segunda-feira, 27 de março de 2023

Bostificação, o futuro irresistível do ChatGPT

 


por Natalia Viana
natalia@apublica.org
Diretora Executiva da Agência Pública

 

No seu livro A Superindústria do Imaginário, o professor Eugênio Bucci (que é conselheiro da Agência Pública) chama a gratificação instantânea provida pelas plataformas de “valor de gozo”, e nos provoca a pensar como internalizamos “a indistinção entre divertimento e trabalho”, a ponto de nos “alegrarmos” em tomar parte da linha de montagem superindustrial do valor de gozo. “O tal ‘usuário’ se diverte, acha que o ‘entretenimento’ que lhe oferecem é um presente, e trabalha até não mais poder”, tornando-se de uma só vez, mão-de-obra, matéria-prima e mercadoria. “Nunca o capitalismo desenhou um modelo de negócio tão perverso, tão acumulador e tão desumano”, escreve Eugênio.        

Pois, lendo sobre o ChatGPT, encontrei o excelente conceito de Enshitification, ou “amerdalhamento” ou ainda “bostificação”, como preferirem, pois acho que sou a primeira pessoa a traduzir esse conceito criado pelo intelectual canadense e ativista da internet livre Cory Doctorow para descrever o negócio das Big Techs mais disruptivas. Cory está no mercado há muito tempo: em 1999, criou uma empresa de software livre, foi um dos fundadores do Open Rights Group e trabalhou anos com a Electronic Frontier Foundation, uma fundação do bem que defende a internet livre. Seu conceito de “enshitificação” vem menos de uma reflexão profunda e calcada na academia do que a identificação de um padrão que se repete, de novo e novo, no mundo das Big Techs.  

Em resumo, ele diz que o ciclo de vida de plataformas digitais tem funcionado da seguinte maneira: primeiro, elas são boas para seus usuários; depois, elas abusam o usuário para fazer as coisas melhores para seus clientes comerciais; finalmente, elas abusam os clientes comerciais para extrair todo o valor para si mesmas. 
   

Uma vez tendo conquistado a maior parcela possível do público – hoje já são mais de cem milhões de pessoas usando o ChatGPT – a Open AI deve seguir o caminho trilhado por muitas outras plataformas. Vai seguir o mecanismo que nos mantém aprisionados seja no Facebook, Google, Uber, Amazon, ou ChatGPT, e a maneira como essas empresas conseguem extrair valor, ou mais-valia. 

Sim, o produto somos nós. Mas Cory vai além, dizendo que a bostificação é praticamente inevitável, dada a facilidade que as plataformas têm em realocar onde extraem mais-valia no seu modelo de negócios. Ou, melhor dizendo, uma vez que as plataformas e seus algoritmos são atravessadores entre vendedores e compradores, “mantendo ambos os lados como reféns”. 

Funciona assim: no começo, qualquer plataforma com ambições grandes o bastante dispensa milhões, senão bilhões de dólares em oferecer um serviço inovador, engajante, interessante e interativo, que permita ao usuário o gozo da descoberta de um mundo novo. Grana estratosférica é gasta em desenvolvedores, designers, cientistas sociais, linguistas, psicólogos, que vão construir uma deliciosa experiência de usuário, sem absolutamente nenhum retorno financeiro imediato à empresa. Fora o pessoal do marketing, que vai se esforçar em aliar o lançamento à narrativa do bom-mocismo do Vale do Silício. Então o Uber era pra democratizar a locomoção, o Facebook te conectava com aqueles que você ama, a Amazon te entrega o que você quiser na sua casa etc etc.    

A Amazon, por exemplo, operou durante anos com um prejuízo estratosférico; o Uber, pra quem não sabe, tem prejuízo todos os anos, chegando a 9 bilhões de dólares em 2022 no seu afã de controlar todo o mercado global. Uma vez tendo os usuários, é fácil atrair os fornecedores, a quem inicialmente também se oferece um bom negócio. Os motoristas de Uber, por exemplo, recebiam uma bela quantia no começo, ficavam extremamente satisfeitos por poderem ter um trabalho mais flexível. E os clientes estavam satisfeitos. Até que o Uber passou a recolher margens maiores, achatando o valor pago aos motoristas. Hoje, tem sido difícil encontrar um Uber – o famoso processo de bostificação.  

No caso do Facebook, o começo da era dos impulsionamentos – que eu vivi aqui como diretora da Pública – também não era assim tão mau. Você pagava um pouquinho, sua mensagem chegava a um monte de gente, havia enorme interação. Só que, como se trata de um mercado não regulado, as regras mudam de acordo com a cabeça do CEO da vez. 

Imaginem o seguinte: as plataformas funcionam como grandes praças públicas, porém privatizadas, onde as pessoas se encontram e passam um bom tempo da sua vida. Mas, por serem espaços privados (e digitais, sem nenhuma correlação necessária com a materialidade), toda e qualquer regra pode ser mudada a qualquer momento – e sem aviso. Então você é um vendedor de cachorro-quente e um dia o dono da praça decide que a gravidade já não se aplica mais, e suas salsichas saem voando; no outro dia, decidem que seria melhor que a temperatura fosse abaixo de zero; e toda sua mercadoria congela.

É mais ou menos isso que acontece, mas na descrição de Cory (mais sensata que a minha), o que ocorre é um pouco uma extorsão: uma vez que todo-mundo-do-mundo já está capturado na sua plataforma, o algoritmo passa a deixar de entregar sua mensagem, ou seu produto, e passa a cobrar cada vez mais para fazer algo que antes custava pouco. Sendo um monopólio, você é apenas obrigado a pagar. 

Lembrando que esse mercado não é regulado. Não tem regra. Não tem supervisão nenhuma. Nenhum monitoramento público. À la americana, o mercado promete resolver sozinho os problemas que cria ao prender as pessoas-produto no ciclo de gozo.  

Aí sim chega a fase final, a fase em que o mercado está tão dominado de ambos os lados – quem oferece o serviço e quem compra – que chega a hora de os investidores verem de volta todo aquele investimento inicial. E a plataforma fica uma merda. 

É o que estamos vendo agora com o Twitter, e o que vimos com o Facebook.  

O final do ciclo, para Cory, seria que as plataformas se tornariam um “monte tão grande de merda” que esse seria o fim. Depois de mexer nas relações humanas extraindo mais valia de todos os lados, o final seria o abandono do cuidado com todas as partes e o fechamento da empresa, depois de extrair muito lucro pros acionistas. Diz Cory que hoje o Facebook, por exemplo, está “terminalmente bostificado”.  

Mas eu acho que isso é otimista. Gigantes máquinas de dinheiro não morrem assim tão fácil, e podem inventar novos produtos, comprar outras empresas e tentar recomeçar o ciclo de atrair o público. 

Minha preocupação é outra: que essas empresas tenham se tornado tão poderosas e tão gananciosas que consigam frear qualquer mecanismo de regulação até que seja tarde demais para conter as novas ondas de robotização das atividades mais triviais da nossa vida, e com isso, a nossa prisão, a precarização do serviço ofertado, e então o rebosteio final. 

No fundo, o que pode parecer um problema extremamente complexo é simples. “A bostificação só conseguiu durar tanto porque a internet virou ‘cinco websites gigantes’” e é dominada por um “grupo de monopolistas confortáveis”, diz Cory. “A bostificação exerce uma gravidade praticamente irresistível ao capitalismo plataformizado”. Alternativas de serviços melhores não conseguem disputar a atenção, e, quando conseguem, os monopólios apenas as compram.     

Esse ciclo pode até ser infinito – veja a corrida do Google por lançar seu próprio chat com inteligência artificial e imagine um ChatGpt que esteja conectado na internet e já saiba tudo sobre você, que já tenha todos os seus dados – desde que as empresas consigam atrasar indefinidamente qualquer regulação pública da atividade de escravização humana, ou da “indústria do gozo”. Já estamos vendo isso na queda de braço da regulação em muitos lugares, inclusive no Canadá e no Brasil.


Para não sermos escravizados por robôs ultracapitalistas, não teremos outra saída a não ser regular, quebrar, e regionalizar as plataformas.   

 

Fonte do Texto: https://mailchi.mp/apublica.org/newsletter-xeque-na-democracia-032?e=f0c046fac2

Fonte da Imagem: https://rare-gallery.com/resol/1600x900/4582261-people-monochrome-surreal-digital-art-labyrinth.jpg

segunda-feira, 20 de março de 2023

A NOITE QUE NÃO TERMINOU (*)



Uma pequena rua com nome histórico: Travessa Lanceiros Negros. Em um bairro de classe média alta, esta denominação não tinha nada a ver. Muito diferente também do nome da rua onde acabava por desembocar: Nova Iorque.


Nenhum negro no bar apinhado de gente jovem. Em plena pandemia, todos ignoram a exigência de máscaras, a não ser as próprias, que usam para disfarçar seus sentimentos.


Meia-noite: música alta, metálica, misturada às vozes e ao cheiro de cerveja, espumante, vodca e batata frita. De repente, o céu é rasgado por uma sucessão de relâmpagos e a escuridão toma conta de tudo. É quando surgem e estacionam em frente ao bar quatro viaturas da Força Nacional Patriota. O esponsável pela operação, protegido por outros sete policiais, desce com um megafone na mão:

– Não se mexam, fiquem calmos. Repito! Fiquem calmos! Foi decretado Estado de Sítio. Estamos sob lei marcial federal. Saiam do bar de forma lenta e ordenada e nada acontecerá. Mostrem seus documentos de identificação aos agentes da Força Nacional. Estamos atrás de um perigoso subversivo! Ele será levado e nada acontecerá aos demais. 

As pessoas, mesmo não sabendo o que significa Estado de Sítio, entendem que a situação é grave. Reclamam, urram, mas o primeiro tiro de fuzil para o alto extingue a confusão.


Após mostrarem suas identidades, todos são liberados, com exceção de um. A turba tenta chamar motoristas de aplicativo, mas o 4G não funciona, os celulares não têm sinal, o Whatsapp está congelado, o Facebook e o Instagram estão bloqueados. Isso ocorre com todos na cidade: a capital, Porto Alegre, está às escuras; o Rio Grande do Sul está às escuras; o país está às escuras. As comunicações foram interrompidas. As rádios e emissoras de televisão estão fora do ar. Os canais dos radioamadores rugem somente estática.


O caos espalha-se com rapidez. Famílias tentam fugir da cidade, mas a Polícia do Exército está nas rodovias, nas gares e nas estações de metrô. Ninguém pode sair dos seus municípios ou deixar o país. Os militares, fortemente armados, mandam as pessoas voltarem para suas casas e permanecerem tranquilas. Caças cruzam a noite, espalhando terror na população.


Não há nenhuma explicação, só angústia e espera.


Depois da noite que não terminou, às doze horas do dia seguinte, todas as emissoras de TV e rádios voltam a operar em rede única para transmitir o seguinte comunicado:

Informações de inteligência dão conta de que a Argentina movimentou todas as suas forças bélicas, com o apoio externo de uma grande nação comunista, no objetivo de invadir o Brasil e implantar esse famigerado regime, sanguinário e ditatorial. Graças ao preparo e expertise das gloriosas Forças Armadas, aliado ao alto poder de negociação da nossa competente cúpula diplomática, e com a ajuda de Deus, conseguimos repelir essa ameaça externa. Em troca da proteção e apoio dos Estados Unidos da América, entregaremos somente as reservas do Aquífero Guarani e a metade norte da Amazônia, onde não se está plantando soja. O momento é grave e único na nossa História; assim, é imprescindível a confiança e o apoio de todos os patriotas para vergarmos a lâmina que paira sobre nossas cabeças. Mantenham a calma e confiem no seu Presidente.


Após o comunicado, é divulgada uma lista das medidas tomadas pelo gabinete de crise para o bem da coletividade: fechamento do Congresso Nacional e dos demais poderes legislativos, do Poder Judiciário, de sindicatos, federações e confederações, da UNE, da OAB e Conselhos de Fiscalização de Classe. Governadores e Prefeitos são destituídos, e novos serão nomeados. São determinadas a flexibilização dos direitos fundamentais, proibição de reuniões, supervisão das comunicações e da mídia, relativização do sigilo de dados e da correspondência, possibilidade de invasão de domicílio, busca e apreensão e prisão, por ordem de Autoridade.


Para finalizar, transforma-se o presidencialismo em monarquia: o Presidente vira Rei; sua esposa, Rainha; seus filhos, Príncipes. Ao menos, até que a ameaça externa seja contida.

É criado o Conselho de Segurança do Brasil, órgão de assessoramento direto do Presidente-Rei. Milhares de cidadãos, suspeitos de serem agitadores ou comunistas, antes monitorados nas redes sociais, são cassados, aposentados compulsoriamente, demitidos ou deportados do país por meio de inquéritos militares sumaríssimos: jornalistas, juízes, promotores, sindicalistas, médicos, advogados, intelectuais, artistas, escritores, poetas e principalmente letristas de músicas subversivas, além de políticos dos partidos de centro e esquerda. Quase todos foram presos na noite que não terminou, e levados para a Venezuela e Cuba. São recebidos no exílio mediante a doação de milhares de toneladas de soja, milho, algodão, cana-de-açúcar, frangos, suínos e bovinos. Na mesma semana, ocorre uma situação inusitada.


O Fundador da Associação Nacional da Classe Média – ANACLAME, completamente embriagado, após sair de uma festa em comemoração à decretação do Estado de Sítio, invade o zoológico de Brasília e, em um arroubo de lascívia e bestialismo, estupra uma anta.
Após onze meses, nasce no zoo um animal metade anta, metade homem. O fato viraliza, torna-se notícia mundial. O Estado de Sítio já foi amenizado para Estado de Defesa, sendo sucessivamente prorrogado por quatro anos. O Presidente-Rei tem uma ideia. Por decreto, o animal é alçado ao status de Guru Supremo. Ele será o responsável pela edição de novas leis, já que todas, inclusive a Constituição, foram revogadas durante o Estado de Sítio.
Como o animal só sabe assobiar, três filósofos do Planalto são designados intérpretes da sua vontade.


A rotina se repete: a anta dorme durante o dia, é alimentada ao final da tarde com o melhor feno transgênico e, à noite, começa a assobiar. No dia seguinte, as novas leis e diretrizes obrigatórias da sociedade são impressas e divulgadas, uma por dia, trezentos e sessenta e cinco vezes ao ano:


São extintos os Poderes Legislativo e Judiciário, o Ministério Público e os Tribunais de Contas.


A meritocracia é valor supremo e central do Estado, preponderando sobre quaisquer outros  fundamentos ou princípios.


É admitida apenas a religião oficial neste território.


O Estado subvencionará a compra de armas para todos os cidadãos de bem.


Não existe pena de morte no Brasil, exceto em razão de fuga, perseguição ou flagrante delito de indivíduo negro ou pardo suspeito, e por decisão exclusiva da Autoridade.


A partir de hoje, todos colaboradores passam a ser sócios efetivos das empresas, no percentual máximo de 0,000000000000000000017%, com a respectiva supressão dos direitos a um terço de férias, décimo terceiro salário, adicional noturno, horas-extras, auxílio-doença, dentre outros, em contrapartida a tornarem-se empreendedores.


A propriedade e a desigualdade são direito de todos, e compete à Autoridade zelar para que se cumpra essa determinação.


Com a volta da extrema direita ao poder nos Estados Unidos, o país passa a ser um protetorado norte-americano bilíngue. Não gasta mais com políticos, urnas eletrônicas e eleições. O dólar está  subvalorizado, permitindo à classe média viajar duas vezes por ano para Orlando e Miami.

Os combustíveis foram depreciados em trinta por cento.


Brasileiros, com determinada renda ou patrimônio, podem emigrar para os Estados Unidos sem uso de passaporte.


A pequena rua com nome histórico, Travessa Lanceiros Negros, está novamente repleta de jovens brancos bebendo suas cervejas e ouvindo músicas metálicas, indiferentes a tudo.
Com a morte do Rei, o Príncipe primogênito, depois de mandar prender os irmãos, assume para um mandato vitalício.

O povo está feliz.


Rodrigo Valdez 


(*) Esse é um dos contos do livro Berkut, cuja capa está acima publicada. O texto foi cedido para publicação neste bloguinho pelo gentil autor do livro, Rodrigo, do qual tenho o privilégio de ter relação de amizade. Recomendo fortemente o livro.