quarta-feira, 29 de junho de 2022

Bendito seja o fruto






Sob o pretexto de proteger uma parcela cristã da população, segmentos reacionários colocam em risco a secularização e os direitos individuais. Mas laicidade é liberdade. E premissa importante da democracia.
   

meio_separador

Por Flávia Tavares, para canalmeio.com.br

“Existe mais de um tipo de liberdade, dizia Tia Lydia. Liberdade para, a faculdade de fazer ou não fazer qualquer coisa, e liberdade de, que significa estar livre de alguma coisa. Nos tempos da anarquia, era liberdade para. Agora a vocês está sendo concedida a liberdade de. Não a subestimem.”
O Conto da Aia, Margaret Atwood

Laicidade é liberdade. Em sua definição abrangente, um Estado laico é o que assegura a cada cidadão a liberdade para crer (ou não), cultuar (ou não) e se organizar (ou não) religiosamente. É o que garante que, em sua privacidade, o indivíduo possa ser o que quiser para que, no ambiente público, a todos os indivíduos seja dispensado o mesmo tratamento. A laicidade é o que afiança a pluralidade individual para sustentar a igualdade social. A laicidade está em perigo.

Em 2017, o presidente Jair Bolsonaro, ainda em fase de amealhar seguidores e viabilizar sua candidatura, apelou à base religiosa e demonstrou seu desprezo pelo Estado laico. “Somos um país cristão. Não existe essa historinha de Estado laico, não. O Estado é cristão“, afirmou. E assim, afrontando a Constituição de 1988 que veda, em seu artigo 19, que União, Estados e municípios adotem uma crença particular, Bolsonaro se conduz. No mesmo artigo, veda-se também que o Estado crie ”distinções entre brasileiros ou preferências entre si".

O argumento recorrente de segmentos reacionários contra a laicidade do Estado é uma suposta perseguição a cristãos, o que encontra zero respaldo na realidade. A perseguição que existe, de fato, é a religiões de matriz africana — se não promovida, frequentemente consentida pelo Estado brasileiro.

A laicidade não cerceia o exercício da espiritualidade, da religiosidade ou da negação a elas. Cerceia apenas a contaminação do debate público por dogmas religiosos. Na prática, coloca a ética acima da moral.

O valor de um Estado sem uma religião oficial é essencialmente ocidental. Mas, nas últimas semanas, os EUA obrigaram um estado a garantir recursos para escolas religiosas, impuseram o direito de professores em escolas públicas de trazer orações para o ambiente de ensino e, claro, retiraram a garantia constitucional do direito ao aborto. No Brasil, uma juiza bloqueou acesso ao aborto legal para uma criança, o ministério da Saúde trabalha para dificultar mais o direito, enquanto senadores lutam para abrir uma CPI e investigar sérios indícios de corrupção de três pastores, um deles ministro da Educação. A religião está impregnada em todos os Poderes, a todo tempo.

Proteção mútua

O rompimento entre Igreja e Estado tem uma história permeada de tensões e tentativas constantes de retomada de espaço e poder. Até o século XVII, essa não era uma questão. Reis eram ungidos por Deus e cardeais ditavam os rumos de todos os súditos. Embebidos no Iluminismo, europeus passaram a buscar formas de deixar emergir, na criação dos Estados-nação, uma autoridade civil não subordinada às autoridades religiosas. Enquanto isso, protestantes e católicos guerreavam em todo o continente. “O Estado laico surgiu para impedir que católicos e protestantes se matassem uns aos outros. A laicidade assegurou a liberdade dos próprios cristãos”, explica Joanildo Burity, cientista político, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e professor da Universidade Federal de Pernambuco.

O marco fundamental seguinte foram as revoluções liberais do século XVIII. Tanto a americana quanto a francesa foram sacramentadas com declarações de direitos dos homens. “Direito à liberdade de crença, culto e organização religiosa é o primeiro direito humano objeto de detalhamento jurídico. Todas as revoluções liberais colocam esse direito entre os fundamentais. E esse é o direito que fornece o modelo aos demais. As igrejas passam a se sentir extremamente ameaçadas pela emergência dessa forma de organização política”, acrescenta Burity. Inaugura-se a era dos direitos humanos no Ocidente. A noção de que esses direitos são a base fundamental de uma democracia.

Essa nova concepção não resolve tudo. Ela traz em si um dilema explorado lindamente por Hanna Arendt, em Origens do Totalitarismo, de 1951. “É perfeitamente concebível, e mesmo dentro das possibilidades políticas práticas, que, um belo dia, uma humanidade altamente organizada e mecanizada chegue, de maneira democrática — isto é, por decisão da maioria —, à conclusão de que, para a humanidade como um todo, convém liquidar certas partes de si mesma. Aqui, nos problemas da realidade concreta, confrontamo-nos com uma das mais antigas perplexidades da filosofia política, que pôde permanecer desapercebida somente enquanto uma teologia cristã estável fornecia a estrutura de todos os problemas políticos e filosóficos”, diz a autora.

O homem como dimensão inicial e final das regras políticas é um modelo tão imperfeito quanto o próprio homem. Mas os fundadores da democracia americana, pensadores e estadistas que eram, anteviram em alguma medida esse impasse. Em O Federalista, obra basilar da Constituição dos Estados Unidos, Alexander Hamilton, James Madison e John Jay insistiram nos “freios e contrapesos” da divisão de Poderes e das eleições proporcionais para evitar distorções. Hamilton fraseia assim a questão e a solução: “Há […] momentos particulares nos negócios públicos, em que o povo, estimulado por paixões irregulares, seduzido por vantagens ilegítimas ou enganado por argumentos capciosos de homens interessados, pode solicitar medidas que bem depressa desaprovará e cujos efeitos virá mais tarde a deplorar. Nestes momentos críticos, quanto deve ser salutar a interposição de um corpo de cidadãos respeitáveis e moderados, que reprima o impulso funesto da multidão e que suspenda o golpe que o povo está para descarregar em si mesmo, até que a razão, a justiça e a verdade retomem o seu império sobre o espírito público!”.

Em seu discurso de 2017 (e em tantos outros), Bolsonaro deixa claro o perigo que “argumentos capciosos de homens interessados” pode representar. Disse ele: “Vamos fazer o Brasil para as maiorias. As minorias têm que se curvar às maiorias. As minorias se adequam ou simplesmente desaparecem.” Para evitar a tirania da maioria, depois mais bem conceituada por Alexis de Tocqueville, os fundadores americanos professavam que os poderes deveriam se equilibrar e os homens da política precisariam ser, no mínimo, “moderados”. E compreender que um preceito constitucional não se sobrepõe a outro. Algo plenamente oferecido pela laicidade.

Um Estado religioso dá ao governo e ao governante o poder de agir em nome de sua interpretação de leis divinas — e não à toa é associado ao totalitarismo. Religião não orna com crítica reflexiva.

Basta pensar no que significa ter um “ministro terrivelmente evangélico” na Corte de resguardo da Constituição. A laicidade impede, inclusive, que agentes políticos usem da fé alheia, ou das ”paixões irregulares“ descritas por Hamilton, em benefício próprio. Se um político não pode usar a fé para pedir voto, ele é obrigado a pensar política. Política pública, ampla, estruturante. Um Estado laico é emancipatório.

A própria Arendt tem, em sua obra, a resposta para moderar os ímpetos do homem. Entre os princípios mais defendidos pela pensadora, está o de que a política se assenta na pluralidade. De que opiniões somente podem ser ampliadas e testadas quando confrontadas com as de outros atores políticos. Arendt não para aí. Ela advoga que, acima dos direitos humanos, está o direito a se ter direito. Para isso, o indivíduo precisa estar sob um Estado que não abdique de protegê-lo. Justamente o que faz um Estado confessional com aqueles que não praticam a fé oficial.

Gilead é hoje

É um tanto aterrador quando, ao escolher usar um trecho de O Conto da Aia, uma obra distópica em que o Estado confessional de Gilead submete mulheres oficialmente a estupros para conceber filhos a casais religiosos, corre-se o risco de ser clichê. Mas aqui estamos, no Brasil de 2022.

Depois da Segunda Guerra Mundial, a laicidade foi assumindo um novo caráter, inclusive de defesa da liberdade de quem não tem religião. Aos poucos, essa noção secular passa a ser de que o Estado deve tomar o lugar da religião na formação de cabeças. Na educação pública. “No fim do século XX, com o boom econômico da Europa e do Atlântico Norte, ficamos com a ideia de que o desenvolvimento científico e cultural havia superado a religião. Nos anos 1990, percebemos que isso só valia para um quarto do planeta”, diz Burity. A tensão entre Igreja e Estado, sempre latente, se intensificou. Os religiosos nunca se afastaram da esfera pública para valer. Bancadas católicas e, mais recentemente, evangélicas sempre tiveram relevância; candidatos fazem o beija-mão cristão em cada ciclo eleitoral. O que mudou mais recentemente, que nos faz ter essa opressora sensação de que há uma ofensiva religiosa?

Houve uma sequência de eventos globais que chacoalharam qualquer noção de estabilidade. As grandes migrações pós-guerra, que num primeiro momento alimentaram a tolerância religiosa, se tornaram alvo da xenofobia. Guerra do Golfo, Torres Gêmeas, crises econômicas sucessivas, conquista de direitos de gênero, reprodutivos. Setores de igrejas reagiram de forma positiva à modernidade. Outros não. E eles aprenderam a usar a linguagem dos direitos e da participação política para inverter a lógica da “perseguição”. Para defender ideias retrógradas. “Essas são as lutas das próximas décadas. Não é incompreensível que as pessoas busquem encontrar nos discursos conservadores religiosos as garantias que o mundo ao seu redor não dá mais. Mas a garantia da participação pública e política de grupos religiosos deve ser acompanhada por exigências de respeito à lei e desse marco secular de não tomar partido de uma determinada religião”, conclui Burity.

As religiões são, de forma geral, patriarcais. Um conjunto de dogmas criado e compilado por homens, celibatários em muitos casos, com concepções medievais de como se deve conduzir a vida. O que chega no ambiente político costuma ser a versão mais radical desses dogmas, que é a que mais comove e tem potencial de se converter em votos. Essa matemática fica explícita quando se observa o caso americano. Na década de 1970, quando a Suprema Corte decidiu que o aborto era um direito constitucional, pesquisas apontavam que 39% dos republicanos disseram que o aborto deveria ser permitido por qualquer motivo, em comparação com 35% dos democratas. Hoje, conforme o Partido Republicano se viu sequestrado pela extrema-direita religiosa, uma pesquisa apontou que democratas e independentes de tendência democrata são 42 pontos percentuais mais propensos do que republicanos a dizer que o aborto deveria ser legal em todos ou na maioria dos casos (80% contra 38%).

É isso que a contaminação da política pela religião faz. Interfere no debate público. Impõe visões singulares e autoritárias. Extirpa direitos. Restringe liberdades. E mina a democracia.


Fonte do Texto: http://www.canalmeio.com.br/notas/bendito-seja-o-fruto/?h=T21hciBSw7ZzbGVyfDEyMjIwNg==

Imagem: The Inquisition, 1981. By Jacek Yerka, in WikiArt.org

sábado, 18 de junho de 2022

IMPRESSÕES DE CHARLES DARWIN SOBRE O BRASIL

 



Charles Darwin, 19 de agosto de 1836:

“No dia 19 de agosto deixamos finalmente as costas do Brasil. Dou graças a Deus, e espero nunca mais visitar um país de escravos. Até o dia de hoje, sempre que ouço um grito distante, lembro-me vivamente do momento doloroso que senti quando passei por uma casa no Recife. Ouvi os mais angustiosos gemidos, e não tinha dúvida nenhuma de que algum miserável escravo estava sendo torturado, entretanto, sentia-me tão impotente quanto uma criança, para até mesmo dar demonstrações. Julguei que os gemidos partiam de um escravo trucidado, pois disseram-me ser esse o caso, em outra ocasião. (...)” (Darwin, 1871, p. 129). 

Em seguida Darwin comentou a crueldade com que os escravos eram tratados, relembrando particularmente a sua passagem pelo Rio de Janeiro e revelando sua aversão a tais atos e à escravidão em geral. 

Em 2 de outubro, Darwin chegava finalmente à Inglaterra. 

Seu desejo de não mais visitar um país de escravos certamente foi atendido, e ao Brasil nunca mais retornou. 

 

Fonte: O Retorno Impossível: Charles Darwin e a Escravidão no Brasil; Antonio Carlos Sequeira Fernandes & Vera Lucia Martins de Moraes, no A n u á r i o d o I n s t i t u t o d e G e o c i ê n c i a s - U F R J ISSN 0101-9759 e-ISSN 1982-3908 - Vol. 31 - 1 / 2008 p. 65-82.

 Imagem: Slaves And Parasites By Jeff Christensen.

 

Nota do Blog: infelizmente, embora mais disfarçada, essa terrível "tradição" escravagista ainda persiste no Brasil.