Estratégia de comunicação da direita alternativa se alimenta do hiato geracional.
“Hiato geracional” – a perda da função de
elo geracional dos idosos, cujo ressentimento alimenta a
extrema-direita, deixando os jovens expostos às táticas de guerra
híbrida alt-right nas redes sociais.
Por Wilson Ferreira.
Dois eventos
sincrônicos: no Brasil, a motociata convocada por Bolsonaro com seis mil
motos de luxo de alta cilindrada montada, em sua maioria, por
“tiozões”, brancos, com jaquetas de couro preto emulando a gang famosa
dos Hell’s Angels, perfil dos atuais apoiadores do presidente que saem
às ruas; e na Inglaterra, o gênio da guitarra Eric Clapton, 76, mais uma
vez destilando o negacionismo ao afirmar que as vacinas contra a
Covid-19 “podem afetar a fertilidade”. O atual estado de coisas começou
com as Jornadas de Junho de 2013 com a energia de jovens secundaristas e
universitários. Para terminar com senhores calvos segurando bandeiras
neo-nazistas ucranianas em manifestações verde-amerelas de rua em apoio
ao “tiozão do churrasco”, personagem performado pelo atual presidente. A
estratégia de comunicação da direita alternativa (alt-right) é
favorecida por um fenômeno: o “hiato geracional” – a perda da função de
elo geracional dos idosos, cujo ressentimento alimenta a
extrema-direita, deixando os jovens expostos às táticas de guerra
híbrida alt-right nas redes sociais.
“Ficar velho não quer
dizer ficar melhor”. É o slogan que abre a série de “vídeocassetadas”
envolvendo idosos no canal Failarmy – líder mundial de compilações de
vídeos engraçados envolvendo pequenos acidentes domésticos, esportivos
etc.
Ironicamente esse
humilde blogueiro lembrou desse slogan quando assistiu a um vídeo em que
o famoso e veterano guitarrista Eric Clapton, mais uma vez,
posicionou-se contra as vacinas contra a Covid-19, afirmando que elas
tornariam as pessoas inférteis. Para ele, estudos científicos e as
opiniões de organizações médicas não passariam de “propaganda”.
O gênio da guitarra
passou toda a pandemia dando declarações contra o isolamento social e
questionando a própria existência de uma pandemia global. Mas em se
tratando de Clapton, não é uma novidade: em 2004 lamentou a presença de
imigrantes no Reino Unido e chamou o político anti-imigração Enoch
Powell de “escandalosamente corajoso”.
Como assim? Por que
Eric Clapton, aquele que deu um “shot” no xerife virou um velho ranzinza
e reaça de extrema-direita? Tá certo que a cabeça dele já não andava
boa nos anos 1970 com tantas drogas e álcool, até passar por uma
temporada de reabilitação em Antigua… Já em 1976, Clapton havia
protestado contra imigrantes num show em Birmigham. Mas ele diz não se
lembrar…
O curioso é que ver um
senhor tão talentoso de 76 anos como Eric Clapton dando declarações
públicas de extrema-direita faz esse humilde blogueiro lembrar de
congêneres brasileiros (guardadas as devidas proporções) como Lobão e
Roger do “Ultraje a Rigor”: a idade também não lhes fez nada bem. O
primeiro, um bolsonarista arrependido, e o segundo, ainda um bolsominion
empedernido.
Além de lembrar as
atuais manifestações de apoiadores de Bolsonaro, como também aquelas
multidões de camisetas da CBF nas ruas querendo o impeachment da
presidenta Dilma.
Nas últimas
“motociatas” convocadas por Bolsonaro, a maioria dos integrantes eram
homens brancos com mais de 50 anos com motos Harley Davidson, Kawasaki,
BMW com propulsores de alta cilindrada e jaquetas de couro emulando a
famosa gang Hell’s Angels. Esse é o “núcleo duro”, os bolsonaristas
renitentes, verdadeiros “tiozões do churrasco” (aquela figura folclórica
que fazia todos rirem com piadas misóginas e tiradas políticas
extemporâneas), cuja imagem de Bolsonaro é a desforra de todos os
tiozões que já foram zoados em todas as churrascadas da história
brasileira.
Mesmo entre os
manifestantes de verde-amarelo nas ruas mandando a presidenta tomar
naquele lugar, era marcante a dominância de casais de meia idade para
cima, esquisitões fascistas mais velhos com camisetas de camuflagem
militar e senhores calvos segurando uma bandeira rubro-negra com
tridente na Avenida Paulista, São Paulo, símbolo do nacionalismo
ucraniano de extrema-direita.

Nada a ver com as
manifestações que acenderam o rastilho de pólvora que deu em tudo isso:
nas Jornadas de Junho de 2013 e manifestações de ruas subsequentes era
massiva a participação de jovens estudantes secundaristas e
universitários, além de militantes de novos coletivos políticos.
Hiato geracional
Como interpretar essa
guinada etária na recente trajetória política brasileira em que… aquilo
deu nisso? Por que o núcleo duro, recalcitrante e birrento, da
extrema-direita é formado por apoiadores cinquentões, sessentões e
setentões?
Essas questões não surgem do nada. Assim como a até aqui vitoriosa estratégia de comunicação da chamada direita alternativa (alt-right)
não veio de um golpe do acaso. Há um fator sociológico e geracional
pouco discutido na ascensão desse novo extremismo de direita: o hiato geracional –
a crise da função dos idosos como elo geracional, ou seja, como
transmissora de sabedoria e conhecimento acumulados em uma existência.
É claro que jovens e
idosos são os dois lados de uma mesma moeda nessa questão: Bolsonaro
contou com 60% de eleitores entre 16 e 34 anos. Desses, 30% tinham menos
de 24 anos (clique aqui).
Jovens conduziram um ex-militar com 26 anos de atuação do Baixo Clero
do Congresso Nacional. Enquanto, hoje, de cinquentões para cima
demonstram o apoio irrestrito ao capitão da reserva nas ruas.
Entre esses dois grupos, o hiato geracional, do qual alimentou a estratégia alt-right de comunicação.
Em
culturas tradicionais, onde a velhice e a morte eram simbolicamente
incorporadas no dia a dia, os idosos sempre foram “elos geracionais”
como transmissores de um saber acumulado, conhecimento e sabedoria.
Colocados em posição de destaque na sociedade, o natural declínio físico
era compensado pela sabedoria, amor e trabalho unidos em uma
preocupação com a posteridade na tentativa de equipar os mais jovens
para levar adiante as tarefas dos mais velhos.
Narcisismo e cultura jovem
Desde
o pós-guerra e a consolidação da sociedade de consumo através da
Publicidade criou-se uma sensibilidade inédita na História: pela
primeira vez, o jovem tornou-se o modelo de beleza, felicidade e
consumo. Ou a sua versão politizada: a rebeldia e a revolução.
O
jovem, o novo e a novidade passaram a ser moralmente bom, enquanto o
“velho” (o idoso, o antigo) tornam-se ultrapassados, o oposto do
progresso, da evolução ou da revolução.
Toda a indústria da
moda e publicidade vai ao longo das décadas glamorizar o “novo” e a
“novidade” como moralmente bom, prazeroso e estimulante. O ápice dessa
verdadeira engenharia de opinião pública foi a construção da cultura pop
e jovem nas décadas de 1950-60. “Não confie em ninguém com mais de 30”,
dizia o desafiante lema jovem da contracultura: os “mais velhos” (pais e
autoridades) passaram a ser encarados como “quadrados”, ultrapassados e
intrinsecamente conservadores.
Se isso foi positivo
em um momento histórico como revolução e crítica, por outro lado seus
líderes não perceberam a ambiguidade dessa nova cultura: seria a base
imaginária (ao lado do crédito no consumo) de toda a descartabilidade e
hedonismo necessários para a aceleração da sociedade de consumo.
Aos idosos restou a
papel de negarem-se a si próprios, em primeiro lugar, através das
“lições de vida” que os idosos nos ensinariam em pautas motivacionais de
telejornais: um
senhor de 70 anos que pratica maratonas; uma senhora que aos 75 anos
retoma a sala de aula para concluir o ensino médio pensando na
universidade e nova carreira profissional; outro senhor de 65 anos diz
orgulhar-se por aventurar-se no “mundo das atividades físicas”: “faço
atividades físicas com força na academia para fortalecer a musculatura e garantir que tão cedo eu não vou ter que ‘pendurar as chuteiras’”, brinca.
E segundo, todo
um aparato terapêutico renovado a cada dia pela indústria farmacêutica
na qual a função de “elo geracional” é esquecida: os idosos nada têm a
dizer para as câmeras em termos de conhecimento ou sabedoria, a não ser
negar a si mesmos numa tentativa a todo custo de aparentar uma atitude
positiva e ficar parecidos com os mais jovens.
Christopher Lasch
chamava a atenção para esse esvaziamento do elo geracional dos idosos
por essas transformações trazidas pelas soluções médicas e sociais.
Lasch acredita que a
negação em relação à velhice se deve à cultura da juventude, mas
principalmente à perda do interesse dos homens pela vida terrena e o
medo da velhice pela ascensão de uma personalidade narcísica.
Por ter o narcisista tão poucos recursos
interiores, ele olha para os outros para validar seu senso de eu.
Precisa ser admirado por sua beleza, encanto, celebridade ou poder –
atributos que geralmente declinam com o tempo. Incapaz de alcançar
sublimações satisfatórias nas formas de amor e trabalho, ele percebe que
terá pouco para sustentá-lo quando a juventude passar (LASCH,
Christopher. “A Cultura do Narcisismo”, R. de Janeiro, Imago, 1983, p.
254-55).
O sofrimento central
da velhice (o fato de que vivemos vicariamente em nossos filhos ou em
gerações futuras) perde suas formas sublimatórias religiosas ou
filosóficas como o amor, a sabedoria e o conhecimento, formas que nos
faziam se reconciliar com a nossa própria substituição.
Ressentimento e sublimação
Destituído das formas
sublimatórias porque destituído da sabedoria e do conhecimento (afinal,
vive numa sociedade em deve “nem parecer que é velho”), a frustração e o
ressentimento o tornam presa fácil dos valores propagados como isca
pela extrema-direita: justiçamento, intolerância, vingança, culto ao
poder como sublimação substituta – idolatrar personalidades “fortes” e a
simbologia fálica como motos de alta potência, armas etc.
Sem terem sabedoria ou
o quê dizer aos mais jovens, instaura-se o hiato geracional que isola
os jovens num presente extenso – sem o passado, porque os idosos se
tornaram uma caricatura de “jovens idosos”; e sem futuro, porque não há
nenhuma sabedoria transmitida através da qual seja possível projetar um
caminho, uma meta ou mesmo uma utopia.
Nesse presente
extenso, os jovens serão igualmente presas fáceis dessa cultura que
exala juventude e novidade como verdades em si mesmas: a cultura meme, streamer e influencer. Terreno fértil para fake news e pós-verdades das estratégias alt-right.
Claro que o leitor
pode se contrapor a esse argumento sócio-geracional dizendo nem sempre
esse elo geracional do passado transmitiu sabedorias positivas para a
juventude. Pelo contrário, em geral as sociedades se estruturaram em
tradições persecutórias, obscurantistas e reacionárias, em torno do
discurso da “moralidade” e dos “bons costumes”.
Porém, a diferença é
que em última instância, esse elo geracional mantinha uma sociedade
organicamente coesa pelas formas de transmissão cultural por meio da
tradição.
Ao contrário, o hiato
geracional cria isolamento e vulnerabilidade que permitem a manipulação
pelas estratégias políticas midiáticas – o ressentimento que promete a
recuperação (ou a sublimação) da potência perdida para os idosos por
meio do fascínio pelos simbolismos fálicos na política; e para os
jovens, o presente extenso hedonista e niilista.