domingo, 28 de março de 2021

UMA CRÔNICA CIVILIZADA

 




Antes de mais nada, devo ressaltar que esta história ocorre em um bairro considerado pelo senso comum como sendo de “classe média” ou “classe média alta” do Município de Porto Alegre, RS.

Episódio 1

Por algum motivo morador ou moradores de um apartamento situado em um prédio alto e bonito, colocam em seu aparelho de som o Hino Nacional Brasileiro. O aparelho de som parece ser de excelente qualidade, pois o som chega até meu apartamento, em outro prédio, não só alto e claro como fazendo tremer os vidros da janela. Não se sabe também por qual motivo uma voz masculina, após a execução do Hino Nacional, começou a emitir brados na janela convidando a vizinhança a fazer turismo em Cuba, juntamente com palavreado que não vou citar aqui para não ser objeto de censura.

 

Episódio 2

Algum tempo depois, o referido cidadão decide realizar uma festinha iniciando em torno das 3 horas da madrugada. Realmente o aparelho de som é de primeira qualidade. O som das músicas escolhidas chegou no meu apartamento, que se localiza em outro prédio, com nitidez impressionante, mesmo com as janelas fechadas. Atualizei compulsoriamente meu repertorio de pagode e de música pop da moda. 



Episódio 3

Passados alguns dias, as mesmas pessoas decidem fazer nova festa, também iniciando na madrugada. Desta vez o som do aparelho sonoro estava com volume baixo. Deduzi que os demais moradores do prédio enviaram recomendação formal a respeito. Mas nossos festeiros não se apertaram. A música era cantada com volume de voz invejável. Digo A MÚSICA, pois a mesma música era repetida constantemente, em sequência. Eu não conhecia, mas aprendi o início do refrão: “deixa acontecer naturalmente, eu não quero ver você chorar...”. De qualquer forma, consegui dar uma cochilada. Acordei às 05:45 horas com uma voz solitária, pastosa e arrastada, bradando: “deixa acontecer naturalmente, etc”.


O processo civilizador da humanidade parece estar longe de chegar a um patamar satisfatório, não é verdade?

 

Imagem:  Hieronymus Bosch

quinta-feira, 25 de março de 2021

UM PERCEVEJO CHAMADO ZEUS

 

 


 

 Os percevejos Zeus machos são menores que as fêmeas e montam nas costas de suas parceiras como jóqueis.

As fêmeas secretam um material ceroso em suas costas e este é comido pelo macho, não tendo nenhuma finalidade exceto alimentá-lo.

Machos impedidos de comer as secreções das fêmeas tornam-se competitivos: roubam a presa fresca da fêmea.

Os pesquisadores que descobriram essa estranha relação formularam a hipótese que é mais vantajoso para as fêmeas alimentar os machos que as montam do que perder suas presas para eles, talvez porque o material ceroso contenha nutrientes de que elas não precisam.

Esse sistema se desenvolveu aparentemente para impedir que os machos interferissem na alimentação das fêmeas.

Em outras palavras, elas os alimentam para recompensá-los por se comportarem bem.

Isso está próximo do sistema encontrado em humanos.

 

(trecho do livro “PEGANDO FOGO”, de Richard Wrangham)

Fonte da Imagem: https://mymodernmet.com/justin-peters-digital-art/

domingo, 7 de março de 2021

NA CASA DA TUA MÃE

 


 

Ascânio Seleme

 

Jair, onde você absorveu tanta arrogância? Onde você iniciou o processo involutivo que o transformou no indivíduo tosco que deixa o Brasil atônito? Foi na casa da tua mãe.

Onde você emburreceu tanto e virou esse indivíduo desconectado do mundo civilizado? Onde você encontrou tanta gente obtusa como você para reunir ao seu redor? Foi na casa da tua mãe.

Onde você teve seu caráter desviado de forma tão radical que alcança até mesmo todos os zeros que você criou? Foi na casa da tua mãe.

Capitão, onde você construiu toda a perversidade que escorre em suas veias e baba da sua boca? Onde você foi encontrar tanto ódio que se percebe claramente no seu olhar e na sua risada sádica? Foi na casa da tua mãe.

Onde foi concebido este espírito antidemocrático que o domina de maneira irrevogável e que ameaça um país inteiro? Foi na casa da tua mãe.

Onde o seu coração de pedra foi lapidado, ou dilapidado? Onde foi que o endureceram de tal forma que a empatia não consegue penetrar? Foi na casa da tua mãe.

Diga, onde talharam e envernizaram esta sua lustrosa cara de pau? Onde você aprendeu a mentir tanto, Jair? Foi na casa da tua mãe.

Onde mesmo foi que te ensinaram que chorar por seus mortos é frescura e mimimi?

Onde foi que você descobriu que os corajosos enfrentam o vírus e saem às ruas? Na casa da tua mãe.

Onde você aprendeu a roubar, a desviar dinheiro público para comer gente? Teria sido no mesmo lugar em que você ensinou seus filhos a fazer rachadinhas? Foi na casa da tua mãe.

Jair, onde você se tornou homofóbico e misógino? Onde começou a entender que mulher é filha da fraqueza e gay deve levar porrada? Foi na casa da tua mãe.

Conte onde foi que você descobriu que o Brasil é um país de maricas? Foi na casa da tua mãe.

E onde você percebeu que há excessos de direitos no Brasil? Foi na casa da tua mãe.

Capitão, onde você se afastou da luz e mergulhou nas trevas? Onde você aprendeu que torturar e matar fazem parte da vida? Foi na casa da tua mãe.

Onde te ensinaram que a ditadura errou por torturar e não matar? Aposto que foi no mesmo lugar onde você ouviu que os porões deveriam ter fuzilado 30 mil corruptos e erraram por não matar Fernando Henrique Cardoso. Foi na casa da tua mãe.

Diga, onde você entendeu que Pinochet, o mais sanguinário ditador latino americano, devia ter matado mais gente? Foi no mesmo lugar em que você passou a idolatrar o torturador Brilhante Ustra? Foi na casa da tua mãe.

Onde foi, Jair, que você descobriu que fazer cocô dia sim, dia não, melhora o meio ambiente? Que comer menos resolve o problema das queimadas? Foi na casa da tua mãe.

Explique, onde você percebeu que trabalho infantil, de meninos e meninas com menos de dez anos de idade, não prejudica em nada as crianças? Foi na casa da tua mãe.

Conte, onde foi mesmo que te disseram que é uma grande mentira falar que tem gente passando fome no Brasil? Que isso só acontece em outros países? Foi na casa da tua mãe.

Onde te ensinaram que é correto beneficiar filhos, como os zeros que você tem, quando se exerce cargo público, capitão? Foi na casa da tua mãe.

Finalmente, onde foi mesmo que você virou este monstro que assombra o país e espanta o mundo? Foi na casa da tua mãe.

 



Fonte: https://oglobo.globo.com/brasil/na-casa-da-tua-mae-24912396
Publicado em 06 de março de 2021. 

 

Imagem: Museu do Prado, Madri, Espanha.

segunda-feira, 1 de março de 2021

CHURRASCO, CAIPIRINHA E SUICÍDIO COLETIVO

 

 
Marcos Nogueira

“Parem esses histéricos! Não tenham medo de morrer!” Uma jujuba para quem adivinhar ou autor dessas frases.

Não, não foi o Jair, embora pudesse ter sido. Foi o Jim. Jim Jones, pastor norte-americano que fundou uma comunidade utópica rural na selva da Guiana. Quando tudo degringolou em Jonestown, em 1978, ele optou por eliminar fisicamente os membros da seita.

Foram 909 pessoas mortas por envenenamento ou tiro. Destas, 304 eram crianças. Muitos obedeceram ao pastor e tomaram ki-suco com cianureto; quem desobedeceu foi assassinado. O próprio Jim se matou com uma bala na cabeça.

O Brasil, hoje, é uma Jonestown com 212 milhões de habitantes.

Sem saber como parar o vírus que mata e corrói a economia, as autoridades convocam a população para o suicídio coletivo.

Vejamos o que disse o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), em transmissão pela internet na quinta-feira (25):

“Dê a sua contribuição. Contribua com a sua família, com a sua cidade, com a sua vida para que a gente salve a economia do município de Porto Alegre.”

Frase longa? Eu edito para você: “Contribua (…) com a sua vida para (…) a economia (…)”.

Das capitais brasileiras, PoA é a que está mais próxima de repetir o pesadelo sanitário de Manaus. O que faz o prefeito? Manda a população se cuidar?

Não, ele convoca todo mundo a sair e comer costela na churrascaria Barranco, a compartilhar uma cuia de mate no parque Farroupilha, a movimentar a economia local.

Deixa de ser maricas, tchê! Contribui com a tua vida, bah! A ordem não poderia ser mais clara: morre e cala a boca. Tá cheio de gente que obedece com gosto.

Em São Paulo, para não peitar os comerciantes, o governador inventou um lockdown disruptivo e inovador: ele ordena o fechamento das coisas no horário em que elas sempre ficam fechadas. Paraná e Distrito Federal farão o mesmo, pois parece ser excelente na contenção da pandemia.

O presidente, com o timing preciso e habitual, discursou contra o uso de máscaras quando o Brasil bateu os 250 mil mortos. Um quarto de milhões de pessoas.

Morreu o equivalente a mais da metade da população de Roraima. A todos os habitantes de São Carlos, Araraquara, Marília ou Jacareí. Às vítimas somadas dos bombardeios atômicos em Hiroshima e Nagasaki.

Falemos o português que brasileiro entende: três Maracanãs lotados já foram despachados para o cemitério.

E, ainda assim, os caras lá de cima querem que nós levemos a vida normalmente, para salvar a economia. Sem vacina e sem usar máscara, que traz o insuportável sofrimento de sentir o próprio hálito –deve ser mesmo difícil para quem recende a Belzebu.

Jim Jones exterminou seus fiéis quando faltava comida e mal havia água para beber em Jonestown.

Aqui, não. Temos churras à vontade, breja trincando de gelada e até caipirinha. Dá para empacotar ao som de pagode, sertanejo ou funk.

Tá reclamando de quê?

Morra e não encha mais o saco.


Fonte: https://cozinhabruta.blogfolha.uol.com.br/2021/02/26/churrasco-caipirinha-e-suicidio-coletivo/

Imagem: Hieronymus Bosch