Aluno
de Charles Sherrington (1857-1952), considerado por muitos o pai da
neurociência de sistemas, o neurocirurgião Wilder Penfield (1891-1976)
foi o responsável pelo início da revolução na compreensão do cérebro.
Através
de suas observações, obtidas durante procedimentos neurocirúrgicos para
remoção de focos epilépticos corticais durante 19 anos, em pacientes
cuja epilepsia não podia ser contida com medicamentos, Penfield mapeou o
tipo de sensações táteis geradas por estimulações elétricas de regiões
corticais localizadas à frente e atrás do sulco central.
Gerou-se,
assim, a imagem mítica do Homúnculo e foi dado um passo gigantesco na
compreensão do funcionamento do cérebro por via de populações.
A neurociência pode ser dividida em duas linhas de pesquisa: populacionista e localizacionista.
A
linha localizacionista reduz o cérebro a neurônios que funcionariam de
modo isolado dentro de um cérebro que é dividido com perfeição em
determinadas funções.
Por outro lado, a linha populacionista
não concorda com a perfeição na divisão do cérebro em funções, e vê que
um único neurônio não é capaz, por si só, de gerar nenhum comportamento
ou pensamento. Assim, várias populações de neurônios agem em várias
regiões do cérebro juntamente, como se fossem uma única coisa. Talvez
seja este o motivo dos constantes comportamentos ambíguos do ser humano,
que proporcionam, essencialmente, a nossa impressão de um "eu".
"Um único neurônio não é capaz, por si só, de gerar nenhum comportamento ou pensamento." Miguel Nicolelis |
A
visão reducionista, localizacionista, predominante na neurociência do
século XX, dividia o cérebro em regiões individuais que continham uma
alta densidade de neurônios. Essas regiões foram então batizadas de
áreas ou núcleos neurais.
De acordo com essa estratégia, a missão do neurocientista seria estudar individualmente os diferentes tipos de neurônios presentes em cada uma dessas estruturas, de maneira minuciosa.
Esperava-se que com o estudo exaustivo
de um grande número de neurônios presentes em suas conexões locais com
outras estruturas, áreas e núcleos neurais, a informação acumulada
permitisse compreender o funcionamento do cérebro como um todo.
O dogma no reducionismo levou a grande
maioria dos neurocientistas do século passado a dedicar suas carreiras à
descrição detalhista das propriedades anatômicas, fisiológicas,
bioquímicas, farmacológicas e moleculares de neurônios individuais e
seus principais componentes estruturais. Como observam os
neurocientistas populacionistas, aquele neurocientista reducionista do
passado se assemelhava a um ecólogo tentando entender o ecossistema da
floresta amazônica observando o funcionamento de uma única árvore de
cada vez.
Já
a neurociência populacionista estuda como os elementos cerebrais
interagem entre si, tal como movimentos sociais, o mercado financeiro
mundial, a internet ou uma colônia de formigas.
O sistema complexo possui entidades
cujas propriedades mais fundamentais tendem a emergir por meio da
interação coletiva de seus múltiplos elementos individuais. São centenas
de bilhões de neurônios e suas conexões, sinapses, que conjuntamente
proporcionam mudanças fisiológicas de milissegundo a milissegundo - o
cérebro humano representa um modelo ideal de um sistema complexo.
A contribuição de Penfield em meio a esta discussão foi indiscutivelmente preciosa.

Penfield coletou dados intraoperatórios obtidos durante mais de quatrocentas craniotomias em pacientes epilépticos.
Neste procedimento, realizado sob
anestesia local, uma janela em forma de circulo é aberta no crânio
através da remoção do osso, com conseqüente exposição do tecido
cerebral, revestido e protegido por uma firme lâmina de fibras colágenas
– as meninges. Após uma simples incisão das meninges, o córtex cerebral
pode ser visualizado diretamente. Desprovido de qualquer fibra ou
receptor neural capaz de sinalizar a presença de um estímulo de dor
(nociceptivo), tanto a manipulação como a estimulação elétrica do tecido
são indolores.
Assim, Penfield pode estimular
eletricamente regiões do córtex em busca da área que causava as crises
epilépticas em seus pacientes. Acordados durante todo o procedimento, os
pacientes eram questionados por Penfield durante cada período de
estimulação elétrica sobre que tipo de sensações ou movimento corpóreo
derivava de cada estímulo.

Ao
longo dos anos, Penfield e seu grupo de colaboradores realizaram todo o
mapeamento das regiões corticais localizadas à frente e atrás do sulco
central.
O estudo observou que os sítios que geravam sensações táteis do córtex motor não eram um mero artefato produzido pela estimulação de fibras colaterais nervosas. Então surge uma conclusão clara:
“Enquanto
o córtex motor primário e o somestésico individualmente exibem um claro
grau de especialização funcional, ambas as regiões, apesar de se
situarem em dois lobos distintos, aparentemente compartilham suas
funções na gênese de comportamentos sensório-motores”.
Esta
conclusão sugere a hipótese de que áreas individuais do córtex, apesar
de especializadas, podem contribuir para outras funções cerebrais
envolvidas na criação de múltiplos comportamentos. Deste modo, existiria
uma organização funcional diferente do que pensam os localizacionistas;
o córtex motor primário, enquanto envolvido, sobretudo, na execução de
comportamentos motores voluntários, também contribuiria, de forma
secundária, na geração de nossas sensações táteis.
Assim, em condições normais, o córtex
somestésico primário teria uma probabilidade muito mais alta de estar
envolvido na definição de nosso rico repertório de percepções táteis do
que na geração de programas motores.
Penfield
descobriu com a reconstrução da sequência espacial das sensações táteis
relatadas por seus pacientes que, enquanto deslocava o local da
estimulação cortical, a localização da sensação tátil relatada pelos
pacientes progressivamente se movia também, começando nos artelhos,
dorso do pé, depois a perna, quadril, tronco, pescoço, cabeça, ombro,
braço, cotovelo, antebraço, pulso, mão, cada um dos dedos, face, lábios,
cavidade intraoral, e finalmente, garganta e cavidade abdominal.
Quando essa sequência espacial foi
grafada, sobreposta a uma imagem de secção transversa do córtex,
Penfield observou a emergência de um mapa topográfico completo do corpo
humano, que ficou conhecido como “homúnculo” sensorial.
A
ilustração que define de forma tão clara o mapa topográfico do corpo
humano no córtex somestésico primário foi confeccionada pela sra. H. P.
Cantlie – figura que acabou por se tornar uma das mais conhecidas da
literatura médica de todos os tempos.
A figura confeccionada pela sra. Cantlie mostra um corpo humano
grotescamente distorcido, mas, que nas palavras do médico e
neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, na realidade:
“reproduz
fidedignamente a escultura neural que emerge de um processo
ontogenético conhecido como magnificação cortical, que determina que
mapas neurais de nosso corpo sofram uma expansão desproporcional de
certas regiões em detrimento de outras.”
Isso
que dizer que as regiões expandidas do homúnculo – dedos, mãos, face,
região perioral e língua - correspondem a estruturas revestidas por um
epitélio rico em mecanorreceptores, uma classe de sensores neurais
inervados e distribuídos por terminais axonais altamente especializados
de nervos periféricos.
Essas terminações nervosas
especializadas dos mecanorreceptores são responsáveis por traduzir, o
tempo todo, as mensagens contidas em estímulos táteis gerados pelo mundo
exterior que nos circunda como pelo universo corpóreo interior que
foge do alcance de nosso olhar. De forma proporcional, outras partes do
corpo do homúnculo recebem muito pouco estímulo sensorial – como as
costas.
A
explicação funcional para a ocorrência do fenômeno de magnificação
cortical durante a configuração ontogenética dos mapas táteis do cérebro
humano é relativamente simples:
"Como
na nossa espécie a pele que reveste a ponta dos dedos, as mãos e a face
contém a maior densidade de mecanorreceptores observada em todo o
corpo, essas regiões definem os órgãos táteis mais eficientes e
confiáveis, por meio dos quais podemos construir uma imagem tátil do
mundo ao redor."

O
fenômeno da magnificação cortical não é um privilégio da espécie
humana. No geral, até onde foi estudado e documentado nos últimos 70
anos, os cérebros dos mamíferos apresentam esses mapas, somatotópicos,
distorcidos.
Por exemplo, em guaxinins, a figura
de um “guaxintúnculo” pode ser inferida pela presença de um mapa
cortical que privilegia a expansão da representação do rabo e patas
dianteiras. Assim, nos principais órgãos táteis desse mamífero, o
fenômeno de magnificação cortical se manifesta pela representação
desproporcional da pele dessas regiões dentro de seu cérebro.
No rato (rátunculo), por exemplo, as
vibrissas faciais ("bigodes"), focinho e patas dianteiras são
magnificados desproporcionalmente dentro dos mapas corpóreos que habitam
o cérebro desse animal – em seu córtex somestésico.

O
neurocientista brasileiro aponta que, apesar do grande destaque na
literatura especializada ao estudo dos mapas somatotópicos no córtex,
representações topográficas e altamente distorcidas do corpo também são
encontradas em todas as estruturas subcorticais.
Estas definem o circuito neural por
onde trafegam os feixes ascendentes de nervos que carregam informação
tátil da pele e órgãos internos, bem como o feedback de sinais
originários dos músculos e tendões, para os confins do sistema nervoso
central.
O que, de fato, não inferioriza a
conclusão de Penfield, mas a complementa. Mais um passo no caminho a
favor da neurociência de sistemas e populações, e compreensão do
cérebro.