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quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Acampados dos Quartéis sofrem de Alucinações Coletivas? Leia o Artigo.

Bolsonaristas em Porto Alegre pedem ajuda fazendo sinais de luz com celular na cabeça.


Alucinações são mais comuns do que se imagina

Fred Schwaller, para Deutsche Welle

Todo mundo tem alucinações. Elas são parte da percepção sensorial normal, e não apenas o resultado de transtornos mentais ou drogas, apontam teorias científicas atuais.

Felix Yarwood, um designer de produto de 32 anos do Reino Unido, tem alucinações. Ele não vê pessoas imaginárias, nem ouve vozes que lhe dizem o que fazer. Mas às vezes sente coceiras inexistentes e ouve sons que podem ou não estar em sua cabeça – ele nunca tem certeza. De acordo com teorias atuais, as experiências de Yarwood são perfeitamente normais.

"Todo mundo tem alucinações", afirma Anil Seth, neurocientista da Universidade de Sussex, no Reino Unido.

"É importante reconhecer que alucinações podem ir e vir durante nossas vidas, em momentos de estresse ou cansaço", aponta. "Há um pouco de estigma em torno de alucinações, associadas a doenças mentais e com as pessoas sendo chamadas de loucas."

Na realidade, trata-se de algo muito comum e que acontece até mesmo diariamente. A experiência de Yarwood com coceiras imaginárias, por exemplo, é particularmente comum, especialmente depois de beber álcool.

"Também é comum que pessoas com capacidade de audição ou visão reduzida tenham alucinações naquele ouvido ou olho", afirma Rick Adams, psiquiatra da University College London. "Trata-se de alucinações não clínicas, pois não são associadas a um diagnóstico psiquiátrico."

 

Percepção é alucinação controlada

Para entender o que realmente acontece quando se tem alucinações, é preciso observar como o cérebro cria percepções sensoriais.

Intuitivamente, podemos pensar que a percepção é o resultado da leitura de informações externas que chegam ao cérebro. Algo que Seth contesta.

"Na verdade, é o contrário: a percepção é o cérebro gerando representações do mundo a partir de dentro. A informação vinda dos sentidos calibra as percepções", explica.

Ou seja, o cérebro é um órgão preditivo que tenta antecipar ou entender o que está acontecendo com base no que aconteceu antes, aponta o especialista.

Na visão, por exemplo, o cérebro cria hipóteses sobre as informações sensoriais vindas do olho. Ele faz previsões rápidas sobre o que um objeto pode ser com base no que você viu no passado. Outras informações sensoriais dos olhos ou de outros sentidos ajustam e corrigem essa previsão para torná-la mais precisa. 

"Isso significa que a percepção cotidiana é uma espécie de alucinação controlada ou sonho acordado. É gerada de dentro, mas controlada pelo mundo por meio de sinais sensoriais", conclui Seth.

 

Pareidolia e ilusões 

Pode parecer estranho pensar que o olho desempenha um papel secundário na percepção visual, mas há situações em que você pode perceber isso acontecendo. 

A primeira é a pareidolia – a tendência de ver padrões nas coisas quando não há nenhum, como ver um rosto na Lua. Aqui, o cérebro está gerando a percepção de um rosto, apesar de informações sensoriais dizerem que é impossível a Lua ter uma face. Desse modo, podemos saber que a Lua não tem rosto, mas ainda assim o vemos. 

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Em segundo lugar estão as ilusões visuais, como a ilusão do caçador lilás. Se você olhar para a cruz no centro da imagem por 30 segundos, poderá ver os discos lilás desaparecendo e um disco verde correndo ao redor do círculo no lugar da lacuna.

https://youtu.be/RKm_bmHoTFs

Mas é claro que não há disco verde. De acordo com Seth, o cérebro gerou a percepção do disco verde para preencher a lacuna de cor. 

 

Quando alucinações se tornam um problema? 

Embora todos nós tenhamos alucinações "simples" em alguma medida, as alucinações "complexas" são muito mais comuns em pessoas diagnosticadas com condições psiquiátricas: 89% das pessoas com esquizofrenia e 40% das pessoas com doença de Parkinson experimentam alucinações. 

De acordo com Adams, alucinações simples do dia a dia se tornam preocupantes quando começam a atrapalhar a vida normal.

"Não se trata de com que frequência você tem alucinações ou de que tipo elas são, mas de se elas têm algum tipo de efeito danoso sobre a própria pessoa. Elas também invadem a vida e não podem ser controladas", explicou. 

Muitas pessoas com esquizofrenia, por exemplo, tendem a ouvir vozes ou ver coisas que são desagradáveis ​​e perturbadoras, como vozes que as fazem lembrar de seus medos mais sombrios ou as dizem para machucar a si mesmas. Seth descreve esse tipo de alucinações como uma percepção descontrolada. 

Cientistas realmente não sabem por que alucinações perceptivas normais, como as que Yarwood experimenta, tornam-se fortes e complexas em condições como a esquizofrenia. Adams acredita que uma chave para o quebra-cabeça possa ser o fato de que as vozes parecem vir do mundo exterior, apesar de serem geradas dentro do cérebro.

"Achamos que existe um módulo envolvido na percepção no cérebro que de alguma forma ganha autonomia. Esse espaço do cérebro começa a jorrar previsões perceptivas que não têm base em informações sensoriais. O resto do cérebro recebe essas previsões e naturalmente assume que elas vieram de fora", diz o psiquiatra. 

A ideia é que o módulo autônomo de geração de percepção perdeu o feedback das informações sensoriais do olho ou dos ouvidos, que normalmente corrigiriam a percepção. Portanto, a alucinação parece estar desassociada do seu corpo. 

 

Diversidade nas percepções 

Mas quão comum são alucinações? Cientistas não sabem exatamente. Ainda não foram realizados estudos rigorosos sobre a frequência com que as pessoas têm alucinações de qualquer tipo. Até agora, o foco tem sido apenas as alucinações associadas a estados mentais alterados pelo uso de drogas ou distúrbios mentais.

Seth tem como objetivo entender melhor alucinações em nível populacional. Ele acha que os mundos perceptivos individuais das pessoas diferem uns dos outros mais do que pensamos.

"Chamamos isso de diversidade perceptiva. Essas diferenças são subjetivas e particulares, ao contrário da nossa pele ou cor de cabelo, mas moldam nossas vidas", diz. 

O neurocientista lidera atualmente um estudo em andamento medindo variações entre os mundos perceptivos individuais, com o objetivo de entender os tipos de alucinações ou estranhezas perceptivas que experimentamos todos os dias.

Contudo, esse estudo, denominado Censo de Percepção, vai além da simples percepção. Seth acredita que a pesquisa ainda nos ajudará a entender como percebemos o mundo ao nosso redor – quais partes compartilhamos e quais são únicas, e como isso nos torna quem somos.

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quarta-feira, 25 de maio de 2022

Os três "golpes" de Jair Bolsonaro

 







Quais são os fenômenos que compõem a arquitetura golpista do atual governo e suas chances de prosperar
  

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Por Christian Lynch *

O sistema político de 1988 foi construído deliberadamente contra a herança autoritária do regime militar. A Constituição que lhe serve de baliza jurídica consagrou uma arquitetura institucional pautada por princípios e valores capazes de comportar governos liberais democráticos, como o de Collor e Fernando Henrique; social-democratas, como o de Lula e Dilma; e conservadores, como o de Sarney e Temer. A crise de legitimidade do sistema representativo tornada aguda entre 2013 e 2018 tornou possível, porém, a emergência de uma direita radical, inimiga do Estado de Direito da Nova República.

Desde então, o fantasma do golpe tem assombrado nossa democracia. O questionamento do resultado da eleição presidencial de 2014 por Aécio Neves foi denunciado como “tentativa de golpe”; a Lava Jato, como um conjunto de sucessivos “golpes” em formas jurídicas (o “lawfare”); e o impeachment de Dilma Rousseff, como “golpe parlamentar”. A própria eleição de Bolsonaro teria sido possível graças ao “golpe” da cassação dos direitos políticos de Lula pelo STF, intimidado pelo então comandante do Exército. Por fim, marcado por um populismo reacionário, sustentado na exploração da desconfiança crônica da legitimidade das instituições, tendo por modelo de bom governo justamente o regime militar, o governo Bolsonaro é obviamente incompatível com o sistema constitucional de 1988. Não pode governar, portanto, senão tentando burlá-lo.

Desde então, o “golpismo” se tornou conceito básico do vocabulário político, verdadeira ideia-força associada ao modus operandi do novo governo. Ele faz parte da estrutura lógica de governos autoritários, que não reconhece limitações às condições de sua sobrevivência e reprodução. Eles não são orientados pela doutrina do Estado de Direito, mas da Razão de Estado, que preconiza a possibilidade de desrespeito à lei pelo governante em nome do valor supremo da “segurança nacional” (na verdade, a sua própria). Da doutrina da Razão de Estado se extraem duas técnicas: a do segredo de Estado, que autoriza a supressão da publicidade dos atos governamentais pela imposição do sigilo, e o golpe de Estado, ação violenta e fulminante destinada a neutralizar os inimigos da segurança nacional (isto é, do governante).

Embora relacionados todos à arquitetura golpista do governo Bolsonaro, os termos “golpe” ou “golpismo” têm sido empregados para designar três fenômenos que têm sido confundidos, mas que cumpre distinguir para melhor compreender a cena política.

O primeiro desses significados remete às ações praticadas rotineiramente com o objetivo de implantar um programa de governo incompatível com a Constituição e enraizar uma cultura autoritária na administração e na sociedade. São “os golpes nossos de cada dia”. Eles são praticados à luz de um legalismo autocrático que ignora os valores, princípios e precedentes jurídicos, substituindo-os por uma interpretação formalista e seletiva do texto da lei de modo a favorecer a expansão das prerrogativas presidenciais. Governa-se por decretos ilegais, na esperança de torná-los fatos consumados pela lentidão do Congresso e do Judiciário. Aparelham-se os órgãos administrativos, com nomeação deliberada de pessoal inadequado e conivente. Vandalizam-se órgãos da educação, da cultura, da ciência, da saúde, dos direitos humanos e do meio ambiente, transformados em um misto de cabide de emprego e depósito de lixo. O sigilo é imposto a todos os atos cuja publicidade prejudique a administração. Ao mesmo tempo, neutralizam-se pela cooptação e pela intimidação as instituições encarregadas de controlar os malfeitos do governo, como o Ministério Público, a Polícia Federal, o Tribunal de Contas e o Poder Judiciário. Todas esses atos são apresentados pelo legalismo autocrático como constitucionais. É o que Bolsonaro afirma quando diz “jogar dentro das quatro linhas” — ainda que com farta distribuição de catimbas, faltas, agressões e outras jogadas desleais por ele praticadas, sob o olhar complacente de um juiz por ele designado e devidamente comprado.

O segundo sentido da palavra “golpe” remete à sombra do “golpe de Estado” clássico. Dentro da arquitetura golpista, ele visa justamente a desestimular pela ameaça velada de uma ruptura democrática a resistência da sociedade civil e das instituições de controle aos “golpes nossos de cada dia”. Este golpe se daria menos à maneira de 1964, que elevou os militares ao poder — função exercida já pela eleição de 2018 — do que à de 1968, que pelo AI-5 “legalizou” de vez a razão de Estado identificada com a oligarquia militar. Sua pedra de toque reside na interpretação teratológica do art. 142 da Constituição, que em um momento de instinto suicida teria conferido ao próprio presidente da República, na condição de comandante-em-chefe das Forças Armadas, um “poder moderador” que o capacitaria em caso de crise com outros poderes impor sua vontade sobre os demais, na qualidade de “supremo guardião da Constituição”.

Para tornar a ameaça mais verossímil, Bolsonaro não só incentivou manifestações por uma “intervenção militar constitucional” (sic), como tenta transmitir a impressão de que o endosso ao seu governo por alguns generais significaria adesão irrestrita das Forças Armadas à sua pessoa. Afinal, não se desfecha um golpe de Estado sem a participação ativa dos quartéis. Daí que cole sua imagem à dos militares, participando de formaturas, oferecendo-lhes cargos em penca e convertendo o Ministério da Defesa em um “ministério da ameaça de golpe”, encarregado de suscitar “questões militares” sempre que em defesa da vontade contrariada do presidente.

O principal alvo do golpismo é o STF que, na condição de verdadeiro guardião da Constituição, se tornou uma pedra no sapato no projeto bolsonarista de expansão da cultura autoritária.

O terceiro sentido da palavra “golpe”, por fim, remete à insurreição como forma de resistência do povo à fraude de sua vontade soberana. Enquanto o populista moderado alega, em caso de derrota, que o povo foi enganado pelas elites, radicais como Bolsonaro vendem a tese da fraude para reforçar a tese do complô das instituições contra a vontade popular. Daí a necessidade de deslegitimar sua eventual derrota, difundindo a desconfiança nos métodos de apuração eleitoral. A traição à vontade do povo pelas instituições — mais uma vez, o Poder Judiciário — legitimaria uma insurreição à maneira da invasão da sede do Capitólio norte-americano em janeiro de 2021. Também aqui o Ministério da Defesa tem se prestado ao papel de instrumentalizar a suposta competência técnica dos militares para dar credibilidade à possibilidade de fraude. Mas o protagonista deste golpe não seriam os generais do Alto Comando, e sim “povo armado” por Bolsonaro pelos clubes de tiro, bem como militares de baixa patente, principalmente policiais. Este seria o povo encarregado de “resistir à opressão” em defesa de sua “liberdade”.

Estes são os três golpes possíveis de Jair Bolsonaro. Nenhum, porém, passa sem severas complicações. O primeiro, de sabotagem contínua do Estado de Direito, encontra resistências não só dentro dos poderes Legislativo e Judiciário, como no Ministério Público Federal e na própria administração. O segundo, voltado para a eliminação da autonomia dos demais poderes por uma espécie de AI-5, não é do interesse de quase ninguém. Não é da classe política, que ficaria sob a contínua tutela de um autocrata desequilibrado. Também não é da maioria dos generais da ativa, ciosos da preservação de sua autonomia institucional e já satisfeitos com seu retorno ao jogo político, do qual não sairão tão cedo, seja quem vencer a eleição de 2022. Mais provável é sem dúvida a tentativa de insurreição contra os resultados eleitorais, a fim de barganhar alguma forma de indulto ou anistia à cúpula bolsonarista. Mas também aqui o “golpe” tende a encontrar a oposição da própria classe política, cujas lideranças teriam questionadas suas próprias eleições em caso de alegação de fraude. A começar pelo Centrão, que espera “lavar a égua” depois de turbinado pelo orçamento secreto.

Trinta anos de rotina democrática não passam em vão.

 

* Cientista político, editor da revista Insight Inteligência e professor do IESP-UERJ

 

Imagem: "A Persistência da Memória", de Salvador Dali 


Fonte: www.canalmeio.com.br

sexta-feira, 9 de julho de 2021

SUICÍDIO COLETIVO OU GENOCÍDIO PLANEJADO?

 


CIDADES SUICIDAS

 

Pedro Hallal, para Folha de São Paulo

 

"Os dados trazidos a público pelo jornalista Ricardo Mendonça no Valor Econômico são estarrecedores. Todas as 5.570 cidades brasileiras foram divididas de acordo com o percentual de votos em Bolsonaro no segundo turno das eleições presidenciais de 2018. Em 108 cidades, Bolsonaro teve menos de 10% dos votos, em 833 cidades teve entre 10% e 20% dos votos, e assim sucessivamente, até chegar nas 214 cidades nas quais Bolsonaro teve entre 80% e 90% dos votos e na única cidade em que Bolsonaro teve 90% ou mais dos votos em 2018. Essas informações, aliás, são de domínio público e podem ser acessadas por qualquer um no Repositório de Dados Eleitorais do Tribunal Superior Eleitoral.

 

De posse dessas informações, o próximo passo foi analisar a quantidade de casos e de mortes por Covid-19 em cada uma das 5.570 cidades. Novamente, os dados são de livre acesso, tanto pelo Painel Coronavírus do Ministério da Saúde quanto pelo DataSUS. Nas 108 cidades em que Bolsonaro teve menos de 10% dos votos, o número de casos é de 3.781 por 100.000 habitantes. A quantidade de casos sobe linearmente até atingir 10.477 casos por 100.000 habitantes nas cidades em que Bolsonaro teve entre 80% e 90% dos votos e 11.477 casos por 100.000 habitantes na cidade em que Bolsonaro teve 90% ou mais dos votos.

 

Os dados para mortes são igualmente chocantes. A mortalidade varia de 70 mortes por 100.000 habitantes nas cidades em que Bolsonaro teve menos de 10% dos votos, até mais de 200 mortes por 100.000 habitantes nas cidades em que Bolsonaro teve 50% dos votos ou mais. Na única cidade em que Bolsonaro fez 90% dos votos ou mais no segundo turno das eleições de 2018, a mortalidade é de 313 por 100.000 habitantes. Mais do que o resultado dessa cidade isoladamente, o que chama atenção é a escadinha observada nos gráficos.

 

O morador de uma cidade na qual Bolsonaro venceu o segundo turno das eleições de 2018 tem três vezes mais risco de morte por Covid-19 do que o morador de uma cidade em que Bolsonaro foi derrotado com folga. Mesmo que a pessoa tenha votado contra o negacionismo, estando ela exposta a um ambiente negacionista, seu risco de morte é maior."

 

Pedro Hallal, na Folha.

Fonte da Imagem: http://fantasyartdesign.com/free-wallpapers/wallpaper.php?u_i=368&i_i=645

 

segunda-feira, 21 de junho de 2021

ESTRATÉGIA DE COMUNICAÇÃO DA EXTREMA DIREITA

 


Estratégia de comunicação da direita alternativa se alimenta do hiato geracional.

“Hiato geracional” – a perda da função de elo geracional dos idosos, cujo ressentimento alimenta a extrema-direita, deixando os jovens expostos às táticas de guerra híbrida alt-right nas redes sociais.

 Por Wilson Ferreira.

Dois eventos sincrônicos: no Brasil, a motociata convocada por Bolsonaro com seis mil motos de luxo de alta cilindrada montada, em sua maioria, por “tiozões”, brancos, com jaquetas de couro preto emulando a gang famosa dos Hell’s Angels, perfil dos atuais apoiadores do presidente que saem às ruas; e na Inglaterra, o gênio da guitarra Eric Clapton, 76, mais uma vez destilando o negacionismo ao afirmar que as vacinas contra a Covid-19 “podem afetar a fertilidade”. O atual estado de coisas começou com as Jornadas de Junho de 2013 com a energia de jovens secundaristas e universitários. Para terminar com senhores calvos segurando bandeiras neo-nazistas ucranianas em manifestações verde-amerelas de rua em apoio ao “tiozão do churrasco”, personagem performado pelo atual presidente. A estratégia de comunicação da direita alternativa (alt-right) é favorecida por um fenômeno: o “hiato geracional” – a perda da função de elo geracional dos idosos, cujo ressentimento alimenta a extrema-direita, deixando os jovens expostos às táticas de guerra híbrida alt-right nas redes sociais.

 “Ficar velho não quer dizer ficar melhor”. É o slogan que abre a série de “vídeocassetadas” envolvendo idosos no canal Failarmy – líder mundial de compilações de vídeos engraçados envolvendo pequenos acidentes domésticos, esportivos etc.

Ironicamente esse humilde blogueiro lembrou desse slogan quando assistiu a um vídeo em que o famoso e veterano guitarrista Eric Clapton, mais uma vez, posicionou-se contra as vacinas contra a Covid-19, afirmando que elas tornariam as pessoas inférteis. Para ele, estudos científicos e as opiniões de organizações médicas não passariam de “propaganda”.

O gênio da guitarra passou toda a pandemia dando declarações contra o isolamento social e questionando a própria existência de uma pandemia global. Mas em se tratando de Clapton, não é uma novidade: em 2004 lamentou a presença de imigrantes no Reino Unido e chamou o político anti-imigração Enoch Powell de “escandalosamente corajoso”.

Como assim? Por que Eric Clapton, aquele que deu um “shot” no xerife virou um velho ranzinza e reaça de extrema-direita? Tá certo que a cabeça dele já não andava boa nos anos 1970 com tantas drogas e álcool, até passar por uma temporada de reabilitação em Antigua… Já em 1976, Clapton havia protestado contra imigrantes num show em Birmigham. Mas ele diz não se lembrar…

O curioso é que ver um senhor tão talentoso de 76 anos como Eric Clapton dando declarações públicas de extrema-direita faz esse humilde blogueiro lembrar de congêneres brasileiros (guardadas as devidas proporções) como Lobão e Roger do “Ultraje a Rigor”: a idade também não lhes fez nada bem. O primeiro, um bolsonarista arrependido, e o segundo, ainda um bolsominion empedernido.

Além de lembrar as atuais manifestações de apoiadores de Bolsonaro, como também aquelas multidões de camisetas da CBF nas ruas querendo o impeachment da presidenta Dilma.

Nas últimas “motociatas” convocadas por Bolsonaro, a maioria dos integrantes eram homens brancos com mais de 50 anos com motos Harley Davidson, Kawasaki, BMW com propulsores de alta cilindrada e jaquetas de couro emulando a famosa gang Hell’s Angels. Esse é o “núcleo duro”, os bolsonaristas renitentes, verdadeiros “tiozões do churrasco” (aquela figura folclórica que fazia todos rirem com piadas misóginas e tiradas políticas extemporâneas), cuja imagem de Bolsonaro é a desforra de todos os tiozões que já foram zoados em todas as churrascadas da história brasileira.

Mesmo entre os manifestantes de verde-amarelo nas ruas mandando a presidenta tomar naquele lugar, era marcante a dominância de casais de meia idade para cima, esquisitões fascistas mais velhos com camisetas de camuflagem militar e senhores calvos segurando uma bandeira rubro-negra com tridente na Avenida Paulista, São Paulo, símbolo do nacionalismo ucraniano de extrema-direita.

Nada a ver com as manifestações que acenderam o rastilho de pólvora que deu em tudo isso: nas Jornadas de Junho de 2013 e manifestações de ruas subsequentes era massiva a participação de jovens estudantes secundaristas e universitários, além de militantes de novos coletivos políticos.

Hiato geracional

Como interpretar essa guinada etária na recente trajetória política brasileira em que… aquilo deu nisso? Por que o núcleo duro, recalcitrante e birrento, da extrema-direita é formado por apoiadores cinquentões, sessentões e setentões?

Essas questões não surgem do nada. Assim como a até aqui vitoriosa estratégia de comunicação da chamada direita alternativa (alt-right) não veio de um golpe do acaso. Há um fator sociológico e geracional pouco discutido na ascensão desse novo extremismo de direita: o hiato geracional – a crise da função dos idosos como elo geracional, ou seja, como transmissora de sabedoria e conhecimento acumulados em uma existência.

É claro que jovens e idosos são os dois lados de uma mesma moeda nessa questão: Bolsonaro contou com 60% de eleitores entre 16 e 34 anos. Desses, 30% tinham menos de 24 anos (clique aqui). Jovens conduziram um ex-militar com 26 anos de atuação do Baixo Clero do Congresso Nacional. Enquanto, hoje, de cinquentões para cima demonstram o apoio irrestrito ao capitão da reserva nas ruas.

Entre esses dois grupos, o hiato geracional, do qual alimentou a estratégia alt-right de comunicação.

Em culturas tradicionais, onde a velhice e a morte eram simbolicamente incorporadas no dia a dia, os idosos sempre foram “elos geracionais” como transmissores de um saber acumulado, conhecimento e sabedoria. Colocados em posição de destaque na sociedade, o natural declínio físico era compensado pela sabedoria, amor e trabalho unidos em uma preocupação com a posteridade na tentativa de equipar os mais jovens para levar adiante as tarefas dos mais velhos.

Narcisismo e cultura jovem

Desde o pós-guerra e a consolidação da sociedade de consumo através da Publicidade criou-se uma sensibilidade inédita na História: pela primeira vez, o jovem tornou-se o modelo de beleza, felicidade e consumo. Ou a sua versão politizada: a rebeldia e a revolução.

O jovem, o novo e a novidade passaram a ser moralmente bom, enquanto o “velho” (o idoso, o antigo) tornam-se ultrapassados, o oposto do progresso, da evolução ou da revolução. 

Toda a indústria da moda e publicidade vai ao longo das décadas glamorizar o “novo” e a “novidade” como moralmente bom, prazeroso e estimulante. O ápice dessa verdadeira engenharia de opinião pública foi a construção da cultura pop e jovem nas décadas de 1950-60. “Não confie em ninguém com mais de 30”, dizia o desafiante lema jovem da contracultura: os “mais velhos” (pais e autoridades) passaram a ser encarados como “quadrados”, ultrapassados e intrinsecamente conservadores.

Se isso foi positivo em um momento histórico como revolução e crítica, por outro lado seus líderes não perceberam a ambiguidade dessa nova cultura: seria a base imaginária (ao lado do crédito no consumo) de toda a descartabilidade e hedonismo necessários para a aceleração da sociedade de consumo.

Aos idosos restou a papel de negarem-se a si próprios, em primeiro lugar, através das “lições de vida” que os idosos nos ensinariam em pautas motivacionais de telejornais: um senhor de 70 anos que pratica maratonas; uma senhora que aos 75 anos retoma a sala de aula para concluir o ensino médio pensando na universidade e nova carreira profissional; outro senhor de 65 anos diz orgulhar-se por aventurar-se no “mundo das atividades físicas”: “faço atividades físicas com força na academia para fortalecer a musculatura e garantir que tão cedo eu não vou ter que ‘pendurar as chuteiras’”, brinca.

E segundo, todo um aparato terapêutico renovado a cada dia pela indústria farmacêutica na qual a função de “elo geracional” é esquecida: os idosos nada têm a dizer para as câmeras em termos de conhecimento ou sabedoria, a não ser negar a si mesmos numa tentativa a todo custo de aparentar uma atitude positiva e ficar parecidos com os mais jovens.

Christopher Lasch chamava a atenção para esse esvaziamento do elo geracional dos idosos por essas transformações trazidas pelas soluções médicas e sociais.

Lasch acredita que a negação em relação à velhice se deve à cultura da juventude, mas principalmente à perda do interesse dos homens pela vida terrena e o medo da velhice pela ascensão de uma personalidade narcísica.

Por ter o narcisista tão poucos recursos interiores, ele olha para os outros para validar seu senso de eu. Precisa ser admirado por sua beleza, encanto, celebridade ou poder – atributos que geralmente declinam com o tempo. Incapaz de alcançar sublimações satisfatórias nas formas de amor e trabalho, ele percebe que terá pouco para sustentá-lo quando a juventude passar (LASCH, Christopher. “A Cultura do Narcisismo”, R. de Janeiro, Imago, 1983, p. 254-55).

O sofrimento central da velhice (o fato de que vivemos vicariamente em nossos filhos ou em gerações futuras) perde suas formas sublimatórias religiosas ou filosóficas como o amor, a sabedoria e o conhecimento, formas que nos faziam se reconciliar com a nossa própria substituição.

Ressentimento e sublimação

Destituído das formas sublimatórias porque destituído da sabedoria e do conhecimento (afinal, vive numa sociedade em deve “nem parecer que é velho”), a frustração e o ressentimento o tornam presa fácil dos valores propagados como isca pela extrema-direita: justiçamento, intolerância, vingança, culto ao poder como sublimação substituta – idolatrar personalidades “fortes” e a simbologia fálica como motos de alta potência, armas etc. 

Sem terem sabedoria ou o quê dizer aos mais jovens, instaura-se o hiato geracional que isola os jovens num presente extenso – sem o passado, porque os idosos se tornaram uma caricatura de “jovens idosos”; e sem futuro, porque não há nenhuma sabedoria transmitida através da qual seja possível projetar um caminho, uma meta ou mesmo uma utopia.

Nesse presente extenso, os jovens serão igualmente presas fáceis dessa cultura que exala juventude e novidade como verdades em si mesmas: a cultura meme, streamer e influencer. Terreno fértil para fake news e pós-verdades das estratégias alt-right.

Claro que o leitor pode se contrapor a esse argumento sócio-geracional dizendo nem sempre esse elo geracional do passado transmitiu sabedorias positivas para a juventude. Pelo contrário, em geral as sociedades se estruturaram em tradições persecutórias, obscurantistas e reacionárias, em torno do discurso da “moralidade” e dos “bons costumes”.

Porém, a diferença é que em última instância, esse elo geracional mantinha uma sociedade organicamente coesa pelas formas de transmissão cultural por meio da tradição.

Ao contrário, o hiato geracional cria isolamento e vulnerabilidade que permitem a manipulação pelas estratégias políticas midiáticas – o ressentimento que promete a recuperação (ou a sublimação) da potência perdida para os idosos por meio do fascínio pelos simbolismos fálicos na política; e para os jovens, o presente extenso hedonista e niilista.

 

quarta-feira, 9 de junho de 2021

OBEDECER É PARA OS FRACOS

 

 


Por que Bolsonaro não usa máscara?


Por Roberto DaMatta

09/06/2021


Fiz a pergunta a muitas pessoas de ambos os polos e a uma minoria centrista que procurei como um detetive. Todos se assombraram com minha inocência. Como é que eu — professor titular de Antropologia Social e pesquisador da “alma brasileira” — não sabia que, entre nós, quem manda não obedece?


Como é que eu podia ignorar que, no Brasil, mandar anula o obedecer, essa desagradável anormalidade democrática que inverte a velha ordem? Como é que eu esquecia que “estar no poder” é sinônimo de não seguir coisa alguma, porque obedecer é o carimbo dos fracos e dos pobres?

É claro que Bolsonaro não usa máscara!

Como é que ele aceitaria tal banalidade, se o sinal que envia é que pode tudo? No Brasil, ser superior é não estar com a lei, mas situar-se acima dela, é claro.

É ter o privilégio de não ser cidadão. De provocar e abusar, na certeza de não ser punido. É ser “impunível” e, se preso for, ter a plena confiança de que um jurisconsulto ponderado vai livrá-lo da prisão, que será especial — um xadrez hierárquico e diferenciado...

Ninguém definiu tais condições com mais clareza que o próprio Bolsonaro quando, em 12 de maio do corrente, numa de suas tiradas absolutistas, declarou que “só Deus me tira daqui” e, no dia 17, afirmou ser “imorrível, imbrochável e também incomível”. O incomível é curioso. Ele salienta a qualidade bolsonaresca de ser duro de roer, mas deixa de lado outras implicações que Freud explica, e eu prefiro não comentar...

A arrogância expõe as propriedades conhecidas, mas pouco discutidas, de todos os que “sobem”, “chegam” ou “tomam” o poder no Brasil.

Aqui (como na América Latina), ser irremovível ainda é o sonho de quem encabeça um sistema que transforma eleições em rituais dinásticos, ministros em fidalgos ou criados e o eleito, em salvador (ou matador) da pátria. O populismo é o modelo resistente à igualdade do presidente perante a lei.

Aprendemos que o dono da bola pode mudar as regras do jogo e, sendo contrariado, ele acaba com o jogo.

O “golpe” é uma possibilidade constante em países onde verdade e mentira se contestam. É preciso perceber que crimes políticos hediondos, como “o rouba, mas faz”, ainda são vistos como piadas e folclore.

O que mostra como evitamos examinar o protagonismo dos costumes sobre as instituições. Aquilo que é positivo na família, e até mesmo no partido, contraria a ética democrática.

É preciso compreender como a ambiguidade ética corrói a impessoalidade obrigatória das democracias, cuja disciplina se baseia na separação de pessoas e cargos. O atualíssimo e atrasado “manda quem pode, obedece quem tem juízo” é um mote escravocrata. É uma prova da desigualdade como valor no Brasil.

A decepção bolsonarista tem tudo a ver com a incapacidade de negar o pedido de um amigo e de ver essa incapacidade como normal. Como se lei, civilização, costumes e comportamentos fossem seres de planetas diferentes, quando são dimensões necessariamente relacionadas nos regimes democráticos.

Caso a “casa” continue a englobar a política e a “rua”; caso os elos pessoais sejam mais valorizados que a moralidade coletiva, temos incesto. O que iguala estruturalmente incesto e “corrupção” é romper com uma norma pública universal em favor de desejos particulares. Pois, como adverte sabiamente a revista “Playboy”, “o incesto é legal desde que seja mantido em família”.

Mas como manter a muralha da família (e dos compadrios) ao lado da liberdade do mercado e das gravações reveladoras da verdadeira máscara do invocador do Tribunal de Nuremberg e também das facções de ataque e defesa do governo, que são (com a devida vênia) contumazes potoqueiras? Por que — essa é a grande questão — o campo político virou um espaço de mentiras, malandragens e desenganos?

O abominável no comportamento de Jair Bolsonaro é que ele ainda não conseguiu entender a magnitude do papel de presidente da República. É claro que tudo tem a ver com a crença de que ele se pense, como disse com uma ingenuidade embaraçosa, como “imorrível, incomível e imbrochável”. Delas todas, eu invejo a mais humana, a última.

Como dizia o velho e querido brasilianista Richard Moneygrand, dificilmente se faz democracia com faraós.



Fonte da imagem: https://makaniart.com/portfolio/creation-unleashed

sábado, 22 de maio de 2021

ENTENDA PORQUE BOLSONARISTAS MENTEM


 

A mentira do populista dá credibilidade

  Por Pedro Doria, para Canal Meio

O Flow podcast é um dos mais badalados programas digitais de debate da internet brasileira. De segunda a sexta-feira, exibido a partir das 20h, quando os dois apresentadores se reúnem ao redor da mesa para uma longa conversa com convidados. E, na semana passada, um trecho destes debates explodiu. Se tornou um dos mais badalados assuntos das redes sociais. Enquanto isso, na CPI da Covid, o general Eduardo Pazuello se tornava o terceiro ex-ministro do governo Jair Bolsonaro a sentar perante os senadores e mentir. Mentir, inclusive, a respeito de momentos gravados em vídeo. Facilmente desmontáveis.

No Flow, o confronto foi entre Gabriela Prioli, comentarista da CNN Brasil, e um dos apresentadores. Bruno ‘Monark’ Aiub. Monark vinha falando sobre educação no Brasil quando Gabriela questionou suas premissas. “Isso é muito chato”, ele reclamou. “Não poder conversar, falar sobre o que penso porque não tenho números e estatísticas.” Já não era mais uma conversa sobre um tema. Passava a ser uma conversa sobre como funciona o debate público. “Você pode falar tudo”, argumentou Prioli. “Mas pode estar falando uma mentira se não tiver um dado.” (Assista ao episódio.)

Quando confrontado na CPI após ter dito que o presidente jamais havia dado ordens para não comprar vacinas do Butantã, o ex-ministro da Saúde também se livrou da aparente incoerência. Os senadores o lembravam de que havia um vídeo, de ampla circulação, em que ele comentava com Bolsonaro ao lado — “um manda, o outro obedece”. A ordem do presidente era justamente de não comprar vacinas. “Aquilo foi apenas posição de agente político na internet”, argumentou o general. O que o presidente diz na internet não precisa ser verdade. Para Pazuello, era uma constatação natural. Para os senadores não-governistas, soou como ultraje.

A mentira, assim como um debate não baseado em fatos, fazem parte do arsenal de ferramentas dos novos líderes populistas e autoritários do mundo. Pode parecer paradoxal: mas é a fonte de sua credibilidade perante seus eleitores.

Os dois momentos talvez não pareçam relacionados mas revelam justamente este traço de nossa cultura política transformada pela comunicação digital. Em ambos os casos, a indignação de Monark ao ser cobrado e a maneira como o público bolsonarista recebeu os depoimentos dos ex-ministros na CPI, o que há em comum é uma busca por autenticidade. E, para compreender este processo, é útil pensar em populismo de uma forma nova.

Tradicionalmente, populismo é visto como uma ferramenta política. Um estilo de fazer política.

O desafio de todo líder é juntar eleitores e conquistar eleições. O candidato populista faz isso construindo uma relação de identidade entre ele e o público na qual, juntos, formam um mesmo povo que têm um problema. Seus objetivos não têm sido alcançados por conta da elite. O líder é quem será capaz de furar este bloqueio. O populismo é, por esse ângulo, uma performance do líder político. Um jeito de agir no palanque, um jeito de construir o discurso para seduzir eleitores.

A cientista política inglesa Catherine Fieschi, professora da London School of Economics e diretora da consultoria Counterpoint, é uma dentre uma nova geração na ciência política que propõe enxergar o populismo não como método mas como ideologia. O método é uma tática para conquistar um objetivo — a eleição. Candidatos podem lançar mão de um discurso populista quando lhes interessa ou não. Faz parte do arsenal que têm à disposição. Ideologia é bem mais do que isso. Ideologia é toda uma visão de mundo. É a maneira como se compreende a realidade.

A vantagem desta lente, de enxergar populismo como ideologia, é que fica mais fácil entender como mentiras escancaradas se tornam, para os eleitores destes novos líderes, garantia de maior credibilidade.

Na definição de Fieschi, a ideologia do populismo, um pacote fechado e autossuficiente de ideias, começa na crença de que há um mesmo povo, que é homogêneo e soberano. A democracia deveria garantir — a este povo que é homogêneo — controle sobre a sociedade. Como esta visão rejeita a ideia de que há diversidade social grande, qualquer governo que represente outros anseios é visto, automaticamente, como não democrático. Não representa, afinal, o verdadeiro povo. A ideologia do populismo, neste momento, acusa a traição da democracia e busca quem represente autenticidade.

O conceito liberal de democracia não tem nada disso. Pelo contrário: parte justamente da premissa de que há correntes de opinião distintas na sociedade, de que há anseios diversos. Democracia é a forma que permite que estas correntes possam negociar suas diferenças. Quando um líder populista fala de democracia, porém, ele está falando de algo completamente distinto. Ele está falando como representante do único ‘povo verdadeiro’. A crença de que o ‘povo’ é homogêneo, que quem é diferente está à parte deste ‘povo’, é fundamental nesta ideologia. E é aí que esta ideia de autenticidade é o conceito-chave.

O eleitor que segue a ideologia do populismo está em busca de autenticidade em seus líderes. Esta busca é norteada por uma emoção forte — a do ressentimento. A sensação de que elites humilham quem está embaixo. Não se trata de elite apenas no sentido econômico — a elite compõe, aqui, quem tem autoridade em uma sociedade. Quem tem dinheiro, claro, mas também quem tem poder, e quem tem conhecimento. Este ressentimento nasce da percepção de que seus anseios pessoais, os do povo homogêneo, não podem nunca ser atendidos porque estas elites — quem tem dinheiro, poder ou conhecimento — o impedem. Mais do que isso. As elites tratam de forma depreciativa estes anseios. É como se ter acesso ao poder ou mesmo participar do debate público fosse impossível ao verdadeiro povo. Que é homogêneo.

Autenticidade, portanto, é um jeito de pensar e um jeito de agir. O líder autêntico pensa como o povo. Se manifesta como o povo. E desafia as elites no que vê como sua arrogância. Não joga o jogo conforme as regras da elite. É um herói do povo.

E está lá na frase de Monark para Gabriela Prioli. “Quando falo o que penso”, ele se queixa, “você vem com quais são os dados. Se não tenho os dados, pronto, o que penso está inválido, você nem contempla minha opinião.” Ou seja, o senso comum é desvalorizado. Aquilo que ‘todo mundo pensa’ é desprezado pelas elites. É desprezado porque o senso comum não consegue se impor num debate em que argumentar com fatos é exigido.

Aí, o problema da democracia é que, se num debate é preciso sustentar com argumentos uma visão, as regras do jogo se mostram construídas para impedir que este senso comum baste. E faz isso, segue a percepção, humilhando.

O que o líder populista faz é se recusar a seguir as regras do jogo habitual. Ele é grosseiro. Ignora propositalmente a correção política. É abertamente preconceituoso: racista, xenófobo, homofóbico, chauvinista. E, sim, mente. Mas não mente como políticos costumam mentir. A mentira política comum é aquela que tenta esconder algo. Ou justificar uma decisão errada. São mentiras que têm consequências. As mentiras do populista têm outra natureza. Ele não se baseia em fatos para sustentar suas convicções. Se baseia em impressões, no instinto, em histórias de ouvir falar. Ele não tem justificativas que não o sentimento de que está certo. De que sentir esta certo basta.

Quando mente, quando ignora fatos, está em essência desafiando a ‘lógica do sistema’. A lógica que impede ao seu eleitor que participe do debate. Uma lógica, que o eleitor sente, o oprime.

No centro do novo movimento populista e autoritário está a palavra, o diálogo, a linguagem. Não é à toa. O que o multiculturalismo produziu, nas últimas décadas, foi uma nova linguagem que reconhece uma sociedade heterogênea. Faz parte deste conjunto um novo vocabulário — como, por exemplo, nomear LGBTs, pessoas de outras etnias. Uma busca por palavras que não ofendam. Faz parte, também, um jeito de conversar. A garantia de tempo para quem não é ouvido, respeito à legitimidade da opinião de quem traz a vivência de certas experiências.

Na sua forma mais sutil, o multiculturalismo reflete uma particular atenção à cortesia e o respeito aos espaços de fala de quem tem certas experiências de vida. Na forma mais radical, abole a designação de gênero, todes, todxs. Mas, principalmente, o multiculturalismo é esta nova linguagem que existe para reconhecer diversidade. Esta é a essência do multiculturalismo, do cosmopolitismo liberal progressista que se implantou nas últimas décadas. É natural, portanto, que a ideologia que reage a esta mudança comece por uma repulsa à linguagem.

A linguagem do neopopulismo será caricaturalmente grosseira e rejeitará qualquer discussão que, por princípio, reconheça a sociedade como heterogênea. Seu princípio é justamente não reconhecer a diferença. Só o ‘povo homogêneo’ existe.

“Há um paradoxo a respeito da palavra”, escreve Fieschi em Populocracy: The Tyranny of Authenticity and the Rise of Populism (Amazon Brasil), livro que lançou em 2019. Populocracia: A Tirania da Autenticidade e a Ascensão do Populismo, não lançado no Brasil. “Por um lado, muitos dos com quem conversei valorizam a compreensão instantânea um do outro, de pessoas ‘como eles’. Valorizam que se diga as coisas na cara, com clareza ainda que grosseira. Valorizam uma sociedade em que se pode dizer o que se pensa com a garantia de que ninguém será mal compreendido.” E este é o problema percebido no multiculturalismo. Em sociedades europeias nas quais a transformação passa pela chegada de imigrantes, gente com sotaques e tons diversos de cor na pele, o multiculturalismo interdita a conversa sobre o desconforto que muitos sentem com estas pessoas diferentes. Noutras sociedades, como a brasileira, o novo vocabulário da política dificulta a entrada no debate para quem rejeita políticas públicas voltadas para os tradicionalmente excluídos para quem é tradicionalmente excluído — mulheres, negros, indígenas etc.

O foco está, sempre, em rejeitar a ideia de que o povo é composto por grupos com muitas diferenças e reforçar a ideia de um povo verdadeiro e homogêneo.

Daí que ignorar fatos e falar o que se sente é ser autêntico. Ir a um interrogatório de CPI e ignorar por completo as normas habituais — recusar as regras do jogo — é igualmente ser autêntico. Amplia a credibilidade, não a diminui. Porque rejeita a linguagem da democracia liberal, multicultural, para abraçar um outro conceito de democracia. Um significado em todo diferente para a palavra.

“A mentira do populista”, escreveu a cientista no Guardian, “tem por objetivo ser percebida. É o contrário da mentira que quer esconder algo. No jogo que o populista joga, mentir é glorificado. É um instrumento de subversão, seu objetivo é mostrar que o líder cruzará qualquer limite para ‘servir ao povo’. Estas mentiras são símbolos de que estes políticos não se restringem às normas correntes da elite liberal democrata. Enquanto liberais democratas se preocupam em sinalizar virtude, populistas sinalizam repulsa.”

Repulsa à diversidade. A um mundo transformado.

É uma política de apelo aos instintos, não ao cérebro.

 

 

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