sábado, 22 de maio de 2021

ENTENDA PORQUE BOLSONARISTAS MENTEM


 

A mentira do populista dá credibilidade

  Por Pedro Doria, para Canal Meio

O Flow podcast é um dos mais badalados programas digitais de debate da internet brasileira. De segunda a sexta-feira, exibido a partir das 20h, quando os dois apresentadores se reúnem ao redor da mesa para uma longa conversa com convidados. E, na semana passada, um trecho destes debates explodiu. Se tornou um dos mais badalados assuntos das redes sociais. Enquanto isso, na CPI da Covid, o general Eduardo Pazuello se tornava o terceiro ex-ministro do governo Jair Bolsonaro a sentar perante os senadores e mentir. Mentir, inclusive, a respeito de momentos gravados em vídeo. Facilmente desmontáveis.

No Flow, o confronto foi entre Gabriela Prioli, comentarista da CNN Brasil, e um dos apresentadores. Bruno ‘Monark’ Aiub. Monark vinha falando sobre educação no Brasil quando Gabriela questionou suas premissas. “Isso é muito chato”, ele reclamou. “Não poder conversar, falar sobre o que penso porque não tenho números e estatísticas.” Já não era mais uma conversa sobre um tema. Passava a ser uma conversa sobre como funciona o debate público. “Você pode falar tudo”, argumentou Prioli. “Mas pode estar falando uma mentira se não tiver um dado.” (Assista ao episódio.)

Quando confrontado na CPI após ter dito que o presidente jamais havia dado ordens para não comprar vacinas do Butantã, o ex-ministro da Saúde também se livrou da aparente incoerência. Os senadores o lembravam de que havia um vídeo, de ampla circulação, em que ele comentava com Bolsonaro ao lado — “um manda, o outro obedece”. A ordem do presidente era justamente de não comprar vacinas. “Aquilo foi apenas posição de agente político na internet”, argumentou o general. O que o presidente diz na internet não precisa ser verdade. Para Pazuello, era uma constatação natural. Para os senadores não-governistas, soou como ultraje.

A mentira, assim como um debate não baseado em fatos, fazem parte do arsenal de ferramentas dos novos líderes populistas e autoritários do mundo. Pode parecer paradoxal: mas é a fonte de sua credibilidade perante seus eleitores.

Os dois momentos talvez não pareçam relacionados mas revelam justamente este traço de nossa cultura política transformada pela comunicação digital. Em ambos os casos, a indignação de Monark ao ser cobrado e a maneira como o público bolsonarista recebeu os depoimentos dos ex-ministros na CPI, o que há em comum é uma busca por autenticidade. E, para compreender este processo, é útil pensar em populismo de uma forma nova.

Tradicionalmente, populismo é visto como uma ferramenta política. Um estilo de fazer política.

O desafio de todo líder é juntar eleitores e conquistar eleições. O candidato populista faz isso construindo uma relação de identidade entre ele e o público na qual, juntos, formam um mesmo povo que têm um problema. Seus objetivos não têm sido alcançados por conta da elite. O líder é quem será capaz de furar este bloqueio. O populismo é, por esse ângulo, uma performance do líder político. Um jeito de agir no palanque, um jeito de construir o discurso para seduzir eleitores.

A cientista política inglesa Catherine Fieschi, professora da London School of Economics e diretora da consultoria Counterpoint, é uma dentre uma nova geração na ciência política que propõe enxergar o populismo não como método mas como ideologia. O método é uma tática para conquistar um objetivo — a eleição. Candidatos podem lançar mão de um discurso populista quando lhes interessa ou não. Faz parte do arsenal que têm à disposição. Ideologia é bem mais do que isso. Ideologia é toda uma visão de mundo. É a maneira como se compreende a realidade.

A vantagem desta lente, de enxergar populismo como ideologia, é que fica mais fácil entender como mentiras escancaradas se tornam, para os eleitores destes novos líderes, garantia de maior credibilidade.

Na definição de Fieschi, a ideologia do populismo, um pacote fechado e autossuficiente de ideias, começa na crença de que há um mesmo povo, que é homogêneo e soberano. A democracia deveria garantir — a este povo que é homogêneo — controle sobre a sociedade. Como esta visão rejeita a ideia de que há diversidade social grande, qualquer governo que represente outros anseios é visto, automaticamente, como não democrático. Não representa, afinal, o verdadeiro povo. A ideologia do populismo, neste momento, acusa a traição da democracia e busca quem represente autenticidade.

O conceito liberal de democracia não tem nada disso. Pelo contrário: parte justamente da premissa de que há correntes de opinião distintas na sociedade, de que há anseios diversos. Democracia é a forma que permite que estas correntes possam negociar suas diferenças. Quando um líder populista fala de democracia, porém, ele está falando de algo completamente distinto. Ele está falando como representante do único ‘povo verdadeiro’. A crença de que o ‘povo’ é homogêneo, que quem é diferente está à parte deste ‘povo’, é fundamental nesta ideologia. E é aí que esta ideia de autenticidade é o conceito-chave.

O eleitor que segue a ideologia do populismo está em busca de autenticidade em seus líderes. Esta busca é norteada por uma emoção forte — a do ressentimento. A sensação de que elites humilham quem está embaixo. Não se trata de elite apenas no sentido econômico — a elite compõe, aqui, quem tem autoridade em uma sociedade. Quem tem dinheiro, claro, mas também quem tem poder, e quem tem conhecimento. Este ressentimento nasce da percepção de que seus anseios pessoais, os do povo homogêneo, não podem nunca ser atendidos porque estas elites — quem tem dinheiro, poder ou conhecimento — o impedem. Mais do que isso. As elites tratam de forma depreciativa estes anseios. É como se ter acesso ao poder ou mesmo participar do debate público fosse impossível ao verdadeiro povo. Que é homogêneo.

Autenticidade, portanto, é um jeito de pensar e um jeito de agir. O líder autêntico pensa como o povo. Se manifesta como o povo. E desafia as elites no que vê como sua arrogância. Não joga o jogo conforme as regras da elite. É um herói do povo.

E está lá na frase de Monark para Gabriela Prioli. “Quando falo o que penso”, ele se queixa, “você vem com quais são os dados. Se não tenho os dados, pronto, o que penso está inválido, você nem contempla minha opinião.” Ou seja, o senso comum é desvalorizado. Aquilo que ‘todo mundo pensa’ é desprezado pelas elites. É desprezado porque o senso comum não consegue se impor num debate em que argumentar com fatos é exigido.

Aí, o problema da democracia é que, se num debate é preciso sustentar com argumentos uma visão, as regras do jogo se mostram construídas para impedir que este senso comum baste. E faz isso, segue a percepção, humilhando.

O que o líder populista faz é se recusar a seguir as regras do jogo habitual. Ele é grosseiro. Ignora propositalmente a correção política. É abertamente preconceituoso: racista, xenófobo, homofóbico, chauvinista. E, sim, mente. Mas não mente como políticos costumam mentir. A mentira política comum é aquela que tenta esconder algo. Ou justificar uma decisão errada. São mentiras que têm consequências. As mentiras do populista têm outra natureza. Ele não se baseia em fatos para sustentar suas convicções. Se baseia em impressões, no instinto, em histórias de ouvir falar. Ele não tem justificativas que não o sentimento de que está certo. De que sentir esta certo basta.

Quando mente, quando ignora fatos, está em essência desafiando a ‘lógica do sistema’. A lógica que impede ao seu eleitor que participe do debate. Uma lógica, que o eleitor sente, o oprime.

No centro do novo movimento populista e autoritário está a palavra, o diálogo, a linguagem. Não é à toa. O que o multiculturalismo produziu, nas últimas décadas, foi uma nova linguagem que reconhece uma sociedade heterogênea. Faz parte deste conjunto um novo vocabulário — como, por exemplo, nomear LGBTs, pessoas de outras etnias. Uma busca por palavras que não ofendam. Faz parte, também, um jeito de conversar. A garantia de tempo para quem não é ouvido, respeito à legitimidade da opinião de quem traz a vivência de certas experiências.

Na sua forma mais sutil, o multiculturalismo reflete uma particular atenção à cortesia e o respeito aos espaços de fala de quem tem certas experiências de vida. Na forma mais radical, abole a designação de gênero, todes, todxs. Mas, principalmente, o multiculturalismo é esta nova linguagem que existe para reconhecer diversidade. Esta é a essência do multiculturalismo, do cosmopolitismo liberal progressista que se implantou nas últimas décadas. É natural, portanto, que a ideologia que reage a esta mudança comece por uma repulsa à linguagem.

A linguagem do neopopulismo será caricaturalmente grosseira e rejeitará qualquer discussão que, por princípio, reconheça a sociedade como heterogênea. Seu princípio é justamente não reconhecer a diferença. Só o ‘povo homogêneo’ existe.

“Há um paradoxo a respeito da palavra”, escreve Fieschi em Populocracy: The Tyranny of Authenticity and the Rise of Populism (Amazon Brasil), livro que lançou em 2019. Populocracia: A Tirania da Autenticidade e a Ascensão do Populismo, não lançado no Brasil. “Por um lado, muitos dos com quem conversei valorizam a compreensão instantânea um do outro, de pessoas ‘como eles’. Valorizam que se diga as coisas na cara, com clareza ainda que grosseira. Valorizam uma sociedade em que se pode dizer o que se pensa com a garantia de que ninguém será mal compreendido.” E este é o problema percebido no multiculturalismo. Em sociedades europeias nas quais a transformação passa pela chegada de imigrantes, gente com sotaques e tons diversos de cor na pele, o multiculturalismo interdita a conversa sobre o desconforto que muitos sentem com estas pessoas diferentes. Noutras sociedades, como a brasileira, o novo vocabulário da política dificulta a entrada no debate para quem rejeita políticas públicas voltadas para os tradicionalmente excluídos para quem é tradicionalmente excluído — mulheres, negros, indígenas etc.

O foco está, sempre, em rejeitar a ideia de que o povo é composto por grupos com muitas diferenças e reforçar a ideia de um povo verdadeiro e homogêneo.

Daí que ignorar fatos e falar o que se sente é ser autêntico. Ir a um interrogatório de CPI e ignorar por completo as normas habituais — recusar as regras do jogo — é igualmente ser autêntico. Amplia a credibilidade, não a diminui. Porque rejeita a linguagem da democracia liberal, multicultural, para abraçar um outro conceito de democracia. Um significado em todo diferente para a palavra.

“A mentira do populista”, escreveu a cientista no Guardian, “tem por objetivo ser percebida. É o contrário da mentira que quer esconder algo. No jogo que o populista joga, mentir é glorificado. É um instrumento de subversão, seu objetivo é mostrar que o líder cruzará qualquer limite para ‘servir ao povo’. Estas mentiras são símbolos de que estes políticos não se restringem às normas correntes da elite liberal democrata. Enquanto liberais democratas se preocupam em sinalizar virtude, populistas sinalizam repulsa.”

Repulsa à diversidade. A um mundo transformado.

É uma política de apelo aos instintos, não ao cérebro.

 

 

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sábado, 15 de maio de 2021

ESTÃO REABERTAS AS PORTAS DA PERCEPÇÃO?



Por Leonardo Pimentel, para Canal Meio


“O remédio para a alma.” Foi assim que o químico suíço Albert Hofmann (1906-2008), às vésperas de completar cem anos, descreveu sua mais famosa descoberta, a dietilamida do ácido lisérgico, popularmente conhecida pela sigla em alemão LSD. O cientista morreu dois anos depois sem jamais aceitar que sua criação fosse proscrita como entorpecente em todo o mundo e não usada como ferramenta terapêutica. Bem, se tivesse vivido mais uma década, Hofmann estaria vingado. Hoje, drogas psicodélicas se apresentam como a nova fronteira dos tratamentos psiquiátricos e atraem milhões de dólares em investimentos – embora continuem ilegais.

No início desta semana, a revista Nature, uma das mais respeitadas revistas científicas do mundo, publicou o resultado de uma pesquisa sobre o uso da 3,4-metilenodioximetanfetamina (MDMA, ou mais popularmente, ecstasy) em pacientes com síndrome de estresse pós-traumático. Claro, a droga não é consumida como nas raves, mas de forma assistida e acompanhada de sessões de psicoterapia – e sem música eletrônica.

Uma semana antes, o igualmente prestigiado New England Journal of Medicine publicou um estudo sobre o tratamento da depressão comparando a psilocibina, princípio ativo dos “cogumelos mágicos” popularizados pela obra de Carlos Castañeda (1925-1998), com o popular medicamento Escitalopram. Adivinhem. Os cogumelos foram mais eficientes.

É a redenção de profissionais como o psicólogo Rick Doblin, responsável pelo estudo publicado pela Nature, que há 40 anos rema contra a maré estudando as possibilidades terapêuticas das drogas psicodélicas. Hoje ele comanda a Associação Multidisciplinar Para Estudos Psicodélicos (MAPS, na sigla em inglês), um conglomerado de pesquisa irrigado por fundos de Wall Street que veem nas drogas psicodélicas o futuro da psiquiatria. Segundo o New York Times, a expectativa é que a Agência para Drogas e Alimentos (FDA, a Anvisa americana) libere medicamentos baseados em MDMA em 2023 e os de psilocibina até dois anos depois.

Não que estudos sobre o uso terapêutico de psicodélicos sejam novidade. Entre 1960 e 1963, o psicólogo Timothy Leary (1920-1996), que já conduzia experiências do gênero em Harvard, desenvolveu um experimento com detentos da prisão de Concord, em Massachusetts. Segundo seu levantamento, o grupo de presos submetidos voluntariamente ao tratamento com drogas psicodélicas teve uma taxa de reincidência no crime de 20%, contra 60% da média do presídio. Leary, porém, acabou demitido de Harvard e enfrentou uma brutal perseguição pelo governo dos EUA.

E o LSD, que iniciou esta conversa? Bem, há alguns anos ele se tornou, em doses controladas, o motor da criatividade no Vale do Silício. Profissionais das Big Techs descobriram que pequenas quantidades do ácido podem provocar insights impossíveis em estados normais de consciência. Claro, há que se ter limites. No fim de abril, Justin Zhu, CEO da startup Iterable, foi demitido após, supostamente, tomar uma dose de LSD antes de uma reunião com investidores. Confundir possíveis parceiros comerciais com elefantes roxos pode não ser uma boa ideia.

Mas vamos combinar que psicodelismo não é só medicina. Ele contribuiu muito para a arte, a começar pelo livro As Portas da Percepção, de Aldous Huxley. White Rabbit (YouTube), do Jefferson Airplane, The End (YouTube), de The Doors, e Set The Controls For The Heart Of The Sun (YouTube), do Pink Floyd, que o digam.

Por Leonardo Pimentel

 

 

Fonte do Texto: Drogas psicodélicas dão a volta por cima - http://www.canalmeio.com.br/notas/drogas-psicodelicas-dao-a-volta-por-cima/?h=T21hciBSw7ZzbGVyfDgyMzA4

 

Fonte da Imagem: https://wallhere.com/pt/wallpaper/237116