sábado, 21 de agosto de 2021

O CEMITÉRIO DE IMPÉRIOS

 

 

Afeganistão, cemitério de impérios

 

Por Pedro Doria, para Canal Meio (canalmeio.com.br)

No ano de 1901, explodiu como best-seller nas livrarias londrinas Kim, um pequeno romance adolescente de Rudyard Kipling. A rainha Vitória havia morrido fazia meses, o Império Britânico estava próximo do fim, mas isso ainda não era óbvio. Como Mowgli, o menino lobo, seu personagem anterior de sucesso equivalente, Kipling fez de Kim um rapaz esperto e atento, capaz de livrar-se de toda sorte de desventuras, mas fundamentalmente preso entre dois mundos. Não era, porém, entre o mundo animal e o humano. Desta vez, era entre Oriente e Ocidente. Menino órfão e muito pobre zanzando pelas ruas de Lahore, no atual Paquistão, Kim era filho de pai irlandês e mãe inglesa, mas tão queimado de Sol e falava a língua local com tanta fluência que ninguém o percebia como branco. Parecia mais um dos patanes, uma das etnias comuns à região, e esta sua ambiguidade étnica logo se mostraria útil à espionagem do Império. Pois Kim, o romance, também popularizou entre os britânicos uma nova expressão para aquilo que o Império jogava naquele canto do mundo. O Great Game, o Grande Jogo. A disputa militar e diplomática entre os dois impérios, russo e britânico, por terras e espaço de atuação. Um choque que se dava numa terra tão pobre quanto Kim, tão ambígua quanto o personagem. A história se passa uns vinte anos antes da publicação, logo após o fim da Segunda Guerra Afegã — uma guerra vencida pelos ingleses, que puseram no Afeganistão um governo que lhe era fiel para criar um colchão entre o território russo e a Índia britânica. O Império onde o Sol nunca se põe, com domínios que iam do Canadá à China, ainda parecia que duraria para sempre. Mas o Grande Jogo não havia terminado — ninguém nunca conquista realmente o Afeganistão. Na Terceira Guerra Afegã, que começou em 1919, os ingleses terminariam humilhados. O Grande Jogo terminou com o Império derrotado não pela Rússia, que vivia uma revolução comunista, e sim pelos afegãos.

Sempre foi assim. Como aprenderam os americanos esses dias, em sua terra os patanes sempre vencem. Desde Alexandre, o Grande, incontáveis impérios aprenderam a mesma lição. É sempre fácil derrota-los em batalha aberta. E é sempre impossível derrota-los em definitivo. Nunca morrem, estão sempre lá, nunca desistem. E sempre voltam.

Dois mundos

O hábito de estudar história com a Europa no centro dos acontecimentos às vezes nos atrapalha a compreensão do mundo. Fica parecendo que o Ocidente tem início onde a Europa começa. Chamamos, assim, a terra ocupada por árabes, judeus e persas de Oriente Médio. Mas, culturalmente, a divisão não é esta. Há, sim, uma profunda divisão na maneira de compreender a existência entre Ocidente e Oriente ¬— mas a transição se dá na Índia.

Se fosse possível simplificar — e há exceções em ambos os lados —, a divisão cultural se dá assim. Em sua maioria, as religiões ocidentais são teístas. Têm um ou mais deuses que estão acima de nós humanos. A escrita das línguas ocidentais é fonética — representamos os sons das palavras quando as escrevemos. E, principalmente, compreendemos o tempo como linear, uma contínua e lenta evolução, um caminhar para a frente. A Índia, o Paquistão, o Afeganistão, estão no meio entre estes dois mundos. A humanidade naquele canto da Terra tem características de ambos. Mas, quando chegamos ao Oriente, as religiões em geral não têm deuses, se concentram na compreensão da existência em conjunto com o Universo. A escrita em geral representa as ideias por trás das palavras, e não os sons. E o tempo, como a história, são compreendidos como circulares. Ciclos que se abrem e se completam para novamente se abrir.

Há diferenças nítidas e, no entanto, tanto Oriente quanto Ocidente sempre buscaram comércio entre si. Para que este comércio se desse, foi sempre preciso passar pela terra dos patanes. É um canto do mundo onde jamais nasceu uma grande civilização — não no sentido que costumamos dar à palavra. Não há uma Mesopotâmia, uma Pérsia, uma China, uma Roma, uma Índia, uma Grécia, um Egito. Mesmo as duas maiores cidades afegãs, Kabul e Kandahar, só começaram a parecer mesmo cidades, da maneira como compreendemos o que uma cidade é, com prédios de vários andares e ruas que se cruzam, divididas em bairros, a partir do século 20. Antes, como a maioria das cidades afegãs, pareciam essencialmente grandes fortalezas perdidas num canto ermo e particularmente perigoso do mundo. Por isso mesmo, para garantir a segurança das caravanas de comércio que trafegavam com grandes valores, impérios cientes de seu grande poderio militar sempre acharam conveniente conquistar o que hoje chamamos Afeganistão. Se eram capazes de enfrentar outros impérios, não seria ali que perderiam algo. Sempre perderam. Os persas perderam. Os mongóis perderam. Os soviéticos perderam.

Ou, talvez seja melhor dizer: pareceram dominar por um tempo, mas nunca controlaram de fato as tribos da região e, num ambiente de exaustão pelo conflito que nunca acabava, terminaram deixando exauridos a terra dos patanes. Exatamente como, agora, fazem os EUA.

Há razões para isso — razões que começam pela inexistência de cidades. Na Ásia Central, ao invés de cidades existem estruturas que eles chamam de kuhandiz mas que o resto do mundo costuma se referir pelo nome árabe. Qal’ah, muitas vezes transcrito como qalat. São cidadelas, cidades muradas. Grandes paredões erguidos alto, não raro com torres espaçadas. As casas, também construídas de forma sólida, grandes paralepípedos, ficam tradicionalmente no interior dos muros. Há casas também no lado de fora, mas a organização de cada vila como fortaleza já mostra que se trata de uma cultura voltada para a guerra. A invasão de uma qalat é sempre muito difícil.

Uma das bases utilizadas pelos americanos no Afeganistão, nesses últimos vinte anos, foi Ball Haizer. Seu apelido é Castelo de Alexandre, por ter sido erguido quando o conquistador grego fazia seu caminho em direção à Índia. Dois mil anos atrás. Uma qalat que, não à toa, fica na cidade batizada há muito de Qalat. A preponderância da estrutura fez do termo genérico um nome próprio.

Mas não é apenas que as pessoas se distribuíram por fortalezas no Afeganistão. A geografia faz do lugar uma fortaleza natural, com imensas cordilheiras formadas por montanhas particularmente escarpadas. Dois terços é cortado pelo Hindu Kush. É um relevo difícil para qualquer estrangeiro, mesmo com toda tecnologia. Um relevo amplamente dominado por quem nasceu e sempre viveu ali, mas que também dificulta a formação de grandes aglomerações humanas. Este é um dos motivos de cidades terem demorado tanto a ganhar forma. A geografia incentivou a tribalização do país. E, até hoje, a principal fidelidade das pessoas é à sua tribo. Incontáveis afegãos, desde sempre, passam a vida inteira sem nunca deixar a aldeia em que nasceram. E, como qualquer terra cuja história é uma sequência milenar de invasões estrangeiras, todos por natureza desconfiam das intenções de quem vem de fora.

Mas uma lição a história deixou e o povo patane aprendeu. Eles vão continuar ali. O estrangeiro uma hora não aguenta os constantes ataques que vêm do nada, de pessoas protegidas e escondidas pelas escarpas do Hindu Kush. E vai embora. O budismo já foi proeminente, faz alguns séculos que sua religião é Ocidental. O Islã. Mas entendem o tempo à Oriental — como ciclos. As invasões vêm, e sempre vão. Basta esperar. E manter os ataques. Os americanos não demoraram dez anos para encontrar Osama bin-Laden à toa. É possível desaparecer por muito tempo nas montanhas afegãs. Bin-Laden foi encontrado ao se mudar para o Paquistão.

A tragédia afegã

A resiliência afegã representa força mas disfarça uma tragédia humana. A história de invasões deixou marcas e cicatrizes de toda sorte. Além dos patanes, que formam a maioria étnica, no país ainda convivem outras três etnias. Tadjiques, uzbeques e hazaras. Este último povo descende dos invasores mongóis, tem os olhos puxados e é uma constante lembrança de que o país faz fronteira tanto com o Irã, a Oeste, quanto com a China, ao Leste. Literalmente no meio do caminho entre dois mundos. Mesmo. Outra marca é a língua mais falada — pashto, próxima do persa e particularmente próxima do persa antigo, dos homens que escreveram os textos zoroastristas.

Já as cicatrizes, principalmente as deixadas nos últimos 40 anos, são duras. Na década de 1970, Kabul era uma cidade popular para estudantes mochileiros europeus atraídos por um certo exotismo oriental. Tinha um bom haxixe, se dizia. A universidade da capital recebia tanto alunos homens quanto mulheres e minissaias não eram raras. Embora algumas escolhessem usar burqas, que eram mais comuns no interior, havia também mulheres que sequer usavam véus.

Isto mudou com a invasão soviética, em 1979. A URSS estava incomodada com a crescente influência americana no Paquistão e, como segue o ciclo histórico, achou por bem invadir a terra dos patanes. Como de hábito, a conquista se consolidou após alguns meses. Quando os russos deixaram o Afeganistão, dez anos depois, exasperados, não haviam conseguido consolidar o poder no país. Mas o deixaram destruído.

Durante aquela década de 1980, os Estados Unidos viam com preocupação dois avanços naquele canto do mundo. O do Irã após a Revolução Islâmica xiita do aiatolá Ruhollah Khomeini e o da URSS sobre o vizinho Afeganistão. Então recorreram a parceiros tradicionais — paquistaneses e árabes sauditas. No jogo da geopolítica, consideraram que era boa estratégia financiar e armar os mujahedins, guerrilheiros patanes, para que lutassem contra o adversário comunista. Foi o tempo em que chegaram as escolas religiosas wahabitas, a versão radicalizada do Islã sunita que a Arábia Saudita espalha pelo mundo muçulmano.

A palavra talib, em pashto, quer dizer estudante. Era a palavra usada para designar os guerrilheiros que estudavam nas escolas patrocinadas pelos sauditas. No plural, Taliban.

O país que passou o século 20 se sofisticando foi fisicamente destruído pelos soviéticos, mas ainda não havia sido condenado a uma religião única e opressora. A saída do último invasor deu espaço a uma guerra civil entre os diversos grupos étnicos só encerrada em 1996. Com a vitória do Talibã. Que acolheu o grupo saudita que já fazia mais de década o auxiliava — um grupo que atendia pelo nome al-Qaeda.

Tendo enfim erguido o primeiro país que considerava genuinamente muçulmano no planeta, que seguia a única forma realmente pura do Islã, seu líder, o saudita Osama bin-Laden, pôs os olhos no resto do mundo. Entendeu que para expandir a religião que dividia com o Talibã, precisava antes derrubar o governo que via como corrupto em seu próprio país. Um governo cuja corrupção, a seu modo de ver, tinha por origem as relações com os Estados Unidos da América.

Bin-Laden começou, então, a planejar.

sábado, 14 de agosto de 2021

UM POUCO DE HISTÓRIA: GOLPES MILITARES NO BRASIL

 

Seis golpes militares e um que fracassou

 

Por Pedro Doria, para Canal Meio (canalmeio.com.br)

De tempos em tempos, fechados em seus gabinetes, generais do Exército concluem que têm o direito de decidir quem governará o Brasil. De 1889 para cá, aconteceu mais de uma dezena de vezes. Em seis delas, os oficiais tiveram sucesso. Esta é a história de cada um destes seis golpes de Estado. E de um que fracassou.

1889

O marechal Deodoro da Fonseca estava doente, tomado por uma crise asmática, na manhã de 15 de novembro, em 1889. Ainda assim sua casa foi tomada por militantes republicanos que o puseram num coche. Deodoro, de mau humor. Ao chegar ao Campo de Santana, onde trabalhava o primeiro-ministro, visconde do Ouro Preto, Deodoro deixou a carruagem, montou a cavalo, entrou no palácio, derrubou o premiê dizendo poucas palavras e voltou para casa onde se trancou sem querer receber mais ninguém.

Em momento algum deixou claro se havia derrubado só o gabinete ou se havia encerrado também a monarquia brasileira.

O imperador dom Pedro II, àquela altura, estava longe do Rio, na cidade de Petrópolis, quando recebeu no fim da manhã um telegrama de Ouro Preto informando de sua deposição. Tomou um trem para a capital e, do palácio imperial, mandou convocar Deodoro. Que o ignorou.

Amanheceu o 16 de novembro com sua residência cercada por soldados armados.

A história dos golpes brasileiros é marcada por muitos eufemismos. O de 1964 foi por anos chamado de ‘revolução’, atualmente os militares preferem trata-lo por ‘movimento’. O de 1889 éestá nos livros como ‘proclamação da República’. Alguns dos golpes militares em nossa história foram organizados. Os generais se reúnem, combinam o jogo, destituem o governo e encerram a Constituição. Outros foram confusos, com bateção de cabeças, planos vagos, nenhum acordo claro. Acabaram dando certo mais por omissão dos governantes que decidiram não resistir. Foi, igualmente, o caso de 1889 e 1964.

As Forças Armadas brasileiras se formaram profissionalmente a partir da Guerra do Paraguai e saíram com prestígio. Mas este prestígio não foi retribuído pelo Império na forma de salários e poder. Ao mesmo tempo, principalmente na elite agrária, em fins da década de 1880 havia insatisfação com a abolição da escravatura. As duas forças políticas levaram ao golpe desajeitado que tornou o Brasil uma república e pôs em seu comando um marechal.

1891

Mas era um inepto, Deodoro, como governante. A inflação disparou e ele não conseguiu garantir apoio político. Em 1891, o Congresso entregou uma Constituição para a República e, por uma margem tênue, elegeu indiretamente Deodoro, o que deveria consolidá-lo na presidência. Tinha, porém, a oposição de boa parte dos integrantes do movimento republicano. Numa situação de instabilidade, com líderes políticos regionais ameaçando pegar em armas contra o governo, o marechal tomou a decisão de fechar o Congresso Nacional. Foi o Golpe de 3 de novembro.

Só que havia um problema: ele não contava com a lealdade do Exército.

Quem tinha este apoio era Floriano Peixoto, também marechal, seu vice-presidente, e número dois das Forças Armadas desde os tempos do imperador. Em 23 daquele mês, os navios atracados na Baía de Guanabara voltaram seus canhões para a capital e ameaçaram bombardear a cidade caso Deodoro não renunciasse.

Renunciou, pois, tendo perdido tanto Exército quanto Marinha. Dois golpes seguidos, um após o outro. A República demorou décadas para se estabilizar. Inúmeros movimento armados eclodiram. Alguns populares, outros de suboficiais, muitos rurais, tantos urbanos. Mas aquela instabilidade institucional que marcou o período entre 1889 e 91 passou por um tempo.

Ao menos, até os militares começarem a questionar novamente os civis.

Um golpe fracassado

No início da tarde de 6 de julho, em 1922, ainda antes das 14h, 28 militares deixaram o Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro, em direção ao palácio presidencial no Catete. Quatro tenentes, os outros soldados, haviam decidido por um suicídio ritualizado. Pouco mais de um dia antes, na madrugada de 5, havia sido tentado um levante militar para derrubar do poder o presidente Epitácio Pessoa. O líder golpista era um ex-presidente: o marechal Hermes da Fonseca. Sobrinho de Deodoro e o mais condecorado militar do Exército brasileiro. Mas durante uma noite confusa, o levante na Vila Militar havia fracassado e os oficiais amotinados foram presos. Dentre eles, o tenente Arthur da Costa e Silva. Àquela altura, dentre os rebeldes, só haviam sobrado aqueles 28 do Forte de Copacabana. Pois decidiram não se render e marchar contra o Palácio do Catete plenamente conscientes de que no caminho seriam interceptados por tropas leais ao presidente.

Pois foram.

Não se sabe quantos deles chegaram à rua Barroso — alguns foram perdendo a coragem e fugindo pelo caminho. Eram mais de dez, possivelmente menos de 15, mas a história registrou um número mítico. Os Dezoito do Forte. Pois foi àquela altura que soou o primeiro tiro, abatendo um praça que caiu imediatamente morto. Os homens se atiraram na praia, buscando proteção na mureta de concreto que separava a pista da areia. Por mais de uma hora, aquela dezena e pouco resistiu ao assédio de mais de mil soldados. Quem viu lembra que parecia chover no mar de tantas balas que caíam. Foi um massacre — sobraram vivos apenas dois, muito feridos. Os tenentes Antonio Siqueira Campos e Eduardo Gomes. Anos depois, a rua Barroso teria seu nome trocado pelo de Siqueira.

Os Dezoito do Forte deram início a uma onda de revoltas que tomariam o país nos anos seguintes e o movimento ganharia nome. Tenentismo. Aqueles tenentes como Siqueira, Gomes e Costa e Silva eram formados pela turma admitida em 1918 pela Escola Preparatória de Oficiais do Realengo, que anos depois seria substituída pela Academia Militar de Agulhas Negras. Foram, eles, os primeiros oficiais formados profissionalmente pelo Exército Brasileiro, com uma escola própria de nível universitário. Siqueira e Gomes foram líderes importantes do movimento, junto de Luís Carlos Prestes, Juarez Távora e João Alberto Lins e Barros.

Sua geração consolidou a convicção que herdou dos oficiais que os antecederam.

O princípio era simples: militares são formados para dar a vida à nação. São disciplinados. Têm apenas os interesses do país em mente. Nenhuma instituição, portanto, é mais leal ao Brasil do que as Forças Armadas. Quando os políticos traem o país, em nome da pátria são militares que têm o dever de salvá-la. Ao longo dos anos 1920 este modo de pensar impregnou nas Forças Armadas. E, nos três golpes de Estado que marcaram as décadas seguintes, líderes tenentistas estiveram envolvidos.

De alguma forma, o espírito democrático nunca pegou nas Forças Armadas. O atual discurso de generais contra o Supremo Tribunal Federal deixa isto claro.

1930

Na manhã de 24 de outubro, em 1930, deixaram o mesmo Forte de Copacabana um grupo de oficiais liderados por dois generais — Augusto Tasso Fragoso e João de Deus Mena Barreto. Desta vez, não encontrariam qualquer resistência. Ambos estavam numa conversa permanente desde a véspera. Mena havia procurado Tasso para lhe informar que, em discussões com outros generais, haviam concluído que o presidente Washington Luís Pereira de Souza não tinha mais condições de governar. “Já se achavam articulados os elementos necessários à pacificação do país”, afirmou. “Não é justo que Exército e Marinha”, continuou Mena Barreto, “se aferrem à defesa de um governo que a nação já não suporta. A força armada é servidora desta e não daquele.”

Àquela altura, tropas rebeladas compostas por soldados e policiais militares, que tinham entre os líderes Eduardo Gomes e João Alberto, estavam no Paraná prestes a avançar sobre São Paulo. Siqueira Campos havia morrido afogado meses antes e por isso não caminhava com os antigos companheiros. Prestes se juntara aos comunistas e assim escolheu outro caminho. Aquelas topas, não. Sua intenção era colocar no governo o governador gaúcho Getúlio Dornelles Vargas. E era tendo em mente este avanço rebelde que o alto-comando do Exército tomou sua decisão. Ao invés de proteger o presidente e a Constituição, precipitaria sua queda.

Ao chegar ao palácio presidencial, os dois generais já traziam consigo o contra-almirante Isaías de Noronha, representando a Marinha. (A Aeronáutica ainda não havia sido formada.) Apenas na véspera, irritado, Washington Luís havia proibido seus auxiliares de trazerem a ele as histórias que circulavam na capital de que um golpe de Estado estava em marcha. Havia se convencido de que eram boatos, de que o Exército lhe era fiel. Os três oficiais entraram no palácio e pediram que o presidente fosse informado de sua presença. Então se sentaram. E esperaram. Àquela altura, por ordens suas, o palácio já estava cercado. Washington Luís podia ter se movido ao autoengano até aquela manhã, mas já não era mais possível. E, ainda assim, não mandava entrar aqueles oficiais. Os três homens esperaram. E esperaram. Até que desistiram. Se levantaram, atravessaram salas uma após a outra, e simplesmente abriram a porta do presidente. Encontraram-no de pé à cabeceira da mesa, com todos seus ministros também de pé.

“Disse-lhe que ele de certo compreenderia o nosso pesar de sermos obrigados a assumir aquela atitude”, escreveu mais tarde Tasso Fragoso. “Naquele momento só uma coisa me preocupava, a vida dele”, registrou não sem um quê de cinismo. “É a única coisa que não me preocupa”, respondeu o presidente. Mas, com o palácio cercado e aqueles dois generais mais um contra-almirante à frente, não havia escolha. Horas depois, Washington Luís deixou o prédio num automóvel.

A imagem foi registrada por um jovem repórter que havia recebido a notícia de que aquele golpe estava em curso. Roberto Marinho fez ali a foto que se tornou o mais importante furo de sua carreira.

Quando Getúlio enfim chegou ao Rio, Tasso, Mena e Noronha ocupavam o governo federal e o repassaram ao novo presidente.

1937

Foram anos intensos e confusos os primeiros de Vargas no poder. A Primeira República caiu, Washington Luís foi exilado, e em 1932 São Paulo se levantou rebelada. O presidente gaúcho tomou o poder derrubando um presidente paulista, alijara a elite daquele estado e havia prometido uma Assembleia Constituinte. Não aconteceu. A guerra civil veio e foi, deixando quase dois mil mortos, a Constituinte então foi entregue e, em 1934, o país ganhou a Constituição mais democrática que teve até chegar a de 1988. Entre outros temas, determinava eleições presidenciais para dali a quatro anos.

É só que, quando a campanha eleitoral já estava em curso e chegava o segundo semestre de 1937, Getúlio Vargas não se sentia ainda disposto a ceder o poder. Apenas um novo golpe de Estado, que pusesse abaixo mais uma Constituição, poderia lhe garantir isso. Só que golpes exigem justificativas. Em 1930, havia exaustão com os fracassos do regime que durava já desde o primeiro presidente eleito, sucessor de Floriano Peixoto. Em 1937 seria necessário contar uma história e ela veio na forma de uma mentira. O Plano Cohen.

Naquele ano, um jovem coronel chamado Olímpio Mourão Filho redigiu um plano que indicava como uma revolução comunista poderia acontecer no Brasil. Mourão Filho não era comunista — na verdade, estava num lugar ideológico diametralmente oposto. Era o número dois da milícia fascista da Ação Integralista Brasileira. Ao longo da vida, o coronel disse que escreveu o texto como um estudo para ter um cenário sobre o qual pudesse pensar a defesa do país perante aquele levante.

Em 1937, a possibilidade de um levante comunista não era apenas hipotética. Apenas dois anos antes, Luís Carlos Prestes havia liderado a Intentona, justamente uma tentativa de revolução financiada pela União Soviética de Josef Stálin. Foi mal planejada e um fracasso completo, mas o alerta estava aceso. E dois generais, justamente os dois mais graduados do Exército, levaram a Getúlio o plano e tomaram a decisão de divulga-lo como se fosse verdadeiro. Eram Pedro de Góes Monteiro e Eurico Gaspar Dutra.

O Congresso Nacional era, principalmente, liberal. Góes Monteiro e Dutra, porém, começavam a sugerir que sua composição tinha disfarçados traços comunistas. Em 28 de setembro de 1937, o presidente Getúlio Vargas recebeu uma delegação de generais. “É preciso agir, mesmo que fora da lei, mas em defesa das instituições”, lhe disse um deles. O político gaúcho assentiu. Mas não bastava o apoio militar, o presidente considerou que precisava ter certeza de que políticos o suficiente apoiariam uma medida de força. No final de outubro, enquanto o Plano Cohen era badalado pelas ondas de rádio e páginas de jornais, encaminhou ao Congresso o pedido de que fosse decretado Estado de Guerra. É quando certos preceitos constitucionais são suprimidos porque o país está sob ameaça externa. Quando deputados e senadores o aprovaram, Getúlio teve a confirmação de que seu golpe não teria resistência.

Na madrugada de 10 de novembro de 1937, as Forças Armadas cercaram o prédio do Congresso Nacional. Inúmeros parlamentares foram presos. Naquela manhã, Getúlio apresentou uma nova Constituição. Tinha por apelido a Polaca, por ter sido inspirada na Carta polonesa. Fascista.

1945

Em finais de 1943, estava ficando já claro que os Aliados venceriam a Grande Guerra. Com o fim do conflito na Europa, era inevitável que uma mudança de rumos precisaria ocorrer no Brasil. A Ditadura do Estado Novo teria de ceder espaço a uma democracia. Sempre hábil, Getúlio tinha planos de ser seu próprio sucessor. Para isso, pôs a máquina do Estado a serviço de cultivar sua imagem e construir uma base popular que pudesse elegê-lo no voto. Assim, do flerte aberto com a direita na década anterior, começou a reconstruir sua imagem à esquerda. Em 1º de Maio de 1943, anunciou o decreto-lei 5.452, que consolidava as Leis do Trabalho. CLT. Formalizava regras para criação de sindicatos, consolidava a carga horária de 8 horas, seis dias por semana, barrava o trabalho infantil, estabelecia o salário mínimo e uma estrutura previdenciária para aposentadoria.

Era um golpe de mestre. Se por um lado consolidava direitos trabalhistas despertando a fidelidade de operários da indústria que nascia, por outro submetia os sindicatos à pesada influência do Estado, afastando os comunistas. Ao fazer com que o Estado repassasse dinheiro para que os sindicatos se sustentassem, criava uma dependência que lhe garantia influência.

Mas conforme 1945 se aproximava, Getúlio não se anunciava candidato. Incentivava o surgimento, na sociedade, de um movimento em seu apoio. Queria ser alçado ao poder. Àquela altura, já haviam se formado três grandes partidos políticos. Dois deles, por suas mãos. Um, o PTB, seria o seu, concentrando funcionários públicos e operários. O PSD reuniria os chefes políticos regionais. A UDN era da oposição, composta por liberais e conservadores. Eurico Gaspar Dutra, que havia sido seu ministro da Guerra e parceiro no golpe de 1937, era o candidato do PSD. O agora brigadeiro tenentista Eduardo Gomes era o candidato da UDN, de oposição. Se o PTB teria candidato seguia em aberto — mas todos sabiam que Getúlio se organizava para ocupar o posto.

Em 28 de outubro daquele ano, o chefe da polícia da capital, João Alberto Lins e Barros, foi informado de que seria substituído no cargo por Bejo Vargas, irmão do presidente. No mesmo momento, informou ao general Cordeiro de Farias da mudança. Os dois haviam sido companheiros de Tenentismo, líderes da Coluna Prestes. Cordeiro havia também comandado a Força Expedicionária Brasileira durante a Guerra. Para os dois, estava claro. Quando pôs o irmão no comando da segurança da capital, Getúlio estava planejando algo. Pois Cordeiro de presto procurou Góes Monteiro — e os generais foram conversando entre si.

Em 29 de outubro de 1945, Cordeiro de Farias e Góes Monteiro entraram no gabinete presidencial e comunicaram Getúlio de que as Forças Armadas não o desejavam mais como presidente.

1964

O gaúcho João Belchior Marques Goulart era herdeiro político de Getúlio Vargas. Vice, havia assumido a presidência após a renúncia surpreendente de Jânio Quadros, em 1961. Governou com o país em crise econômica, inflação e com um certo desajeito — não tinha a habilidade política do padrinho. E havia escolhido um duplo confronto. Com o Congresso Nacional, onde abriu mão de adquirir apoio. Também contra o alto-comando do Exército, decidindo insuflar um levante de suboficiais. Enquanto isso, uma onda conservadora tomava a classe média, principalmente em São Paulo, que se organizava em marchas contra o governo. Simultaneamente, líderes comunistas de um lado, e o governador gaúcho Leonel Brizola do outro, faziam discursos defendendo justamente que Jango partisse para a briga. Que acirrasse a disputa. As vozes pedindo moderação ao seu lado eram poucas, mas dentre elas pesava a do líder governista na Câmara, Tancredo Neves. O deputado acreditava que contornar a crise era possível, caso o governo decidisse botar panos quentes.

Se em 1937 era possível dizer que os soviéticos realmente tinham planos de uma revolução comunista, no Brasil, não havia qualquer indício real disso em 1964. Mas, se aproveitando da radicalização do discurso de Brizola e dos comunistas, a direita defendia que o país corria risco real.

E, entre a busca do diálogo defendida por Tancredo e do confronto proposta por Brizola, Jango ficou com o segundo.

Se nos golpes de 30, 37 e 45 havia se formado um rápido consenso no alto-comando do Exército, em 1964 não foi exatamente assim. As conversas ocorriam. Envolviam o marechal da reserva Cordeiro de Farias, os generais quatro estrelas Orlando Geisel, Humberto Castello Branco, Arthur da Costa e Silva. Todos eram conspiradores profissionais desde os anos 1920 e já haviam planejado golpes não concretizados em 1954 e 55. Não conseguiam chegar, porém, a um acordo claro.

Desta vez, não houve uma comissão de generais entrando pelo gabinete presidencial para comunicar o fim do governo.

Na madrugada de 31 de março, começou a se espalhar a notícia de que o agora general Olympio de Mourão Filho havia levantado suas tropas, em Juiz de Fora, e tomara o rumo do Rio de Janeiro para dar um golpe. Nunca aconteceu, mas os boatos eram convincentes e ninguém o negava. Naquela tarde, Castello, chefe do Estado-Maior do Exército, se isolou em um apartamento de Copacabana e passou a tarde em telefonemas para seus pares. Os generais golpistas eram muitos, mas de telefone em telefone, não se entendiam, não chegavam a conclusão alguma. Só que, diferentemente de Washington Luís 34 anos antes, Jango acreditou que o golpe estava em curso.

E desistiu.

Ao fim de dois dias nos quais havia pouca informação, muitos boatos e nenhum acordo, o presidente tomou um avião para o Rio Grande do Sul e o presidente do Senado tomou o microfone no plenário da Câmara, em sessão conjunta do Congresso.

Sem base legal, declarou vaga a presidência da República.

Seis golpes concretizados com a participação do alto-comando do Exército brasileiro. E o fantasma está sendo atiçado novamente. Não custa dizer: o número de golpes planejados e nunca levados adiante, ou mesmo fracassados, é maior do que os de sucesso.

As histórias registradas por aqui foram colhidas dos livros Washington Luís, de Célio Debes; Getúlio 1930—1945, de Lira Neto; A Ditadura Envergonhada, de Elio Gaspari.