segunda-feira, 18 de outubro de 2021

A GLOBALIZAÇÃO ESTÁ QUEBRADA?

 


A globalização quebrou. Mas por quê?

Os motivos são muitos mas podem ser reduzidos a três. Um deles é que a globalização deu certo. Outro é a pandemia. O terceiro é que a infraestrutura do planeta não está preparada para uma economia que se digitaliza rapidamente. As três questões são independentes mas se correlacionam. Há uma tempestade perfeita em curso e as consequências são muitas. Em termos macroeconômicos está gerando inflação porque há pouca oferta e muita demanda. E a demanda não é só por produtos, é também por mão de obra que em muitas funções enfrenta escassez. 

 

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https://cidadania23.org.br/2021/10/17/pedro-doria-a-globalizacao-quebrou/

 

domingo, 10 de outubro de 2021

O ódio que o Facebook espalha

 


Por Pedro Dória, para canalmeio.com.br.

O discurso poderia ser de um nazista contra judeus — mas quem o faz em nada parece com um nazista. O monge Wiseitta Biwuntha, mais conhecido por Wirarthu, tem os olhos amendoados, a pele corada tão comum no Sudeste Asiático e a cabeça completamente raspada. Sempre que está em público, veste a roupa típica dos budistas teravada — dhonka e shemdap, que juntos parecem um manto só dum vermelho escuro, quase vinho. Pela aparência, não destoaria se estivesse ao lado o Dalai Lama. Mas não pelo discurso. “Se você comprar de uma loja de muçulmano”, Wirarthu afirma, “o dinheiro não para ali. Este dinheiro, ao fim, será gasto para destruir nossa raça a religião. Esse dinheiro será usado para atrair mulheres budistas e força-las a se converter ao Islã e, quando os muçulmanos tiverem população maior, vão nos engolir, tomar o poder em nosso país e transformá-lo numa nação demoníaca islâmica.” Em Myanmar, mais de 90% da população se identifica como budista. Hoje aos 53, o monge é o rosto mais conhecido do Movimento 969, que defende que budistas devem se casar com budistas, comprar em negócios budistas e trabalhar pela expulsão dos muçulmanos do país.

Wirarthu é um dos mais ávidos defensores da limpeza étnica em Myanmar. É, também, um importante aliado político dos militares nacionalistas.

O monge Wirarthu não está mais no Facebook. Foi expulso em 2018, após o genocídio da minoria rohingya no ano anterior. Mas, até lá, a rede foi a principal plataforma para seu discurso de ódio étnico. E não houve nada de acidental. Em Myanmar, o Facebook foi propositalmente utilizado como ferramenta para construção de um ambiente político instável que levasse à violência. O surgimento da internet do país, um fenômeno recente, coincidiu com a radicalização seguida de colapso da democracia, no início deste ano.

Até 2011, Myanmar era uma ditadura militar, um dos regimes mais fechados do mundo, que tinha como principal rosto Aung San Suu Kyi, a política que venceu o Nobel da Paz, em 1991. Suu Kyi foi libertada no momento em que o regime começou a abrir. Embora não tenha sido permitido a ela concorrer às eleições no primeiro pleito, seu partido venceu 43 das 45 cadeiras do Parlamento e iniciou uma lenta liberalização do país.

Um dos marcos da democratização foi acesso à internet. O preço de um cartão SIM para smartphones despencou, em 2012, de milhares de dólares para centenas. Continuava muito caro, mas tornou-se acessível para uma crosta da classe média alta. Em 2013 o monopólio estatal sobre as telecomunicações caiu e duas operadoras estrangeiras entraram — uma catari, a outra norueguesa. Em 2014, o SIM já custava um dólar, as lojas se encheram de smartphones chineses baratos e o uso de internet, principalmente em plataformas móveis, explodiu.

Como criar um ambiente de desinformação

A cultura digital que se desenvolveu no país a partir dali foi uma centrada no Facebook — a adoção da rede social no país foi a mais acelerada em qualquer nação já registrada pela empresa. Quase instantaneamente, no arco de um ano, mais da metade da população abriu uma conta na plataforma. O fenômeno não passou batido pelo monge Wirarthu. Muito menos pelos militares.

Antes do golpe militar de fevereiro deste ano, Myanmar nunca chegou a ser uma democracia plena. Os generais mantiveram, por toda década de 2010, o poder isolado de reformar a Constituição que havia sido promulgada na ditadura anterior. E a Carta determinava que o poder civil não poderia intervir nas Forças Armadas, que atuavam com orçamento próprio e plena liberdade.

Em 2017, dois anos após a ampla adoção da internet no país, o Exército já tinha um setor com 700 militares responsáveis por uma extensa campanha de desinformação no Face. Controlavam milhares de contas e páginas na rede, dentre elas as de celebridades, pop stars e até a popular Miss Myanmar, Shwe Eain Si, conhecida como SES. A população buscava seus ídolos sem saber que os influenciadores trabalhavam para o Exército, produzindo peças publicitárias de nacionalismo extremo e horror étnico. Em um de seus vídeos, narrado em inglês com legendas em birmanês, com a voz suave e um filtro difusor, SES prega a paz enquanto mostra fotografias falsas, gráficas de um verdadeiro terror, acusando os muçulmanos de ataques bárbaros contra budistas. (Ainda é possível assistir a este vídeo — mas o alerta cabe. É forte. E as acusações nele feitas são comprovadamente falsas.)

Embora não trabalhasse para o Exército, o monge Wirarthu passou a ter uma das páginas de Facebook mais visitadas no país. E ele republicava todos os boatos de violência, pregava que os muçulmanos secretamente controlavam o poder no novo governo, além de serem os donos do dinheiro em Myanmar. Em janeiro de 2017, um dos maiores advogados do país e conselheiro pessoal de Suu Kyi foi assassinado. Era um dos muçulmanos de maior visibilidade. Entre agosto e setembro do mesmo ano, pelo menos três mil pessoas da etnia rohingya foram assassinadas em manobras militares e mais de 800 mil fugiram do país para Bangladesh. Tentando ainda se manter no poder, Syy Kyi calou. Em dezembro a ONU classificou a ação como uma de limpeza étnica. Ou genocídio.

O governo civil nunca se recuperou da crise política aberta ali e dos constantes ataques via Facebook. Em 1o de fevereiro deste ano, caiu perante um novo golpe militar.

Uma das primeiras ações do regime democrático em Myanmar foi ampliar acesso à internet acreditando que, assim, abriria portas para o livre debate na sociedade. Mas quando o Facebook foi adotado espontaneamente como principal plataforma de diálogo, o elo quebrou.

Um estudo da ong jornalística Global Witness mostra o processo. Os investigadores criaram um perfil limpo, sem histórico passado, na rede de Myanmar. Fizeram então uma busca por notícias relacionadas ao Exército — o que qualquer um por lá inevitavelmente faz, tamanho o poder da instituição. No momento em que o primeiro like numa página relacionada aos militares foi dado, começaram a brotar recomendações de outras páginas. Em minutos o perfil antes vazio havia sido completamente dominado por desinformação racista, discurso de ódio e pró-golpe militar. Não é preciso grande esforço, o próprio algoritmo leva qualquer um a este tipo de conteúdo.

Durante a ditadura anterior, os militares acreditavam que se liberassem a internet, perderiam o controle do país. No Face, descobriram no curto período democrático que a internet poderia se tornar sua principal aliada. Com a ajuda da rede conseguiram criar o ambiente de incitação aogenocídio e tornar ao poder.

O monge Wirarthu foi expulso do Face em 2018, alguns meses após o genocídio. Àquela altura, ele já era habitualmente tratado como o ‘bin Laden budista’ pela imprensa internacional fazia muitos anos. Não era uma figura obscura e a natureza de seu discurso tampouco era desconhecida. O Facebook nunca explicou por que não havia tomado qualquer ação nos anos anteriores. Também foram expulsos generais, incluindo o comandante do Exército, num conjunto de 484 páginas, 157 contas e 17 grupos que “atuavam de forma coordenada em comportamento inautêntico”.

Mas, quando um tribunal internacional cobrou do Facebook, em 2020, informações que pudessem ajudar a reconstruir o caminho que o discurso do ódio online tomou para terminar em genocídio, a empresa se negou a entregar. O pedido, de acordo com a empresa, era “excessivamente amplo”. É também “intrusivo e oneroso”. Daria trabalho demais.

O Facebook também não informa quantos funcionários compreendem birmanês e são capazes de avaliar o conteúdo publicado.

No país vizinho

Em agosto de 2020, mais ou menos quando o Face se negava a entregar à Justiça dados que ajudassem a compreender o genocídio rohingya, outro monge budista começou a agir não muito longe de Myanmar. Mas, diferentemente de Wirarthu, Luon Sovath precisou fugir de seu país. O Camboja. Conhecido em todo o país, um ávido defensor dos direitos humanos, Luon Sovath foi vítima de uma campanha massiva de desinformação — ele não ameaçava, era ameaçado. Dentre o material que circulou no Facebook a seu respeito estava um vídeo muito pouco nítido que sugeria relações sexuais suas com uma mãe e as três filhas. Não só estaria violando o juramento de castidade como cometendo algo próximo do incesto num país particularmente conservador. A ameaça se mostrou tão relevante que ele teve de deixar o país.

O Camboja é uma ditadura e vem sendo governado, desde 1985, pelo primeiro-ministro Hun Sen, um homem de 69 anos que atuou como soldado durante o genocídio promovido pelo Khmer Vermelho durante a década de 1970. Assim como em Myanmar, por lá a internet é, em essência, o Facebook. A plataforma que todos usam. E, assim como as Forças Armadas de Myanmar, o governo tem um departamento dedicado a produzir conteúdo falso para a rede.

No caso de um dos vídeos envolvendo o monge Luon Sovath, repórteres do New York Times descobriram indícios ligando o material a dois funcionários deste departamento de propaganda.

Advogados de políticos da oposição, nos EUA, tentam já há três anos conseguir dados sobre a compra de publicidade no Facebook, para divulgação de conteúdo pró-governo. Um conjunto de e-mails vazados em 2017 sugerem que, por dia, o Estado gastava US$ 15 mil por dia para atrair visitas para suas páginas. Num país com 15 milhões de habitantes, a página do premiê tem quase 14 milhões de seguidores. Em sua campanha mais recente online, Hun Sen vem promovendo uma campanha de ‘moralização’ das mulheres que usam roupas ‘reveladoras’ online.

Morte africana

O cantor pop Hachalu Hundessa dirigia seu carro, no dia 29 de junho do ano passado, quando um homem se aproximou, disparou e o matou em um bairro periférico de Addis Ababa, capital da Etiópia. Hundessa tinha 34 anos e, por toda vida, alternou a militância política com a carreira de músico. Foi preso aos 17 por sua defesa de autonomia para o povo Oromo, ao qual pertence, e permaneceu nas cadeias da ditadura etíope por cinco anos. A carreira musical veio depois — “ele compôs a trilha sonora da revolução Oromo”, explicou um professor da Universidade Keele, na Inglaterra. “Um gênio lírico que incorporou as esperanças e aspirações do povo.”

Segundo a polícia, o assassino pertencia a sua etnia. O rapaz matou Hundessa porque o cantor se aproximara do premiê Ahmed Abiy, também Oromo, e que hipernacionalistas criticavam por contemporizar com outros grupos. Imediatamente após o assassinato, o Facebook se incendiou em acusações diversas, boatos e incitação. Nas horas seguintes, hordas tomaram as ruas da capital etíope. Propriedades foram destruídas e incendiadas. Houve uma série de linchamentos que terminaram com decapitações públicas.

Apenas um ano antes, em 2019, o corredor etíope Haile Gebreselassie tentou usar sua fama internacional para chamar atenção para outra explosão de ódio na região de Oromia. Ela deixou 81 mortos após informações falsas circularem no mesmo Facebook de que grupos rivais estavam sendo armados para ataques. Gebreselassie, recordista mundial de maratonas em 2008, foi ouvido na época por toda imprensa.

Em 2020, o Facebook dizia ter uma equipe de 100 pessoas responsáveis pela moderação de conteúdo no continente africano. Não revelava quantos compreendiam algum dos mais de 50 dialetos falados na Etiópia. Durante as eleições que ocorreram em junho deste ano no país, a empresa diz ter contratado falantes nativos de oromo, amharic e somali, que de fato são os troncos linguísticos mais importantes. Não afirmou quantos. Entre março e março, de 2020 a 21, o Face afirma ter retirado mais de 87 mil postagens de desinformação no país. O arco cultural do continente africano abarca mais de duas mil línguas.

O ponto

Com muita frequência, o que se publica a respeito de desinformação nas redes sociais trata de Estados Unidos, Europa, ou alguns outros países como o Brasil. O Brasil, noves fora a baixa autoestima local, é um país rico e importante na geopolítica mundial. Por conta de Jair Bolsonaro, tornou-se também um dos focos da imprensa internacional atenta ao drama da recessão democrática que ocorre no mundo.

Myanmar, Camboja, Etiópia e tantos outros não são foco. Em países como estes, as línguas faladas são pouco relevantes na economia mundial. Ninguém as fala com exceção de quem as tem como línguas maternas. Tensões étnicas não são novas em nenhum destes lugares. Ódio, autoritarismo ou violência muito menos. A história é longa. A diferença é a velocidade — de uma hora para a outra, pelas redes, boatos são espalhados espontaneamente ou por meio de uma máquina organizada para isto — e uma explosão se dá.

O Facebook já tem pelo menos um genocídio com seu nome.

A questão é simples: o algoritmo faz discurso de ódio circular com facilidade. Ele, o algoritmo, desmontou como a internet funcionava. Antes, pessoas precisavam buscar a informação que consumiriam. O algoritmo leva informação a elas. A nós. E, invariavelmente, é o tipo de material que atiça conflito. Assim como campanhas presidenciais como as de Jair Bolsonaro e Donald Trump utilizaram a ferramenta para ampliar o impacto de suas mensagens, outros movimentos autoritários no mundo já dominaram a técnica.

E a usam livremente. Muitas vezes, sem os holofotes da imprensa.

 

 

Fonte da Imagem: The Phantoms of the Brain by richworks on DeviantArt