quarta-feira, 23 de abril de 2025

INTELIGÊNCA ARTIFICIAL, A NOVA BOMBA ATÔMICA?

 

Imagem criada por IA.

 FOLHA DE S. PAULO
19.abr.2025 às 23h00


Presidente dos EUA e tecnocratas do Vale do Silício querem destruir o liberalismo e
implementar nova ordem que pode dilapidar a tradição ocidental.


Martim Vasques da Cunha
Doutor em ética e filosofia política (USP), é autor de "Crise e Utopia – O Dilema de Thomas
More", "A Poeira da Glória", "A Tirania dos Especialistas" e "A Disciplina do Deserto" (no prelo).

O que Peter Thiel, Alexander Karp, Nick Land, Curtis Yarvin e Elon Musk têm em
comum? Personalidades influentes no conservadorismo americano, eles acreditam que a
democracia liberal levou o Ocidente a um estado de estagnação e corrupção moral. Atuando
nas sombras do governo de Donald Trump, defendem que apenas um grande esforço conjunto para dominar a inteligência artificial, a nova bomba atômica, permitirá solucionar esse impasse e aperfeiçoar o mundo – o que, para os cidadãos comuns, pode significar o fim da tradição democrática.
Talvez sem saber, o cineasta Christopher Nolan nos revelou, em seu filme "Oppenheimer"
(2023), a lógica suprema do segundo governo de Donald Trump.
Em uma fala do personagem Lewis Strauss, que na vida real participou dos bastidores da
administração americana durante a Guerra Fria, o ator Robert Downey Jr. profere as seguintes palavras com eloquência grega: "Amadores procuram o sol. São devorados. O poder mora nas sombras."
A referência é ao mito grego de Ícaro, que constrói uma asa com penas e cera para fugir da
prisão labiríntica criada por seu pai, Dédalo. Ícaro ignora os conselhos e aproxima-se demais do Sol, fazendo com que a cera derreta, ele caia do céu e morra afogado.
Hoje a frase dita no filme também pode ser aplicada às cabeças que tentam manobrar Trump:
Peter Thiel, Alexander Karp, Nick Land, Curtis Yarvin e Elon Musk.
Comecemos pelos amadores: apesar de ser um bilionário, de ser considerado o "Napoleão dos nossos tempos" e de ter feito revoluções tecnológicas admiráveis, tanto no campo da corrida espacial (as naves e os mísseis da Space X) quanto da mídia (a compra do Twitter, rebatizando-o de X), Musk é o "boi de piranha" desta administração.
A função dele é apenas aguentar os choques da oposição contra Trump – e nada mais.
Esqueçam o comando de Musk no tal do Doge (Departamento de Eficiência Governamental).
Serve apenas à superfície de um plano muito mais ousado, no qual a reforma do Estado é
somente o primeiro passo.
Uma reforma a ser feita de maneira a privilegiar o comando de uma mão de ferro, de um
presidente que aja como um César redivivo, impondo medidas executivas de cima para baixo:
eis o sonho de Curtis Yarvin, também conhecido pela alcunha de Mencius Moldbug (o primeiro nome é uma referência ao pensador chinês Confúcio).
Yarvin (que veio ao Brasil em 2023 divulgar suas ideias para pequenos grupos da direita) deve ser lido com extrema cautela. O motivo? Não é sua visão de mundo, composta por um certo pessimismo sobre a capacidade de mudar a burocracia que realmente comanda um governo, mas simplesmente porque na verdade ele está tirando sarro do público. Yarvin é um troll do pensamento, no jargão da internet. Seu papel no jogo do poder é satirizar as nossas expectativas racionais.
Por falar em racionalidade, não podemos nos esquecer de Nick Land. Oriundo daquela terra
onde o cinza de chumbo é predominante em sua paleta de cores (a Grã-Bretanha), ele defende um "aceleracionismo" da realidade, cuja mistura inusitada de Adam Smith e Karl Marx será a mola propulsora para um novo tipo de progresso que simplesmente precisa desprezar a democracia liberal. Se você achou que isso era um ensaio para um filme de horror, acertou.
Mas, calma: haverá a solução para todos esses impasses – a "República Tecnológica". Este é o termo usado por Alexander Karp (junto com Nicholas Zaminska) em seu livro de mesmo nome, lançado com sucesso no início deste ano nos EUA e a ser publicado no Brasil no próximo mês pela Intrínseca.
Karp é um dos donos da empresa Palantir (batizada em homenagem a um dos artefatos
mágicos da saga "O Senhor dos Anéis", de J.R.R. Tolkien). A especialidade dele é extrair dados dos diversos níveis da realidade (entre eles, o nosso cotidiano) e computá-los, via um software próximo do sobrenatural. Depois, com isso, ele vende novas estratégias de "antecipação do comportamento humano" para braços militares do governo americano, entre eles a CIA e o Pentágono.
Em seu tratado, Karp tem a seguinte tese: nos últimos 30 anos, a elite do Vale do Silício perdeu a sua vocação. Preferiu se render à criação de produtos de bens de consumo (aplicativos, computadores pessoais e serviços de comércio) ao invés de compreender que a internet foi a primeira fase para uma inovação sem precedentes.
O correto, diz, seria que essa mesma elite se unisse ao Estado americano em um novo plano de defesa, que combinasse tecnologia de ponta e uma mão de obra extremamente eficiente, com o objetivo de impedir que uma outra superpotência (a China) lidere a corrida sobre quem vai dominar um novo tipo de bomba atômica – a inteligência artificial (IA).
Por isso, Karp defende que, em termos educacionais, é necessária também uma reviravolta nos valores. Neste sentido, os EUA precisam redescobrir a importância de defender a "civilização ocidental". Em outras palavras: Karp é contra toda e qualquer espécie de cultura identitária. Na sua ótica, o wokeísmo enfraqueceu a nação americana nos seus fundamentos, impedindo-a de promover um debate saudável sobre assuntos seríssimos, em particular nas universidades.
Disso, avalia, resulta uma elite política e econômica que, assim como os companheiros de Karp no Vale do Silício, é incapaz de dominar a própria tecnologia que criou e, portanto, incapaz também de reconstruir a república que irá aperfeiçoar o resto do mundo.
O que Alexander Karp propõe, sem nenhum pudor, é um autêntico projeto de poder digno de Platão. E o sócio dele na Palantir, o empreendedor Peter Thiel, notório por ter sido o investidor-anjo de uma empresa chamada Facebook, concorda com isso em gênero, número e grau.
Dono de um intelecto aguçado, capaz de financiar diversas iniciativas políticas e culturais (além da startup de Curtis Yarvin, bancou a campanha de J.D. Vance para o Senado, o que
possibilitou a entrada deste último como vice-presidente na chapa de Trump em 2024), Thiel tem uma visão de mundo sofisticada, impossível de ser reduzida a clichês ideológicos. É alguém que deve ser respeitado e temido antes de ser desprezado (como a intelligentsia progressista faz com ele nos últimos anos).
De certa forma, não é exagero afirmar que Peter Thiel é o rei-filósofo imaginado por Platão —e que o mundo se tornou o seu laboratório para a próxima "tentação de Siracusa" (quando o pensador grego foi treinar Dionísio, o jovem tirano da província siciliana, e fracassou
miseravelmente).
Além de ser autor de um livro que se tornou uma Bíblia para a criação de startups, "De Zero a Um" (2012), ele escreveu três ensaios filosóficos que explicitam uma orientação política
bastante peculiar.
Os textos são: "O Mito da Diversidade" (1995), uma polêmica contra o politicamente correto que infesta as universidades; "O Momento de Strauss" (2004), disponível no Brasil na coletânea "Política e Apocalipse", publicada pela É Realizações, e "O Niilismo Não É Suficiente", escrito em 2023, ainda inédito, mas que pode ser lido nos subterrâneos da internet.
"O Momento de Strauss" é uma homenagem a Leo Strauss, pensador alemão exilado nos EUA por causa do nazismo, que desenvolveu uma filosofia baseada em estratégias retóricas que nos ajudam a escapar do totalitarismo da modernidade, algo caro a Thiel.
"O Niilismo Não É Suficiente" é um diagnóstico agudo sobre a paralisia existencial que atinge o mundo contemporâneo e que, logo, alimenta a mesma estagnação do progresso tecnológico e do papel das elites já analisada por Karp.
No fundo, o que une todos os nomes citados acima, junto com a administração Trump, é a
esperança de que o impasse atual só será resolvido por meio de uma ruptura apocalíptica —de preferência feita por esses poderosos que se escondem nas sombras.
O vocabulário religioso não é usado aqui de maneira displicente. Vejamos o exemplo de Thiel: ele é um cristão conservador assumido (apesar de, paradoxalmente, ser também um
homossexual militante), além de discípulo do antropólogo René Girard.
Girard é conhecido pela sua "teoria mimética", segundo a qual o comportamento humano é
motivado pelo desejo de imitação: copiamos uns aos outros porque sempre há uma terceira
pessoa que estimula isso.
Quando essa relação permanece em estágio de desconhecimento, aumentando assim o desejo metafísico de se apossar e de ser o outro, as tensões se avolumam, até que haverá uma situação de violência em que alguém será inevitavelmente sacrificado (em termos metafóricos ou reais). A partir dessa vítima (o "bode expiatório"), o ciclo de imitação se renova e tudo recomeça até chegar a um novo impasse —e a um novo conflito.
Para Girard, o cristianismo foi a religião que revelou esse mecanismo sangrento aos olhos de todos —e nos possibilitou, grosso modo, construir a cultura moderna em que estamos inseridos, uma cultura cujo verdadeiro herói sempre será o mais fraco.
Thiel adota em parte todos esses pontos do pensador francês René Girard; afinal, foi seu aluno na Universidade Stanford e ajuda a divulgar seu pensamento por meio das ações do think tank chamado Imitatio.
Mas não é apenas isso. Girard e Thiel acreditam que a mensagem do evangelho cristão é de
apocalipse —isto é, da revelação das primeiras e últimas coisas de como o mundo realmente
funciona. Porém, o discípulo acrescentou algo que o mestre nem sequer imaginou, ao perverter esta esperança autêntica com um detalhe: a importância da técnica, e da tecnologia, neste processo.
É aqui que os projetos de Thiel, Karp, Land, Yarvin, Musk e Trump convergem de forma
assustadora. Para eles, a IA é a nova bomba atômica, um poder que contém a violência
inevitável do Anticristo —simbolizado, nessa perspectiva, pela ordem democrática liberal dos últimos 70 anos, responsável pela corrupção moral do Ocidente, e que chegou ao seu ápice entre os anos 1990-2000.
O uso do verbo "conter" é proposital. Thiel e sua turma – apelidada erroneamente pela
imprensa de "Dark Enlightenment" (iluminismo sombrio), pois pouco se preocupam a
racionalidade filosófica – têm a crença absoluta de que, hoje, eles são o "katechon" dos nossos tempos.
Esta expressão, retirada da Segunda Epístola aos Tessalonicenses e atribuída ao apóstolo
Paulo, significa indistintamente "algo-alguém-alguma coisa" que detém um poder e que "retém-freia-atrasa" o definitivo triunfo do espírito da impiedade (o "Anticristo"), travando assim "o seu aniquilamento pela força da boca do sopro do Senhor".
Aparentemente, presume-se que os poderes que exerceriam esta função na nossa época seriam o do Estado (em particular na variação imperial ou "globalista") e o da igreja cristã (católica ou protestante).
Contudo, segundo um dos estudiosos do tema, o filósofo Massimo Cacciari em "O Poder que Freia" (Áyiné), há, na verdade, um campo de forças e de tensões sobrepostas, que se
acumulam e se dissolvem, às vezes de forma consciente, outras de maneira imperceptível à
consciência humana.
Esta "rede", fortemente conectada em seus nós górdios (e muito semelhante à internet oriunda do Vale do Silício), dá a certeza de que esses dilemas só serão plenamente resolvidos em um grande evento apocalíptico de proporções inimagináveis. E justamente por causa do poder do "katechon", que freia tal desenlace definitivo, as crises mundiais (políticas, sociais, espirituais) se tornam progressivamente permanentes, sem nenhuma solução evidente.
Ou seja: estamos na era da "insecuritas", na qual a insegurança e a incerteza trarão a paralisia e a anomia – a "stasis" da guerra civil indefinida e indiferenciada – ao nosso redor.
No entanto, se reconhecermos que vivemos em pleno "katechon", isso nos induz a concluir
também que não há outra solução exceto aceitar este cenário de impermanência.
Assim como o grupo liderado por Peter Thiel, não queremos aceitar que somos desesperados, sem nenhum outro intermédio, do Estado ou da igreja; também não queremos admitir, após décadas na dependência dessas instituições "pluralistas e democráticas", que todas as mediações humanas foram destruídas por completo.
Como afirmou o próprio Thiel em uma das suas palestras públicas mais recentes: "Talvez não devamos temer o Apocalipse, mas sim o Anticristo". O problema é quando este evento
apocalíptico é também esperado pela nêmesis deste "katechon" tecnológico – no caso, a
esquerda revolucionária.
Afinal, segundo Richard Landes, na obra-prima "Será que o Mundo Inteiro Está Errado?"
(lançada aqui pela editora Contexto), a cultura woke é um produto daquilo que pode ser
classificado como "mentalidade do ano 2000", em que "durante toda uma geração, o Ocidente gerou e implantou um conjunto de objetivos ideológicos progressistas que ao mesmo tempo aumentou a diversidade e a criatividade da cultura e minou a sua própria tessitura".
Ora, se ambos os lados que disputam o papel do "katechon" entram na rivalidade apocalíptica, cujo objetivo supremo é controlar o funcionamento da IA, o que sobra?
Sobra Donald Trump, o "Avatar Digital" que anulará e conciliará todas essas simetrias de forma terrível, o monstro guardado a sete chaves no meio do labirinto do poder. Ele veio com correntes e martelos para destruir o Ancien Regime do liberalismo e implementar uma nova ordem, ainda desconhecida, mas que sem dúvida virá para cometer o mais sério dos crimes: a extinção da memória humana.
Este fato aterrorizante será acelerado pela IA bancada por empresas como Palantir e OpenAI, entre outras. Como se isso não bastasse, ao provocar o caos econômico para reiniciar as relações internacionais entre a China e a União Europeia, Trump brinca diante da mídia como se fosse o amador que será devorado pelo Sol, provocando uma dissonância cognitiva impecável na intelligentsia progressista, quando, na verdade, o ex-magnata joga com esses tecnocratas escondidos nas sombras, para finalmente mostrar que, no fim, ele é o próprio Sistema Solar.
No entanto, como qualquer pedaço da nossa galáxia, um dia este sistema se transformará em
um buraco negro – e a era de Trump será indiscutivelmente o seu centro destruidor, apesar dos seus (eventuais) acertos e dos seus (constantes) erros.
O presidente americano, com a sua "República Tecnológica" do Vale do Silício, irá dilapidar o que restou da nossa história e da nossa tradição – enfim, a nossa humanidade –, em parceria com outros governos e movimentos totalitários, como a China, a Rússia e o islamismo radical.
Haverá escapatória para nós, pobres mortais? É sempre bom lembrar que o complemento ao
mito de Ícaro é a história do seu pai, o artífice Dédalo.
No silêncio, no exílio e na astúcia que marcaram a sua biografia, ele construiu o labirinto que aprisionava o Minotauro. Acabou preso nele; depois conseguiu escapar, sabendo que seu algoz, o rei Minos, não dominava o ar. O custo disso foi a vida do seu filho.
Ao enterrá-lo com as próprias mãos, concluiu que, apesar da tragédia inevitável, precisava
celebrar a criação humana, envolta no segredo da existência.
Enquanto vivemos a ruptura apocalíptica do governo de Donald Trump, devemos imitar o
exemplo de Dédalo, sem dúvida.
Afinal, se o poder mora nas sombras porque os amadores sempre procuram pelo Sol, a única
certeza que nos resta é a de que ninguém neste planeta é dono do céu – e será nele, mais
cedo ou mais tarde, que encontraremos a nossa liberdade.

 

Agradeço ao amigo Herlon Almeida pela indicação deste texto.

sábado, 8 de fevereiro de 2025

2024 YR4 – O ASTEROIDE

 


Como já é quase de conhecimento público, o asteroide 2024 YR4 está se aproximando da Terra com chances de colisão.

Um conhecido meu, que acredita que a Terra é plana, confessou que ele e seus amigos terraplanistas estão muito preocupados: se esse asteroide realmente se chocar com nosso planeta, pode abrir um buraco por onde a água dos oceanos vazaria se perdendo na imensidão do espaço sideral.

Na hora deixei ele mais tranquilo. Contei para ele que Milei, Trump e Meloni já estão se reunindo secretamente para organizar a construção de uma super rolha que será colocada rapidamente no furo que o asteroide irá causar, impedindo o vazamento.

Meu conhecido ficou muito aliviado.

Moral da estória: quem acredita que a Terra é plana tem potencial para acreditar em qualquer coisa, inclusive em uma super rolha...

domingo, 2 de fevereiro de 2025

A VIDA É BELA

 

Casamento de Inês e Ereneu. Foto familiar. Éramos 8. Agora somos 6.

 

Às vezes, quase sempre, nos preocupamos com coisas práticas: contas para pagar, dificuldades de relacionamentos, emprego chato etc.

Como se dizia na minha terrinha, Santa Rosa, “qualquer pé de galinha dá uma sopa...”.

Há pouco mais de uma semana, faleceu meu querido irmão Ereneu (Iri, para mim).

Ele era o cara mais saudável da família, não tomava nem aspirina.

Passou por poucas e boas na vida, porém ele e sua Esposa Inês foram gigantes. Conseguiram segurar a barra de dificuldades financeiras e outras que não preciso nominar, mas que acontecem a todas as pessoas, e criaram três filhos excelentes, cada um com suas particularidades.

Após estabilizar, teve uma vida feliz, com uma neta e dois netos lindos e saudáveis.

Mantinha cotidiana comunicação com os filhos.

Aí aconteceu o imprevisível: foi constatada uma doença irreversível e ele, em 23 dias, respirou pela última vez.

Muito triste. Inexplicável. Não dá para racionalizar.

Então, a mensagem que fica é: aproveitem cada segundo da sua vida. Convivam com seus pais, irmãos, amigas e amigos.

A vida é bela, porém efêmera.

Ninguém sabem qual o futuro de cada um e de tod@s.

 

sábado, 21 de dezembro de 2024

Espelho, espelho meu, A rede globo é mais doente do que eu?

 


 

Por CARLOS ÁGUEDO PAIVA*

Eu fui um duro crítico do PT durante 13 anos. Muito duro. Não perdi um único emprego por isso. Minhas críticas à Lava Jato e a Bolsonaro já me tiraram três empregos. Reinaldo de Azevedo em entrevista com o Presidente Lula.

Introdução

Eu sou um sujeito viciado em vícios. Nem gosto que me apresentem novos, pois me apego com muita facilidade. Os tenho às pencas. Mas creio que o meu vício maior é o da curiosidade. Minha curiosidade é meio sem limite; para mim, o sentido da vida encontra-se em aprender sempre mais e entender o máximo possível sobre o mundo. Leio e escrevo compulsivamente, converso demais (até exaurir os amigos), e sempre que me deparo com um tema instigante, busco ir o mais fundo possível na sua compreensão.

Ora, os temas são infinitos e meu tempo é limitado. E tive que achar atalhos para dar conta de atender minimamente minha curiosidade compulsiva. E encontrei três atalhos extraordinariamente úteis e funcionais. Em primeiro lugar, eu aboli a divisão entre “lugar para ler e estudar” e “outros lugares”. Eu leio na fila do banco, no restaurante, na mesa de bar, no ônibus, no avião, na sala de espera, no elevador e até caminhando na rua (a gente só tropeça no início; depois, aprendemos a manter um olho no livro e outro no caminho). O segundo atalho foram as viagens. Tu podes ler 50 livros sobre a China. Se forem livros efetivamente relevantes e minimamente complexos, isto te demandará dois anos de trabalho. Mas se passares um único mês viajando pela China, conversando com as pessoas nas ruas, visitando as Universidades, lendo jornais (há muitos em inglês, don’t worry) e livros que estão “bombando por lá” (há excelentes livrarias), observando as estruturas urbanas, os padrões de interação entre as pessoas, visitando os centros das principais cidades (sem esquecer das periferias), dando a devida atenção às dinâmicas de trabalho, de produção, de comércio e de oração (visitar templos é básico!), tu vais voltar com um conhecimento maior do que tu alcançarias lendo diversos livros no Brasil. Em geral, os livros te oferecem leituras contraditórias sobre o país. Sem que tu saibas qual delas é a mais confiável. Ou melhor: sem que tu contes com a base experiencial para entender as determinações das divergências e tentar articular uma síntese das oposições.

Mas, creio eu, o atalho mais importante para se chegar o mais perto possível do impossível – Entender o mundo! – é o atalho que nos foi ensinado por Apolo em Delfos: Conhece-te a ti mesmo! Por quê? Porque os dois primeiros atalhos – ler e estudar em lugares “inusuais” e viajar pelo mundo – só podem trazer conhecimento se pudermos confiar na interpretação que fazemos dos textos lidos e dos registros e interpretações que damos aos eventos observados em outros mundos. … E como podemos nos asseverar de que estamos vendo “o que é” e não o que “queremos ver?”. A resposta é complexa, claro. Mas ela conta com um excelente ponto de partida: o que é que tu queres ver? Se souberes onde está o teu desejo, fica bem mais fácil de identificar se o que vês corresponde – ou não! – ao que tu queres ver. Se estiveres vendo o que não queres ver, há uma grande probabilidade de estares vendo (parte de) aquilo que é. Quando vês o que não queres ver, o princípio da realidade está se impondo sobre o princípio do prazer.

São inúmeros os “cortes epistemológicos” que vivi ao longo de quase quatro décadas de psicanálise. Mas há um momento que tem tudo a ver com o artigo de hoje. Eu vinha enfrentando (só para variar!) alguns problemas no trabalho. Como de praxe, colegas, chefias e avaliadores dos meus artigos tentavam me explicar que meus trabalhos não eram publicados porque eu escrevia demais, não respeitava normas acadêmicas, tergiversava, tratava de assuntos em excesso, usava de ironias e metáforas, enfim, não tinha uma redação científica. Como meus textos eram impublicáveis, minha produção era baixa. E como minha produção era baixa, eu era um péssimo funcionário, com produtividade muito abaixo da “média”. E que eu tinha que me esforçar mais para entrar na “média”.

Meu astral não andava nada bom. E este era o tema das sessões. Lá pelas tantas o analista me perguntou: O que tu sentes por estes arautos da “média”? E eu respondi: Pena! Ele redarguiu: Não sentes raiva? E eu retornei: Eu não sinto raiva de ninguém. Muito menos de gente pequena! E o analista me saiu com essa: Para quem faz análise há tantos anos tu te conheces muito pouco, não te parece?

Gol do Bangu. A verdade é que eu era um poço de raiva. E não conseguia reconhecer! Chorei. Muito. De tristeza e de alegria. Na verdade, “de epifania”. Me (re)descobri pequeno, passional, comum. Me (re)descobri alguém da “média”. Me (re)descobri humano, demasiado humano. Nas sessões seguintes, o tema passou a ser minha contribuição particular para o conflito no ambiente de trabalho. E descobri que minha tentativa de colocar uma máscara de “pena” na minha raiva aprofundava a distância e a incompreensão recíproca. Mudei. Pelo menos, tentei mudar. Adiantou de algo? Um pouco. Mas muito pouco. E essa foi outra grande epifania: o fato de nos descobrirmos neuróticos e corresponsáveis pelos conflitos torna o fardo da vida um pouco mais leve. Mas – tal como nas relações afetivas – as relações conflitivas envolvem pelo menos duas pessoas. E a neurose dos outros são dos outros. Não temos o poder de mudá-las.

A Globo precisa urgentemente de um divã!

Na segunda-feira, dia 9 de dezembro de 2024, Lula deu entrada no Hospital Sírio Libanês (HSL) para uma cirurgia de urgência com vistas a retirar uma hemorragia intracraniana que havia se formado em função da queda que sofreu em outubro desse ano. Seis dias depois, no dia 15 de dezembro, Lula teve alta e participou da entrevista concedida pela equipe médica com vistas a agradecer àqueles que o haviam atendido e àqueles que haviam orado por ele. Na sequência, ainda no HSL, Lula concedeu uma entrevista exclusiva para a repórter Sônia Bridi, da Rede Globo de Televisão, que viria a ser veiculada no Fantástico, programa de variedades da emissora no domingo. O que, nem Lula, nem ninguém poderia esperar era que, na segunda metade da entrevista (minuto 13: 50), a Globo fizesse duas inserções criticando e negando afirmações do Presidente. Exatamente quando Lula manifestava seu desejo de que todos os acusados de intentarem um golpe contra a sua pessoa e que, de acordo com o inquérito da Polícia Federal, envolvia o planejamento de seu assassinato, contassem com a presunção de inocência com a qual ele não havia contado. A equipe de reportagem do Fantástico faz, então uma pausa na entrevista, e busca demonstrar que Lula contou com todos os direitos e garantias constitucionais, e que, em momento algum, seu direito de defesa foi contestado.

Vou me dar ao direito de cometer mais um dos tantos sincericídios que tanto me caracterizam. Eu não sei o que mais me assusta nessa história. Se é a psicopatia do veículo e de sua equipe de jornalismo, ou a psicopatia do público que, como regra geral, tomou o intermezzo correcional – em que se informava que o Presidente era um MENTIROSO – como algo normal. Do meu ponto de vista, isso é tão assustador que sequer podemos ir ao ponto central com muita pressa. São muitas as camadas da loucura. O melhor é começar pelas beiradas; tal como recomendava o Engenheiro Leonel: mingau quente demais não se ataca pelo centro, pois queima a língua.

Comecemos com um exercício de distanciamento. Vamos tomar uma outra entrevista, de um outro veículo, com uma pessoa pública que cometeu algumas “malandragens” em sua história de vida para termos uma referência de “postura respeitosa”. No dia 12 de dezembro de 2024, a Carta Capital entrevistou o Ministro Gilmar Mendes do Supremo Tribunal Federal (STF). Havia dois temas centrais: as relações algo conflituosas dos três poderes da República e a Lava-Jato. Mendes fez uma série de críticas aos abusos cometidos pela falecida “República de Curitiba”, à politização do processo penal e à transformação do mesmo em espetáculo midiático explorado com gosto e gozo pela grande imprensa. E fez a defesa do STF como garantidor das instituições e agente de recuperação da isenção do Judiciário. Mais: com sua proverbial e reconhecida imodéstia, Mendes afirmou ter sido um dos primeiros (senão o primeiro) a perceber que “havia algo de errado” nos procedimentos de Curitiba. E acrescentou que sua sensibilidade para desvios nos devidos processos jurídicos lhe angariou o apelido de “Profeta”.

Logo após a entrevista de Mendes à Carta Capital, vieram à luz diversos artigos com críticas à ação do STF durante o período de vigência da Lava-Jato. Veja-se, por exemplo, o excelente artigo do amigo Benedito Tadeu César publicado na RED. O que unifica todas as críticas é a sinalização da irretorquível conivência do STF com os procedimentos da “Quadrilha de Curitiba”, desde a instauração da Lava-Jato, no primeiro mandato de Dilma, até o final do primeiro ano do mandato de Bolsonaro, quando Lula é solto.

Desde logo, o STF ignorou o fato do Fórum de Curitiba não ser a alçada pertinente para o julgamento das duas maiores improbidades de Lula: haver visitado um apartamento no Guarujá e se hospedar com alguma frequência no sítio de um amigo em Atibaia.

Para piorar, o STF – mais exatamente, o Ministro Gilmar Mendes – ignorou a cautelar interposta pela Advocacia Geral da União com vistas a acelerar o julgamento do “direito” da Presidente Dilma a indicar o ex-Presidente Lula como Chefe da Casa Civil em seu segundo mandato, após Eduardo Cunha haver dado autorização para o início do processo de impeachment em 2016. Gilmar Mendes pediu vistas e “sentou-se” em cima do processo, como que aguardando o escândalo adequado para negar o direito de Dilma indicar quem bem entendesse para o seu Ministério. E o escândalo aconteceu. Moro gravou uma conversa da Presidenta com o ex-Presidente após o término do período autorizado para a realização de grampos e a divulgou em rede nacional. Não era preciso ser “Profeta” de nada para entender que essa decisão era politicamente orientada, ilegal e inconstitucional. Mas, ao invés de punir Moro e de retirar de Curitiba – que nunca foi o Fórum adequado de julgamento do Presidente Lula por suas visitas a Guarujá e a Atibaia – o STF aplaudiu a farsa e impediu Lula de assumir a Casa Civil.

Como se isso não bastasse, o STF fez “vista grossa” para a inconstitucionalidade da “Lei da Ficha Limpa”, votada no Congresso com vistas a “combater a corrupção (do PT)”. Só realizou o devido julgamento da constitucionalidade da referida lei após o término das eleições de 2018, com a vitória da “vítima do atentado de Juiz de Fora” (sic, argh, cof, bah!).

O STF também pretendeu desconhecer algo que todos os jurisconsultos do país dos Tupis sabiam perfeitamente: que a “República de Curitiba” tinha alta ascendência sobre os impolutos Desembargadores do TRF-4 (a segunda instância pertinente para julgar Lula) em função da filmagem de uma festinha íntima (que ficou conhecida como a “festa da cueca”) onde alguns dos nossos mais aristocráticos e circunspectos tribunos mostravam todos os seus atributos. A imprensa sabia de algo à época? … Acredito que sim; pois os nudes circulavam amplamente nas redes sociais jurisconsúlticas. Mas, após as denúncias de Tony Garcia em 2023, ninguém mais pode pretender desconhecimento do fato. Anyway, a mim sempre pareceu muito estranho que, já em 2018, NINGUÉM das instâncias superiores do Judiciário (ou da imprensa) questionasse a extraordinária diligência dos desembargadores do TRF-4, que colocaram o processo de Lula à frente de todos os demais, conseguissem julgá-lo em tempo ínfimo e ampliassem a sentença de Moro por unanimidade. Garantindo o período necessário para que, apesar de réu primário, Lula não pudesse cumprir a pena em liberdade no ano das eleições para a Presidência. SANTA COINCIDÊNCIA, BATMAN, BATGIRL E BATDOG!

Por fim, o STF ignorou a decisão da Corte de Direitos Humanos da ONU – onde Lula foi representado pelo Conselheiro da Rainha Elisabeth II, Geoffrey Robertson, que: 1) considerou o julgamento de Lula marcado por parcialidades e falta de isenção dos juízes da primeira e da segunda instância; 2) determinava que fosse garantida a liberdade de Lula até o trânsito em julgado; e 3) que ele tivesse seus direitos políticos preservados, incluindo-se o direito de ser candidato à Presidente no pleito de 2018. O STF não se contentou em ignorar as resoluções da Corte da ONU (a despeito do Brasil, por opção, haver reconhecido a soberania do órgão). Influenciado por postagens vindas do alto oficialato do Exército em defesa da luta contra a “corrupção”, o STF manteve a prisão de Lula e foi mais longe: o impediu de dar entrevistas no ano eleitoral.

Nem é preciso esclarecer que os dois casos – entrevista de Gilmar Mendes e entrevista do Presidente Lula no HSL – estão intimamente associadas. Mas o que importa resgatar aqui e agora é a alegação feita por Mendes. A alegação de que, tão logo o STF tomou consciência do fato de que a Lava-Jato extrapolava os limites do livre direito de defesa, foram impostos freios aos desatinos da dobradinha Sergio Moro – Deltan Dalagnol. Isso é uma mentira grotesca e aviltante. …. Não obstante, a Carta Capital não abriu um intermezzo na entrevista feita com Gilmar Mendes para “corrigir” as informações do Ministro. Por quê? Porque isso seria ainda mais grotesco e aviltante.

Quando se convida alguém para dar uma entrevista, está pressuposto o interesse naquilo que o entrevistado tem a dizer. Não importa se concordamos inteiramente com suas informações. Não importa se ele traz elementos que vão na contramão do que pensamos. Ou, antes: importa. Pois esse “outro lado” é exatamente o que se busca: a informação que não temos, a leitura que não temos. … É absolutamente cabível e pertinente fazer, a posteriori, uma análise crítica das informações recebidas. Mas esse é um outro momento. Quando interferimos e alteramos a dinâmica do diálogo, introduzindo no meio do mesmo, uma leitura distinta, que o agente dialogante não pode contestar, estamos impondo uma relação discursiva desigual, estamos traindo o princípio do direito de resposta.

Vale fazer uma pequena observação lateral. Há alguns anos, a Carta Capital fez uma matéria sobre os negócios e vínculos empresariais do Ministro Gilmar Mendes. O Ministro entrou com um processo por calúnia e difamação. Perdeu nas instâncias iniciais. Mas venceu no Supremo Tribunal de Justiça; justamente aquele onde – de acordo com a revista – Mendes teria maior influência, em função de suas atividades empresariais no Instituto Brasileiro de Direito Público, cujos cursos e palestras contam com a colaboração (muito bem paga) da “nata” dos jurisconsultos tupis. Na entrevista concedida por Mendes ao site da revista, é fácil perceber uma certa “tensão”. O Ministro evita olhar para a câmera, gagueja, tergiversa, mede as palavras. Após tantos anos de análise, ouso pretender que o seu “corpo fala”. E o que ele diz é: – Isso, por acaso, é uma armadilha, uma pegadinha?

Não. Não era. Mino Carta é um gentleman, é um lord, seu nome é elegância. Mino Carta tem princípios.

A Rede Globo entrevistava o Presidente da República. Ele estava saindo do hospital, após uma cirurgia extremamente delicada. Os médicos recomendaram descanso. Pediram que a entrevista fosse concedida noutro dia. Lula achou por bem mostrar ao Brasil que ele estava bem de saúde e que a cirurgia havia sido um sucesso. E se dispôs a realizar este trabalho. Ao contrário de Gilmar, Lula olhou para a entrevistadora e para a câmera todo o tempo. Falou de forma tranquila, segura, do jeito simples que lhe caracteriza. E manifestou seu desejo de que o Judiciário tratasse os acusados da tentativa de golpe com mais isenção e respeito do que ele mesmo fora tratado. E a Rede Globo resolveu cortar a entrevista ao meio para dizer que o Presidente mentia. Que ele fora tratado com isenção e de acordo com os princípios legais vigentes ao longo do período.

Mesmo que, após a prisão de Lula, mesmo que antes de sua eleição, não tivesse ocorrido a VAZA-JATO, mesmo que não tivessem vindo a público as denúncias de Tacla Duran ou de Tony Garcia, a intervenção da Globo, no meio da reprodução da entrevista, produzida ex-post, sem direito de resposta do entrevistado, já seria nojenta, calhorda, doentia. Mas tudo isso já rolou. E todos os jornalistas conhecem as resoluções do STF sobre a parcialidade de Moro, sabem que ele foi Ministro de Bolsonaro e cabo eleitoral do capitão em 2018 e 2022. Provavelmente, já viram os nudes da festa da cueca de Curitiba. Com certeza leram – senão todas, pelo menos parte de – as trocas de mensagem dos procuradores com o juiz Sergio Moro. Sabem que houve combinação. Conhecem a história das “prisões preventivas” de Marcelo Odebrecht e Leo Pinheiro. Sabem que suas “delações premiadas” foram conquistadas a preço de Lula. Mas insistem em dizer que o Presidente – que foi convidado para uma entrevista – mente. Em horário nobre. Para toda a família brasileira reunida. Se isso não é doença, se isso não é (mais que neurose) psicopatia, eu não sei o que seja.

Um país doente

Muito se tem falado sobre a crise do ocidente. Ela é evidente. A começar pelos indicadores econômicos. De acordo com o portal de estatísticas do FMI, a China já é a maior economia do mundo quando seu PIB é avaliado por PPP (paridade do poder de compra; por oposição ao câmbio nominal). Os EUA estão em segundo lugar, seguidos por Índia (em terceiro), Rússia (em quarto), Japão (quinto), Alemanha (sexto), Brasil (sétimo), Indonésia (oitavo), França (nono) e Reino-Unido (décimo). Em suma: os Brics são muito maiores do que o G-7. E isso incomoda. Muito. Envelhecer e perder a força e a capacidade de se impor sobre os outros não é muito bom. Especialmente quando (narcísica e neuroticamente) acreditávamos que nossa força, potência e poder era um desdobramento de nossas virtudes e dos defeitos alheios. Quando um outro valor mais alto se alevanta, ao contrário do que pretende Camões, o “normal-neurótico” não é nos calarmos. Mas pretender que os novos líderes, os novos hegêmonas, os jovens titãs, estão mancomunados com o diabo. E lá vai satanização de Putin, Xi, Modi, Lula, dentre outros.

Não se trata de pretender que o quarteto em si e por si dos BRICS sejam santos ou anjos. Trata-se apenas de reconhecer que anjos e santos – com a graça dos bons deuses, das boas deusas e d@s excelent@s deus@s – estão pra lá de escassos no mundo atual. Que o digam Trump, Bolsonaro, Von der Leyen, Zelensky, Starmer, Biden, Netanyahu e seus inúmeros amigos. Todos eles adeptos da tese de que “uma guerrinha não dói”.

O problema que nos interessa aqui, contudo, não diz respeito diretamente à dinâmica econômica dos países emergentes e decadentes. Mas, isto sim, à forma como a intelligentsia em geral – e a mídia, em particular – analisa, interpreta e difunde uma certa leitura deste processo de revolução na hierarquia das nações. Como regra geral, os países do ocidente em processo de decadência acusam os países emergentes de “práticas econômicas perversas e desumanas”. Toda a mídia europeia e norte-americana produz catilinárias contra os “oligarcas russos”, a superexploração do trabalho na China, a estrutura de castas da Índia, o machismo e a subordinação das mulheres nos países muçulmanos, o terrorismo islâmico, a ausência de liberdade de expressão nas novas potências econômicas internacionais. Escorre sangue e lágrima das páginas dos jornais ocidentais, chocados com a barbárie dos hunos, mongóis, árabes e turcos que assediam o bom, probo, iluminista e cristão ocidente.

A reação da periferia é clara. E busca demonstrar – o que, aliás, não é nada difícil – que a mídia ocidental é uma grande farsa. A matéria do New York Times sobre os estupros em massa das mulheres no 7 de outubro é uma vergonha. O tratamento dado pelos jornais ocidentais à Guerra da Ucrânia só não é de chorar, porque é ridículo. A seletividade com que é tratada a condição feminina no Irã (xiita e terrorista, aliado do Hamas e do Hezbollah) e na Arábia Saudita (aliada dos EUA e complacente com Israel) é de gargalhar. E a imprensa periférica denuncia e se revolta. E conquista, cada vez mais, corações e mentes no Ocidente. A ponto de preocupar – e muito – veículos como a BBC.

Menos no Brasil. Em nossa terra, não há só palmeiras e sabiás. Somos a terra da jabuticaba. Onde a imprensa incensa o entreguismo, a subserviência e a derrota e desfaz de toda e qualquer conquista. É NÓIS!

Não me perguntem o santo, pliss, não me lembro e não vou pesquisar. Conto apenas o milagre. De uma certa feita, um cronista e jornalista brasileiro resolveu investigar por que um país com uma literatura tão vasta e tão expressiva – de Machado de Assis a Guimarães Rosa, passando por Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Ferreira Gullar, Manuel Bandeira, Clarisse Lispector, Carlos Drumond de Andrade, Luiz Fernando Carvalho, Chico Buarque (lembrem-se de Bob Dylan!)) dentre outros – nunca conquistou um Nobel em Literatura. A resposta obtida a partir de entrevistas a um grande número de literatos que participaram da eleição dos nobelizados em distintos anos é muito esclarecedora: porque cada vez que emerge um nome brasileiro para a nominata, emergem duzentos críticos brasileiros que se contrapõem à premiação “demonstrando” que o indicado não é merecedor de prêmio algum. É NÓIS! A gente não semu movidu apenas a carnaval e cordialidade. A gente também semu movidu por ódio e inveja!

Não se trata de um ódio universal. Não. De forma alguma. É óbvio que Fernando Pessoa, Honoré du Balzac, James Joyce, Marcel Proust e Gore Vidal são magníficos. Afinal, são estrangeiros. O ódio e a inveja são concentrados e direcionados ao conterrâneo, ao vizinho. Especialmente se ele vem de baixo. Se ele invadiu a praia errada. Lula invadiu a praia errada. Não importa se ele é incensado mundo afora pelos maiores líderes políticos e estadistas do planeta. Não importa se Biden e Putin, Xi e Von der Leyen, Sholz e Macron o têm em grande conta. Para a intelligentsia nacional, ele saiu de Garanhuns. Mas Garanhuns nunca saiu dele. Ele não tem o refinamento e o berço necessário para ser presidente. De forma que, não interessa se ele é o Presidente em exercício, não interessa se ele acaba de sair de uma cirurgia, não interessa se a economia brasileira cresceu 3,3% em 2023 e deve crescer 3,5% em 2024, não interessa se a taxa de desemprego atual é a mais baixa da série histórica com informações comparáveis. O que importa é que ele só cursou até a quinta série primária, não tem um dos dedos da mão, comete erros de concordância, foi operário e chegou aonde não deveria ter chegado e onde não deveria estar. E uma pessoa dessa “qualidade” tem que ser monitorada em tudo o que diz e fala. A Globo, ao fazer a intervenção que fez em sua fala, durante sua entrevista, não faz mais do que proteger a boa formação e informação popular. O que ele diz tem que ser avaliado, o tempo todo, e criticado, o tempo todo, por aqueles que sabem, os que nasceram no lugar certo: na Casa Grande.

Há uma velha piada. Com certeza, todos conhecem. Mas me dou ao direito de contá-la novamente. Reza a lenda que, quando Deus fez o mundo, ele distribui as benesses e intempéries igualmente. Onde havia abundância de recursos minerais, ele também criava desertos, tundras, geleiras, escarpas e vulcões. Onde havia abundância de alimentos, ele colocava feras, víboras, animais peçonhentos. Onde havia abundância de recursos hídricos, ele colocava terremotos, maremotos e tsunamis. Menos num local: aquele que viria a ser o Brasil. Aqui não haveria terremotos ou vulcões. Não haveria feras terríveis. As terras seriam férteis. Não haveria desertos, geleiras, tsunamis, maremotos ou vulcões. Preocupados com a desigualdade na distribuição de benesses e recursos, os anjos perguntaram: Mas porque tantos privilégios para um lugar só. E Deus respondeu: Quando vocês virem a gentinha que eu vou colocar lá, vocês vão entender.  Pois é. Parece que o criador cumpriu a ameaça. Essa é a nossa sina.

*Carlos Águedo Paiva é Economista, Doutor em Economia e Diretor da Paradoxo Consultoria Econômica.

Leia na FONTE: https://red.org.br/noticia/espelho-espelho-meu-a-rede-globo-e-mais-doente-do-que-eu/

Imagem: Deviant Art  https://www.deviantart.com/lizardladyfla/art/Mirror-Image-Of-A-Troubled-Soul-1121282995