Por Julia Ribeiro, para Canal Meio (canalmeio.com.br)
O ano parecia que não ia terminar. Muitas perguntas
sem respostas. Horas de trabalho excessivas, crises de pânico,
sobrecarga parental, exaustão materna, crescimento no número de
divórcios e estresse prolongado. Casa virou trabalho, computador virou
escola. Os sintomas da síndrome de burnout antes confinados aos
ambientes laborais, transbordaram para outros âmbitos da vida cotidiana.
A louça se acumulou. Os boletos não pararam de chegar. Conflitos
latentes. Tensões antes veladas foram descortinadas.
“Nós nos revelamos para nós mesmos e para os outros. A sociedade se
revelou em seus mecanismos cruéis, desiguais ou exploradores. Os pais,
os filhos, os amantes, os chefes, os miseráveis e os ultrarricos: tudo
está exposto”, resume a psicanalista Maria Homem, que escreveu o livro Lupa da Alma – Quarentena-revelação (Todavia).
No segundo ano de pandemia, especialistas registraram um aumento
vertiginoso nos casos de transtornos mentais. A explicação é que a
excessiva vigilância contra o vírus estressou nosso sistema hormonal e
endócrino de maneira prolongada, tornando-nos mais vulneráveis a
patologias psiquiátricas. A Organização Mundial da Saúde (OMS)
denominou de fadiga pandêmica o cansaço derivado do esgotamento gerado
pela hipervigilância e pelo medo. Um estudo
da Universidade de Oxford revelou que 34% dos que tiveram covid-19
desenvolveram problemas psicológicos dentro de seis meses após terem
sido infectados. Publicada na revista The Lancet Psychiatry, a
pesquisa aponta ainda que 17% dos pacientes contaminados pelo
coronavírus foram diagnosticados com distúrbios de ansiedade e 14% com
distúrbios de humor.
Burnout como doença ocupacional
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que mais de trezentos
milhões de pessoas, no mundo todo, sofrem de depressão. Na América
Latina, o Brasil é o país com mais casos. Eles aumentaram ao longo da
pandemia. Até 2030, esta será a doença mais comum no país. Entre os
distúrbios, um dos mais relatados pelos médicos é o burnout. A partir de
janeiro de 2022, entrará em vigor a nova categorização da síndrome pela
OMS, a CID 11 (classificação de transtornos mentais e comportamento).
O que muda na prática? Segundo especialistas, a nova classificação
vai facilitar o reconhecimento pelo INSS do direito ao afastamento por
doença ocupacional, já que a classificação relaciona a doença
diretamente ao trabalho, o que não ocorre com outras síndromes. A
mudança abre espaço para pedidos de indenização, por exemplo.
Alterações repentinas de humor, cansaço extremo e irritabilidade. Os
sintomas do burnout muitas vezes são semelhantes aos de outras condições
de saúde como a ansiedade e a depressão.
Apesar de a OMS destacar que o esgotamento “se refere especificamente
a fenômenos relativos ao contexto profissional”, para muitos, a falta
de fronteiras entre trabalho e vida pessoal foi o grande gatilho - eis
outro termo que marcou 2021.
Contornos, limites e angústias
Foi um ano indigesto. Corpos não velados, casas e relações
bagunçadas. Intermináveis ciclos de recomeços para uns, ponto final para
outros. Se antes a pergunta Como você está?
era meramente protocolar, respostas mais honestas começaram a aparecer
ao longo do ano. Já que não tivemos para onde fugir, fomos forçados a
dialogar com nossas dores, medos e sombras mais profundas?
“Para aqueles que têm saúde mental suficiente, sim. Foi e está sendo
uma oportunidade de se deparar com aquilo que se é, com aquilo que se
teme. Seja individualmente, entre casais e em família, nunca estivemos
tão debruçados nas relações com o convívio intenso gerado pelo
isolamento. Ao olhar para nossos contornos e limites, muitos se viram
diante de angústia”, responde a Maria Homem.
Para ela, ainda estamos digerindo esse ano tão pesado. A psicanalista
faz uma síntese radical: “assustamo-nos com a violência em jogo nas
relações íntimas, sociais e globais. Estamos sofrendo de transtorno
pós-trauma e com todo o lixo que jogamos debaixo do tapete nos longos
tempos pré-trauma”.
Maria Homem registrou em seu livro que as emoções ficaram à flor da
pele neste ano. Se estávamos buscando formas de mantê-las sob controle,
ou sob anestesia, agora parecem ter obtido um passe livre para circular
sem tanta repressão.
“A semente de inquietação ou loucura dentro de nós parece que se
expande. Irrequietos não conseguem ficar quietos ou em casa. Deprimidos
ficam mais tristes e ansiosos. Loucos ficam mais delirantes. Agudizar
seria o verbo destes tempos?”
A psicanalista Márcia Luna Azulay contradiz o senso comum de que a
pandemia causou o adoecimento psíquico das pessoas. “Os quadros se
intensificaram porque já existiam dentro de cada um. Sejam transtornos
alimentares ou crises conjugais. Eles apareceram, ficaram
visíveis. Apesar da síndrome ser considerada um fenômeno estritamente
associado ao âmbito profissional, o estresse crônico se instalou na sala
de casa. E nas relações. Na pandemia, o burnout passou a acontecer
dentro de casa. E essas características ligadas ao trabalho, como o
excesso de tarefas e cobranças, atingiram as outras áreas da vida”,
opina Márcia.
“Variações” do burnout clássico não se restringiram ao campo
ocupacional. Exaustão emocional, mental e física são os componentes que
resumem a síndrome de acordo com Ayala Malach Pines (1945-2012)
psicóloga, pioneira na investigação do tema e autora de Couple Burnout: Causes and Cures (Burnout de Casais: Causas e Curas,
em tradução livre). Para a pesquisadora, a síndrome resultante consiste
em sentimentos de desamparo, desesperança, de estar preso numa
armadilha, com sintomas de irritabilidade e apatia.
Até que a pandemia nos separe
A “torta de climão” servida na mesa de jantar. As mudanças drásticas
na rotina impulsionaram um novo recorde de divórcios no primeiro
semestre de 2021. Dados do Colégio Notarial do Brasil indicam que de
janeiro a junho de 2021, foram 37.083 divórcios, um aumento de 24% em
relação ao primeiro semestre do ano passado, com o início da pandemia da
covid-19. Há dois anos, 75.033 casais oficializaram a separação. A
quarentena é apontada como principal responsável pelo fenômeno, além da
facilitação dos trâmites, que agora podem ser feitos pela internet.
Selvageria do inconsciente
O “cérebro pandêmico” é um termo não clínico que chegou a ser usado
por cientistas para definir os efeitos do estresse crônico e prejuízos
psíquicos decorrentes da covid-19. Os danos na área da saúde mental
compõem uma pandemia silenciosa. Só o tempo para sublimar, elaborar e
compreender as suas consequências.
“Ainda precisaremos de alguns anos (décadas?) para mensurar. De certa
forma, um dos mecanismos de defesa, ainda em voga, foi minimizar ou
mesmo precisar negar o medo e a angústia diante dessa ameaça. O que, por
sua vez, não é sem efeitos – e cobra seu preço. A própria estratégia
defensiva delirante tem alto custo psíquico”, reflete a Maria Homem.
Para fugir do tédio, uns aprenderam a fazer pão, outros a costurar.
Teve gente que comprou cursos on-line por impulso e não teve paciência
(ou foco) de fazê-los. Uns aprenderam a lidar com a falta de intimidade
com o digital. Quem pôde fugiu para as montanhas. Nos sentimos cansados.
Mais do que isso: foi inevitável olhar para si.
Dentro de um ambiente de confinamento forçado, nossos aspectos
psíquicos pularam para fora sem dó nem piedade. “Lá fora é perigoso, o
que temperou mais ainda a selvageria do inconsciente que aproveitou o
medo para puxar todo mundo para dentro”, resume o terapeuta junguiano
Gustavo Otero.
“Todos foram expostos às tempestades internas que antes eram
solenemente negadas. Na tentativa de fugir, muitos se jogaram no
trabalho. Mas não tem jeito, o inconsciente foi claro: tem que olhar
para dentro. Então, tivemos uma onda gigantesca de burnouts, não só no
trabalho”, explica Gustavo.
Para ele, a sociedade hiperestimulada e superconectada se viu em 2021
com uma tarefa que nunca poderia imaginar: “O trabalho foi dado:
convivam, mas não só com quem está do lado, conviva e aprenda a conhecer
os muitos que existem dentro de nós mesmos e que antes, talvez, nem
fazíamos ideia de que existiam”, destaca o terapeuta.
Quando isso vai acabar? Quando chega a minha vez de vacinar? É gripe
ou covid? Deu negativo? Ufa. Fulano foi internado. Piorou. Não, não vai
ter velório. Faz o que com essa dor? Os processos de luto mudaram. Os
reais e simbólicos.
Maria Homem destaca sobre a necessidade de escuta das pessoas.
Espaços simbólicos que buscam elaborar a experiência bruta via palavra e
linguagem são necessários em todas as instituições. Das empresas às
escolas, das famílias aos círculos sociais.
Este 2021 que termina foi um ano distopicamente trágico. Mesmo diante
de tantos conflitos pessoais e traumas coletivos, houve brechas para
alegrias e (re)descobertas. Situações caóticas foram oportunidades de
renegociação de acordos na convivência familiar. Novas formas de
interagir, de brincar e de se amparar. A tensão foi dissipada com afeto.
Solidão virou solitude. Perdemos. Celebramos pequenas vitórias. Novo.
Normal. É tempo de revisar o que é normal e o que é verdadeiramente
novo.
Fonte da Imagem: https://michiganvirtual.org/blog/your-brain-in-crisis-why-its-so-hard-to-learn-during-difficult-times/