistas, por seu turno, que gostam de imaginar que têm projetos, enquanto os outros só teriam interesses. A eleição foi categórica: esquerda e direita em confronto.
Juremir Machado da Silva | juremir@correiodopovo.com.br
quarta-feira, 7 de abril de 2010
segunda-feira, 21 de setembro de 2009
Algumas metáforas

Juremir Machado da Silva, para Correio do Povo
- Deputado, com a sua permissão, por favor, quero lhe fazer uma perguntinha direta e na bucha. Comigo, como todos sabem, é pam pam Detran: o senhor é corrupto?
- Não lhe dou o direito de falar assim comigo.
- Mas as gravações mostram que o senhor...
- As gravações são ilegais.
- Mas elas foram autorizadas pela Justiça.
- A divulgação do conteúdo é ilegal.
- Mas a divulgação pela CPI não contraria a legislação.
- Nada disso tem valor jurídico de prova.
- Mas os fatos são verdadeiros ou não?
- Não há fatos. Há só uma flagrante ilegalidade praticada pela oposição para enxovalhar a nossa honra ilibada.
- Mas, deputado, não é a oposição que aparece combinando propinas, falando em código, articulando favores.
- Ninguém fala em código. Somos pela transparência.
- Não mesmo? E essas referências todas a vermelho, pacote e outros termos que parecem remeter a ilícitos?
- É só uma maneira poética de falar. A prosa do cotidiano é muito enfadonha. Então, como somos pessoas cultas, empregamos metáforas para colorir nossas conversas. É um jogo. Fazemos parte de uma rede de pessoas que conversam por telefone. Ganha quem inventa as melhores metáforas.
- Metáforas? E o que significam essas metáforas? Por exemplo, o que quer dizer "vermelho, é a última"?
- É um aviso para o Internacional. Se perder mais uma no Beira-Rio, não vai ganhar o Brasileirão deste ano.
- E as referências ao Grêmio? São metáforas para encobrir os nomes de torcedores ligados a esquemas de corrupção?
- De modo algum. Não há corrupção. Está tudo claro.
- Mas, deputado, há nove réus, entre os quais o senhor, acusado de uma série de ilegalidades num esquema...
- É um mal-entendido. Esquema, no caso, é esquema tático. Nas gravações, quando falamos em números, estamos metaforicamente tratando de um novo esquema tático. Eu já fui a favor do 4-3-3. Depois, passei a admirar o 3-5-2. Um bom esquema precisa ser dinâmico, envolvente, seguro, ter boa cobertura, não deixar furos atrás, fechar os flancos e, principalmente, produzir bons resultados. O negócio do esquema é ganhar. Metaforicamente falando.
- O esquema agora seria o 1-7-1? Mas faltariam dois? Ou esses dois que faltam é a parte de algum volante do time?
- Exijo respeito. Tenho uma biografia como político.
- Mas, só uma perguntinha: o senhor roubou ou não roubou?
- Ignorante. Propina não é roubo. É uma questão técnica.
- É o quê? Furto?
- Tampouco. Vá estudar direito antes de falar comigo.
- Mas o senhor botou no bolso algum dinheiro público ou não? Abra o jogo, deputado. Chega de retranca. Ataque.
- O importante agora é a minha defesa. Sou inocente.
- O senhor quer dizer que é um inocente útil?
- Inútil. Não estou conseguindo nada no momento.
- O senhor não tem vergonha?
- Tenho.
- Metaforicamente falando?
- Me respeite. Não fiz nada.
- Por que o acusam?
- É um esquema da oposição?
- Tático?
juremir@correiodopovo.com.br
terça-feira, 12 de maio de 2009
MERA COINCIDÊNCIA
Cena de "O que teria acontecido com Baby Jane":

Juremir Machado da Silva, para Correio do Povo
É tanta coisa acontecendo em Palomas que não consigo mais falar de outros assuntos. Um homem apareceu boiando no lago de Palomas. Tentaram explicar o fato dizendo que não era lago, mas rio. Faz sentido. Muda tudo. A oposição denunciou um escândalo de caixa 2 no governo local. A Rede Baita Sol tratou de afirmar que eram denúncias sem prova, apesar de os denunciantes terem visto horas de gravação. Pois não é que agora uma revista estrangeira descobriu uma gravação onde o homem que morreu conversa com um colega e ambos admitem os fatos denunciados. A Rede Baita Sol estranhamente acha, outra vez, que é denúncia sem provas. E a gravação ouvida? E o depoimento da viúva do principal envolvido?
— Fedeu! – exclamou o principal defensor do governo.
— Essa gravação não prova coisa alguma – disse outro.
— É tudo requentado – declarou a principal interessada.
Candoca, o inocente, espantou-se. É um sujeito abilolado e sempre faz perguntas inconvenientes e bobas:
— Mas essa gravação não é justamente a prova que faltava?
— Cala a boca, idiota. Essa prova não tem valor jurídico.
— Por que não tem? É falso o que os homens confessam lá?
— Puxa, Candoca, tu és muito burro mesmo. Cala a boca.
— E o depoimento da viúva não serve para nada? Por que os dois estariam mentindo numa conversa só entre eles?
— Chega, Candoca. A viúva é louca, o morto tinha problemas emocionais e o outro não merece respeito. Além disso, os supostos doadores negam ter dado o dinheiro.
— Ah, bom! Por que eles iriam admitir? Depois eu é que sou burro! Tem cada coisa esquisita em Palomas. Credo!
— Candoca, Candoca, quer ir ver se estou na esquina?
— Se a oposição fosse governo, como no tempo do bigodudo, certa mídia não estaria pedindo o impeachment?
— A oposição não é governo, burro, pois ela é oposição.
— Quando teve o mensalão em Palomas, pediram o impeachment do presidente. Não se deveria fazer o mesmo agora? Não consigo entender a diferença. Que coisa!
— Aprende uma coisa, Candoca: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Só fale coisa com coisa, seu!
— Ah, é? Não teve uma agência de publicidade ganhando a renovação de um contrato após ter feito alguns favores?
— Candoca, seu idiota, isso é tudo mito. Não existem provas. E as coisas nunca funcionam assim em Palomas. Aqui, tudo é diferente. Somos mais éticos. Cala a boca.
— Está bem, mas eu só queria entender uma coisa: é possível inventar ou montar as vozes de dois homens dizendo o que eles não disseram? Ou as vozes não são deles? Mas a viúva não ouviu e confirmou? O repórter não comparou as vozes com as dos supostos donos delas?
— Candoca, desse jeito, vais arrumar sarna para te coçar.
— Não entendo. O problema não era que se tinha denunciado tudo sem apresentar gravação alguma? Pois agora que apareceu uma gravação, me diga, não era o que faltava?
— Candoca, definitivamente, tu não passas de um imbecil.
Qualquer semelhança dessa história com fatos reais é mera coincidência. Palomas não serve de parâmetro. Lá, os representantes da comissão de ética costumam se lixar para a opinião pública. Só em Palomas mesmo. Credo!
juremir@correiodopovo.com.br

Juremir Machado da Silva, para Correio do Povo
É tanta coisa acontecendo em Palomas que não consigo mais falar de outros assuntos. Um homem apareceu boiando no lago de Palomas. Tentaram explicar o fato dizendo que não era lago, mas rio. Faz sentido. Muda tudo. A oposição denunciou um escândalo de caixa 2 no governo local. A Rede Baita Sol tratou de afirmar que eram denúncias sem prova, apesar de os denunciantes terem visto horas de gravação. Pois não é que agora uma revista estrangeira descobriu uma gravação onde o homem que morreu conversa com um colega e ambos admitem os fatos denunciados. A Rede Baita Sol estranhamente acha, outra vez, que é denúncia sem provas. E a gravação ouvida? E o depoimento da viúva do principal envolvido?
— Fedeu! – exclamou o principal defensor do governo.
— Essa gravação não prova coisa alguma – disse outro.
— É tudo requentado – declarou a principal interessada.
Candoca, o inocente, espantou-se. É um sujeito abilolado e sempre faz perguntas inconvenientes e bobas:
— Mas essa gravação não é justamente a prova que faltava?
— Cala a boca, idiota. Essa prova não tem valor jurídico.
— Por que não tem? É falso o que os homens confessam lá?
— Puxa, Candoca, tu és muito burro mesmo. Cala a boca.
— E o depoimento da viúva não serve para nada? Por que os dois estariam mentindo numa conversa só entre eles?
— Chega, Candoca. A viúva é louca, o morto tinha problemas emocionais e o outro não merece respeito. Além disso, os supostos doadores negam ter dado o dinheiro.
— Ah, bom! Por que eles iriam admitir? Depois eu é que sou burro! Tem cada coisa esquisita em Palomas. Credo!
— Candoca, Candoca, quer ir ver se estou na esquina?
— Se a oposição fosse governo, como no tempo do bigodudo, certa mídia não estaria pedindo o impeachment?
— A oposição não é governo, burro, pois ela é oposição.
— Quando teve o mensalão em Palomas, pediram o impeachment do presidente. Não se deveria fazer o mesmo agora? Não consigo entender a diferença. Que coisa!
— Aprende uma coisa, Candoca: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Só fale coisa com coisa, seu!
— Ah, é? Não teve uma agência de publicidade ganhando a renovação de um contrato após ter feito alguns favores?
— Candoca, seu idiota, isso é tudo mito. Não existem provas. E as coisas nunca funcionam assim em Palomas. Aqui, tudo é diferente. Somos mais éticos. Cala a boca.
— Está bem, mas eu só queria entender uma coisa: é possível inventar ou montar as vozes de dois homens dizendo o que eles não disseram? Ou as vozes não são deles? Mas a viúva não ouviu e confirmou? O repórter não comparou as vozes com as dos supostos donos delas?
— Candoca, desse jeito, vais arrumar sarna para te coçar.
— Não entendo. O problema não era que se tinha denunciado tudo sem apresentar gravação alguma? Pois agora que apareceu uma gravação, me diga, não era o que faltava?
— Candoca, definitivamente, tu não passas de um imbecil.
Qualquer semelhança dessa história com fatos reais é mera coincidência. Palomas não serve de parâmetro. Lá, os representantes da comissão de ética costumam se lixar para a opinião pública. Só em Palomas mesmo. Credo!
juremir@correiodopovo.com.br
terça-feira, 7 de abril de 2009
DE DAVOS A DAVINHOS

Juremir Machado da Silva, para Correio do Povo
Porto Alegre é demais. Não vive sem um bom anacronismo. Já teve o seu tempo de Fórum Social Mundial. Quem não se lembra de todos aqueles bichos-grilos dizendo que outro mundo era possível? Quem não se lembra, sobretudo, do sarcasmo dos modernos neoliberais? Como riam aqueles homens. Como tinham certezas. Como eram pragmáticos e seguros. Mas até os seguros se revelaram maus investimentos. Porto Alegre é demais. Mantém-se fiel ao mais ideológico dos fóruns, o da liberdade, cujo mundo idealizado se tornou repentinamente impossível. Pena que não pude acompanhar de dentro. Eu adoraria estar presente no Fórum da Liberdade para escutar as sessões de mea culpa.
Imagino que todos tenham aproveitado para chicotear as costas em público e reconhecer os erros dos últimos 30 anos. A ideologia, sabemos, é cheia de astúcias. Tem mais astúcias do que a razão. Uma delas é considerar ideologia exclusivamente o pensamento dos outros. Essa é a grande astúcia da direita, que nem se chama de direita. As astúcias ideológicas, repito, estão por toda parte. Os adversários das cotas, por exemplo, em defesa de interesses particulares e de privilégios mantidos ao longo do tempo, recorrem a um universalismo abstrato como forma de tentar barrar uma necessidade muito concreta de reconhecimento das singularidades. Todo argumento é bom quando se trata de converter o particular em universal por conveniência.
O Fórum da Liberdade deu-se a liberdade de preconizar o Estado mínimo com o máximo de pretensão e uma gigantesca dose de minimalismo teórico. Deve ter acontecido uma sessão inteira apenas para explicar em bom português os bônus pagos, nos Estados Unidos, com dinheiro público, para executivos que fracassaram em iniciativas privadas de pouco risco para eles e de muita vertigem para contribuintes e governos. Como diz o outro, aqui se faz, aqui se paga. Com o dinheiro dos impostos. Haja impostos para pagar tudo o que foi feito e não pode ser desfeito para não romper contratos malfeitos. Eu perdi o melhor da festa. Queria tanto ter ouvido os ideólogos do neoliberalismo explicando o 'risco-Estados Unidos', a oferta de dinheiro do Luiz Inácio atrevido da Silva para o FMI, os bilhões saídos dos cofres públicos para salvar a lavoura neoliberal, as críticas de neoliberais de ontem à falta de regulamentação de hoje e, principalmente, teria amado ouvi-los comentar o retorno de Keynes, o economista desprezado na alta e suportado na baixa. É mais ou menos como a volta do Zorro e do Tonto. Que fazer sem eles? Sucumbir? O Zorro é o herói mascarado que evita a tragédia. Tem um preço. Tonto é o contribuinte.
Meu nome é Tonto. My name is Tonto. Je m’appelle Tonto. Não entrei para ouvir as conferências. Não existe almoço grátis. Nem ingresso. Mas compareci ao local do evento para observar antropologicamente os personagens. Que seres estranhos! Pareciam saídos da máquina do tempo com seus ternos fashion, seus relógios de marca, suas ideias recém-vencidas e seus perfis ousados e inovadores com um cheiro fresquinho de intervenção estatal. Confesso que senti medo. E se me pedissem contribuição para salvar o planeta, a GM, a Chrysler, a AIG e todo o sistema financeiro norte-americano? Eu daria uma sugestão: deixem quebrar! Mas cobraria por ela. Consultor é consultor. A vida é assim mesmo. Tem Danone e Danoninho, Davos e Davinhos. Porto Alegre é demais. Este é o Estado atual.
juremir@correiodopovo.com.br
terça-feira, 10 de março de 2009
O PIOR DO BRASIL

Correio do Povo
Parece uma missão impossível designar o pior do Brasil. Eu não hesito: a mídia. Temos uma das mais conservadoras imprensas do mundo ocidental. Uma mídia maria-vai-com-as-outras que segue um único dogma: a moda. Ou a lei do mais forte. Nas últimas décadas, a mídia brasileira aderiu a todos os clichês sobre globalização e desregulamentação do mercado. Quem manda na mídia? O patrocinador. Muitas vezes, claro, o patrocinador é um governo. Aí o bicho pega de vez. Mas, mesmo quando o patrocinador não distribui dinheiro público, o quadro não muda. A mídia brasileira odeia movimentos sociais e reza pela cartilha dos donos do dinheiro que a financiam. Qualquer jornalista iniciante que deseje ascender na carreira vira imediatamente um neoliberal ferrenho.
Mesmo a Folha de S. Paulo, que passa por ser menos indecente, não escapa do furor conservador. Numa das derrapagens mais patéticas deste começo de século, a Folha de S. Paulo, em editorial, transformou o regime militar que enxovalhou o Brasil a partir de 1964 em 'ditabranda'. Só faltou declarar a sua saudade daqueles tempos de 'milagre econômico'. A verdade é que branda foi a relação da mídia brasileira com os milicos. O Estado de S. Paulo, que adora se mitificar lembrando que publicava receitas de bolo ou poemas de Camões no lugar de artigos censurados, foi um dos pilares da ditadura. Apoiou abertamente. O Estadão colocou luto pela morte de ditador chileno Augusto Pinochet. Uma tarja preta emoldurou a capa do jornal. A revista Veja nasceu durante a ditadura, segundo consta, com o beneplácito de Golberi do Couto e Silva. A Rede Globo, assim como, no outro terreno, a Varig, foi a grande beneficiada pela 'brandura' militar.
Nas províncias, especialmente naquelas em que o conservadorismo sempre esteve na ordem do dia, a imprensa se acomodou sem maiores complicações. Jornalistas enfrentaram a ditadura. Jornais, raramente. A imprensa tinha o álibi perfeito: que poderia fazer contra a força? Nada. Nem por isso precisava apoiar. O Grupo Folha, que hoje edita a Folha de S. Paulo, expandiu-se, sob o comando de Octavio Frias de Oliveira, graças às boas relações com a ditadura, que, sem dúvida, foi muito branda e generosa com os amigos. Passada a época de bancar o herói em segurança, durante a fase de redemocratização, no qual a mídia passou a rugir contra os ditadores, chegou o tempo de fazer as pazes com esse passado nebuloso. Pedro Bial alugou a sua pena de BBB para converter Roberto Marinho num espetacular estrategista em luta dissimulada (tão dissimulada que ninguém percebeu) contra o poder ditatorial brasileiro.
Agora, aparentemente com mais legitimidade, foi a vez de a Folha de S. Paulo contribuir para o revisionismo apressado que sonha em afastar o Brasil do paradigma que dominou o resto da América do Sul. Felizmente a Folha de S. Paulo tem um limite: o marketing. O termo 'ditabranda' pegou mal. O remédio foi dar abrigo aos artigos de intelectuais descontentes e não cercear as manifestações do próprio pessoal da casa, gente que tomou um susto com a recaída do jornal. Fez-se, no popular mais demagógico possível, do limão uma caipirinha. A Folha deu as costas ao látego e está faturando como jornal que se autocritica em praça pública. Branda é a nossa paciência com tamanho besteirol. A mídia brasileira é uma casa da mãe-joana.
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sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009
HUGO, O DEMOCRATA
Vista de Caracas, Venezuela:

Juremir Machado da Silva, para Correio do Povo
A ditadura já foi definida como regime político sem eleições. Não é mais. O mundo mudou extraordinariamente depois da chegada do homem à Lua, da invenção da sunga de crochê para homens e da queda do Muro de Berlim. É verdade que essas três conquistas da humanidade andam meio esquecidas depois do surgimento do MP3. Os seus efeitos, no entanto, persistem. Tudo que é sólido permanece no ar. A caixa de Maizena resistiu. Nada mais escapa ao novo design global. Basta dizer que o neoliberalismo agora é sustentado abertamente pelo Estado em nome dos interesses da plebe. Os empresários vão de jatinho pedir dinheiro barato aos governantes. A turba malta continua indo de ônibus, de caminhão ou a pé. Como não oferece garantias nem produz estragos equivalentes aos da crise de 1929, sempre leva menos. A cada um segundo as suas possibilidades. Banqueiros têm prioridade em relação a bancários. Estamos finalmente na nova ordem mundial.
Os ditadores não são mais os mesmos. Os mais modernos só falam em referendos populares. A população não aguenta mais tanta votação. Quase não sobra tempo para votar nos reality shows. Estraga os domingos. Alguns sentem até saudades das ditaduras à antiga. Hugo Chávez é o ditador mais fanático por urnas de que se tem notícias desde o tempo dos tiranos gregos. Já organizou umas 15 eleições. Quando perde uma, deixa passar algum tempo e banca outra. Mais de três anos antes do final do seu mandato, tratou de ganhar um plebiscito para poder ser candidato a um terceiro período. Uma proeza capaz de dar inveja e exemplo aos melhores amigos e aos vizinhos com popularidade ainda maior. Parece que alguns cientistas políticos querem passar a definir ditadura como regime com mais de uma eleição de interesse do chefe da nação por ano. Outros, ainda, estariam pensando em propor à ONU um artigo obrigando os seus membros a limitarem o número de consultas eleitorais aos cidadãos, sob pena de exclusão por excessiva atitude democrática.
A principal diferença entre uma grande democracia e uma pequena ditadura é simples: a grande democracia pode, sem perder a credibilidade, praticar ocasionalmente, desde que sem exagero ou gosto, fraude eleitoral, empossar o menos votado, instalar um tribunal de exceção, torturar estrangeiros, manter prisioneiros sem processo nem direito à defesa e invadir países soberanos comandados por ditadores para destruir armas sabidamente inexistentes. Na pequena ditadura, os meios são denunciados como confundidos com os próprios fins. Nas grandes democracias, os fins justificam os meios. Tudo isso, é óbvio, em tese. Na prática, é sempre pior. As pequenas ditaduras vendem petróleo. As grandes democracias compram petróleo. Das pequenas ditaduras.
Hugo Chávez, definitivamente, é um péssimo exemplo para a América Latina. Ouve Fidel Castro, que já não fala, sussurra. Influencia Evo Morales, o que, embora não sendo muito difícil, impede o boliviano de usar gravata. Não deixa Luiz Inácio sossegar. Corteja a Cristina. Se fosse presidente da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, onde parece que já conta com alguns representantes, Chávez certamente aprontaria no primeiro mês, chocando empresários e colegas da Casa com o seu comportamento eleitoreiro: mandaria realizar sem maiores delongas um referendo popular para resolver a questão do Pontal do Estaleiro. Ainda bem que vivemos numa democracia plena.
juremir@correiodopovo.com.br

Juremir Machado da Silva, para Correio do Povo
A ditadura já foi definida como regime político sem eleições. Não é mais. O mundo mudou extraordinariamente depois da chegada do homem à Lua, da invenção da sunga de crochê para homens e da queda do Muro de Berlim. É verdade que essas três conquistas da humanidade andam meio esquecidas depois do surgimento do MP3. Os seus efeitos, no entanto, persistem. Tudo que é sólido permanece no ar. A caixa de Maizena resistiu. Nada mais escapa ao novo design global. Basta dizer que o neoliberalismo agora é sustentado abertamente pelo Estado em nome dos interesses da plebe. Os empresários vão de jatinho pedir dinheiro barato aos governantes. A turba malta continua indo de ônibus, de caminhão ou a pé. Como não oferece garantias nem produz estragos equivalentes aos da crise de 1929, sempre leva menos. A cada um segundo as suas possibilidades. Banqueiros têm prioridade em relação a bancários. Estamos finalmente na nova ordem mundial.
Os ditadores não são mais os mesmos. Os mais modernos só falam em referendos populares. A população não aguenta mais tanta votação. Quase não sobra tempo para votar nos reality shows. Estraga os domingos. Alguns sentem até saudades das ditaduras à antiga. Hugo Chávez é o ditador mais fanático por urnas de que se tem notícias desde o tempo dos tiranos gregos. Já organizou umas 15 eleições. Quando perde uma, deixa passar algum tempo e banca outra. Mais de três anos antes do final do seu mandato, tratou de ganhar um plebiscito para poder ser candidato a um terceiro período. Uma proeza capaz de dar inveja e exemplo aos melhores amigos e aos vizinhos com popularidade ainda maior. Parece que alguns cientistas políticos querem passar a definir ditadura como regime com mais de uma eleição de interesse do chefe da nação por ano. Outros, ainda, estariam pensando em propor à ONU um artigo obrigando os seus membros a limitarem o número de consultas eleitorais aos cidadãos, sob pena de exclusão por excessiva atitude democrática.
A principal diferença entre uma grande democracia e uma pequena ditadura é simples: a grande democracia pode, sem perder a credibilidade, praticar ocasionalmente, desde que sem exagero ou gosto, fraude eleitoral, empossar o menos votado, instalar um tribunal de exceção, torturar estrangeiros, manter prisioneiros sem processo nem direito à defesa e invadir países soberanos comandados por ditadores para destruir armas sabidamente inexistentes. Na pequena ditadura, os meios são denunciados como confundidos com os próprios fins. Nas grandes democracias, os fins justificam os meios. Tudo isso, é óbvio, em tese. Na prática, é sempre pior. As pequenas ditaduras vendem petróleo. As grandes democracias compram petróleo. Das pequenas ditaduras.
Hugo Chávez, definitivamente, é um péssimo exemplo para a América Latina. Ouve Fidel Castro, que já não fala, sussurra. Influencia Evo Morales, o que, embora não sendo muito difícil, impede o boliviano de usar gravata. Não deixa Luiz Inácio sossegar. Corteja a Cristina. Se fosse presidente da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, onde parece que já conta com alguns representantes, Chávez certamente aprontaria no primeiro mês, chocando empresários e colegas da Casa com o seu comportamento eleitoreiro: mandaria realizar sem maiores delongas um referendo popular para resolver a questão do Pontal do Estaleiro. Ainda bem que vivemos numa democracia plena.
juremir@correiodopovo.com.br
quinta-feira, 29 de janeiro de 2009
BATTISTI E BHL
O Último Julgamento, de Jeronymus Bosch:

Juremir Machado da Silva, para Correio do Povo
Tive, ontem, uma longa conversa por telefone com o filósofo francês Bernard-Henri Lévy. Foi ele quem mais influenciou o ministro Tarso Genro a tomar a decisão de conceder asilo político ao italiano Cesare Battisti. Quando veio a Porto Alegre participar do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, BHL aproveitou para ir a Brasília visitar Battisti e ter um encontro com Tarso Genro para argumentar em favor do prisioneiro. Lévy, uma celebridade francesa comprometida com os direitos humanos e um severo crítico do marxismo, longe, portanto, de ser um esquerdista desvairado, está convencido do acerto da posição brasileira. Tarso Genro merece todos os seus elogios: 'Genro é um grande homem, um intelectual preocupado com a filosofia, a formalidade e a justiça do direito. O Brasil é um grande país e não pode aceitar a pressão ideológica de Berlusconi. Ainda bem que o presidente Lula tem estatura para não ceder'.
Sem qualquer hesitação, BHL me repetiu o seu principal argumento: todo homem tem direito a encontrar o seu juiz. Um julgamento à revelia não pode ser considerado definitivo quando se tem a possibilidade, evidentemente posterior, de ouvir o acusado e dar-lhe direito de defesa. É a legislação italiana que, segundo BHL, está errada. Ele apoiaria a extradição de Battisti se um novo julgamento fosse fixado. Para BHL, com a assombrosa tranquilidade de quem está habituado a grandes combates e não se impressiona ao ser chamado de defensor de um assassino, saber, neste momento, se Battisti é culpado ou inocente dos assassinatos que lhe imputam é irrelevante. O essencial é dar-lhe novo julgamento. Sem isso, torna-se incontornável conceder-lhe asilo político.
BHL considera que a França de Jacques Chirac errou ao aceitar extraditar Battisti e diz que Nicolas Sarkozy não faria o mesmo. A condenação do terrorista, enfatiza, deu-se exclusivamente com base na delação premiada do 'arrependido' Mutti. Lévy garante que são mentirosas as afirmações de procuradores italianos sobre a existência de outras testemunhas decisivas: 'Não sou policial nem juiz. Sou filósofo e homem. Não me cabe julgar Battisti ou apresentar a prova da sua inocência ou culpabilidade. Cabe-me como intelectual reclamar o direito inquestionável de defesa a um acusado, mesmo que ele tenha fugido. Não se entrega um homem para que passe toda a sua vida na prisão sem direito a apresentar a sua defesa. Em relação a esse ponto, sejamos claros, não pode haver discussão. O Brasil está de parabéns pelo seu ato'.
Cutuquei BHL, fazendo o papel de advogado do diabo (ou advogado do diabo era ele?), se não haveria na opção do governo brasileiro, do qual fazem parte alguns ex-guerrilheiros, uma solidariedade 'corporativa'. A resposta foi categórica: 'Isso não tem a menor importância. É mesquinho pensar dessa maneira. Existem princípios que devem estar acima de qualquer circunstância ou ideologia. São princípios universais. Um deles, base da sociedade democrática e do Estado de direito, é garantir a possibilidade de defesa a um acusado'. O jornalismo brasileiro de direita, que vocifera ideologicamente contra Tarso Genro, acusando-o de parcialidade ideológica, poderia dar-se o trabalho de ser, vez ou outra, um jornalismo do direito. O resto é conversa para assustar leitores ansiosos de consultório de dentista e telespectadores do 'Big Brother'.
juremir@correiodopovo.com.br

Juremir Machado da Silva, para Correio do Povo
Tive, ontem, uma longa conversa por telefone com o filósofo francês Bernard-Henri Lévy. Foi ele quem mais influenciou o ministro Tarso Genro a tomar a decisão de conceder asilo político ao italiano Cesare Battisti. Quando veio a Porto Alegre participar do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, BHL aproveitou para ir a Brasília visitar Battisti e ter um encontro com Tarso Genro para argumentar em favor do prisioneiro. Lévy, uma celebridade francesa comprometida com os direitos humanos e um severo crítico do marxismo, longe, portanto, de ser um esquerdista desvairado, está convencido do acerto da posição brasileira. Tarso Genro merece todos os seus elogios: 'Genro é um grande homem, um intelectual preocupado com a filosofia, a formalidade e a justiça do direito. O Brasil é um grande país e não pode aceitar a pressão ideológica de Berlusconi. Ainda bem que o presidente Lula tem estatura para não ceder'.
Sem qualquer hesitação, BHL me repetiu o seu principal argumento: todo homem tem direito a encontrar o seu juiz. Um julgamento à revelia não pode ser considerado definitivo quando se tem a possibilidade, evidentemente posterior, de ouvir o acusado e dar-lhe direito de defesa. É a legislação italiana que, segundo BHL, está errada. Ele apoiaria a extradição de Battisti se um novo julgamento fosse fixado. Para BHL, com a assombrosa tranquilidade de quem está habituado a grandes combates e não se impressiona ao ser chamado de defensor de um assassino, saber, neste momento, se Battisti é culpado ou inocente dos assassinatos que lhe imputam é irrelevante. O essencial é dar-lhe novo julgamento. Sem isso, torna-se incontornável conceder-lhe asilo político.
BHL considera que a França de Jacques Chirac errou ao aceitar extraditar Battisti e diz que Nicolas Sarkozy não faria o mesmo. A condenação do terrorista, enfatiza, deu-se exclusivamente com base na delação premiada do 'arrependido' Mutti. Lévy garante que são mentirosas as afirmações de procuradores italianos sobre a existência de outras testemunhas decisivas: 'Não sou policial nem juiz. Sou filósofo e homem. Não me cabe julgar Battisti ou apresentar a prova da sua inocência ou culpabilidade. Cabe-me como intelectual reclamar o direito inquestionável de defesa a um acusado, mesmo que ele tenha fugido. Não se entrega um homem para que passe toda a sua vida na prisão sem direito a apresentar a sua defesa. Em relação a esse ponto, sejamos claros, não pode haver discussão. O Brasil está de parabéns pelo seu ato'.
Cutuquei BHL, fazendo o papel de advogado do diabo (ou advogado do diabo era ele?), se não haveria na opção do governo brasileiro, do qual fazem parte alguns ex-guerrilheiros, uma solidariedade 'corporativa'. A resposta foi categórica: 'Isso não tem a menor importância. É mesquinho pensar dessa maneira. Existem princípios que devem estar acima de qualquer circunstância ou ideologia. São princípios universais. Um deles, base da sociedade democrática e do Estado de direito, é garantir a possibilidade de defesa a um acusado'. O jornalismo brasileiro de direita, que vocifera ideologicamente contra Tarso Genro, acusando-o de parcialidade ideológica, poderia dar-se o trabalho de ser, vez ou outra, um jornalismo do direito. O resto é conversa para assustar leitores ansiosos de consultório de dentista e telespectadores do 'Big Brother'.
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