O Flow podcast é um dos mais badalados programas digitais de
debate da internet brasileira. De segunda a sexta-feira, exibido a
partir das 20h, quando os dois apresentadores se reúnem ao redor da mesa
para uma longa conversa com convidados. E, na semana passada, um trecho
destes debates explodiu. Se tornou um dos mais badalados assuntos das
redes sociais. Enquanto isso, na CPI da Covid, o general Eduardo
Pazuello se tornava o terceiro ex-ministro do governo Jair Bolsonaro a
sentar perante os senadores e mentir. Mentir, inclusive, a respeito de
momentos gravados em vídeo. Facilmente desmontáveis.
No Flow, o confronto foi entre Gabriela Prioli, comentarista
da CNN Brasil, e um dos apresentadores. Bruno ‘Monark’ Aiub. Monark
vinha falando sobre educação no Brasil quando Gabriela questionou suas
premissas. “Isso é muito chato”, ele reclamou. “Não poder conversar,
falar sobre o que penso porque não tenho números e estatísticas.” Já não
era mais uma conversa sobre um tema. Passava a ser uma conversa sobre
como funciona o debate público. “Você pode falar tudo”, argumentou
Prioli. “Mas pode estar falando uma mentira se não tiver um dado.” (Assista ao episódio.)
Quando confrontado na CPI após ter dito que o presidente jamais havia
dado ordens para não comprar vacinas do Butantã, o ex-ministro da Saúde
também se livrou da aparente incoerência. Os senadores o lembravam de
que havia um vídeo, de ampla circulação, em que ele comentava com
Bolsonaro ao lado — “um manda, o outro obedece”. A ordem do presidente
era justamente de não comprar vacinas. “Aquilo foi apenas posição de
agente político na internet”, argumentou o general. O que o presidente
diz na internet não precisa ser verdade. Para Pazuello, era uma
constatação natural. Para os senadores não-governistas, soou como
ultraje.
A mentira, assim como um debate não baseado em fatos, fazem parte do
arsenal de ferramentas dos novos líderes populistas e autoritários do
mundo. Pode parecer paradoxal: mas é a fonte de sua credibilidade
perante seus eleitores.
Os dois momentos talvez não pareçam relacionados mas revelam
justamente este traço de nossa cultura política transformada pela
comunicação digital. Em ambos os casos, a indignação de Monark ao ser
cobrado e a maneira como o público bolsonarista recebeu os depoimentos
dos ex-ministros na CPI, o que há em comum é uma busca por
autenticidade. E, para compreender este processo, é útil pensar em
populismo de uma forma nova.
Tradicionalmente, populismo é visto como uma ferramenta política. Um estilo de fazer política.
O desafio de todo líder é juntar eleitores e conquistar eleições. O
candidato populista faz isso construindo uma relação de identidade entre
ele e o público na qual, juntos, formam um mesmo povo que têm um
problema. Seus objetivos não têm sido alcançados por conta da elite. O
líder é quem será capaz de furar este bloqueio. O populismo é, por esse
ângulo, uma performance do líder político. Um jeito de agir no palanque,
um jeito de construir o discurso para seduzir eleitores.
A cientista política inglesa Catherine Fieschi, professora da London
School of Economics e diretora da consultoria Counterpoint, é uma dentre
uma nova geração na ciência política que propõe enxergar o populismo
não como método mas como ideologia. O método é uma tática para
conquistar um objetivo — a eleição. Candidatos podem lançar mão de um
discurso populista quando lhes interessa ou não. Faz parte do arsenal
que têm à disposição. Ideologia é bem mais do que isso. Ideologia é toda
uma visão de mundo. É a maneira como se compreende a realidade.
A vantagem desta lente, de enxergar populismo como ideologia, é que
fica mais fácil entender como mentiras escancaradas se tornam, para os
eleitores destes novos líderes, garantia de maior credibilidade.
Na definição de Fieschi, a ideologia do populismo,
um pacote fechado e autossuficiente de ideias, começa na crença de que
há um mesmo povo, que é homogêneo e soberano. A democracia deveria
garantir — a este povo que é homogêneo — controle sobre a sociedade.
Como esta visão rejeita a ideia de que há diversidade social grande,
qualquer governo que represente outros anseios é visto, automaticamente,
como não democrático. Não representa, afinal, o verdadeiro povo. A
ideologia do populismo, neste momento, acusa a traição da democracia e
busca quem represente autenticidade.
O conceito liberal de democracia não tem nada disso. Pelo contrário:
parte justamente da premissa de que há correntes de opinião distintas na
sociedade, de que há anseios diversos. Democracia é a forma que permite
que estas correntes possam negociar suas diferenças. Quando um líder
populista fala de democracia, porém, ele está falando de algo
completamente distinto. Ele está falando como representante do único
‘povo verdadeiro’. A crença de que o ‘povo’ é homogêneo, que quem é
diferente está à parte deste ‘povo’, é fundamental nesta ideologia. E é
aí que esta ideia de autenticidade é o conceito-chave.
O eleitor que segue a ideologia do populismo está em busca de autenticidade
em seus líderes. Esta busca é norteada por uma emoção forte — a do
ressentimento. A sensação de que elites humilham quem está embaixo. Não
se trata de elite apenas no sentido econômico — a elite compõe, aqui,
quem tem autoridade em uma sociedade. Quem tem dinheiro, claro, mas
também quem tem poder, e quem tem conhecimento. Este ressentimento nasce
da percepção de que seus anseios pessoais, os do povo homogêneo, não
podem nunca ser atendidos porque estas elites — quem tem dinheiro, poder
ou conhecimento — o impedem. Mais do que isso. As elites tratam de
forma depreciativa estes anseios. É como se ter acesso ao poder ou mesmo
participar do debate público fosse impossível ao verdadeiro povo. Que é
homogêneo.
Autenticidade, portanto, é um jeito de pensar e um jeito de agir. O líder autêntico
pensa como o povo. Se manifesta como o povo. E desafia as elites no que
vê como sua arrogância. Não joga o jogo conforme as regras da elite. É
um herói do povo.
E está lá na frase de Monark para Gabriela Prioli. “Quando falo o que
penso”, ele se queixa, “você vem com quais são os dados. Se não tenho
os dados, pronto, o que penso está inválido, você nem contempla minha
opinião.” Ou seja, o senso comum é desvalorizado. Aquilo que ‘todo mundo
pensa’ é desprezado pelas elites. É desprezado porque o senso comum não
consegue se impor num debate em que argumentar com fatos é exigido.
Aí, o problema da democracia é que, se num debate é preciso sustentar
com argumentos uma visão, as regras do jogo se mostram construídas para
impedir que este senso comum baste. E faz isso, segue a percepção,
humilhando.
O que o líder populista faz é se recusar a seguir as regras do jogo
habitual. Ele é grosseiro. Ignora propositalmente a correção política. É
abertamente preconceituoso: racista, xenófobo, homofóbico, chauvinista.
E, sim, mente. Mas não mente como políticos costumam mentir. A mentira
política comum é aquela que tenta esconder algo. Ou justificar uma
decisão errada. São mentiras que têm consequências. As mentiras do
populista têm outra natureza. Ele não se baseia em fatos para sustentar
suas convicções. Se baseia em impressões, no instinto, em histórias de
ouvir falar. Ele não tem justificativas que não o sentimento de que está
certo. De que sentir esta certo basta.
Quando mente, quando ignora fatos, está em essência desafiando a
‘lógica do sistema’. A lógica que impede ao seu eleitor que participe do
debate. Uma lógica, que o eleitor sente, o oprime.
No centro do novo movimento populista e autoritário está a palavra, o
diálogo, a linguagem. Não é à toa. O que o multiculturalismo produziu,
nas últimas décadas, foi uma nova linguagem que reconhece uma sociedade
heterogênea. Faz parte deste conjunto um novo vocabulário — como, por
exemplo, nomear LGBTs, pessoas de outras etnias. Uma busca por palavras
que não ofendam. Faz parte, também, um jeito de conversar. A garantia de
tempo para quem não é ouvido, respeito à legitimidade da opinião de
quem traz a vivência de certas experiências.
Na sua forma mais sutil, o multiculturalismo reflete uma particular
atenção à cortesia e o respeito aos espaços de fala de quem tem certas
experiências de vida. Na forma mais radical, abole a designação de
gênero, todes, todxs. Mas, principalmente, o multiculturalismo é
esta nova linguagem que existe para reconhecer diversidade. Esta é a
essência do multiculturalismo, do cosmopolitismo liberal progressista
que se implantou nas últimas décadas. É natural, portanto, que a
ideologia que reage a esta mudança comece por uma repulsa à linguagem.
A linguagem do neopopulismo será caricaturalmente grosseira e
rejeitará qualquer discussão que, por princípio, reconheça a sociedade
como heterogênea. Seu princípio é justamente não reconhecer a diferença.
Só o ‘povo homogêneo’ existe.
“Há um paradoxo a respeito da palavra”, escreve Fieschi em Populocracy: The Tyranny of Authenticity and the Rise of Populism (Amazon Brasil), livro que lançou em 2019. Populocracia: A Tirania da Autenticidade e a Ascensão do Populismo,
não lançado no Brasil. “Por um lado, muitos dos com quem conversei
valorizam a compreensão instantânea um do outro, de pessoas ‘como eles’.
Valorizam que se diga as coisas na cara, com clareza ainda que
grosseira. Valorizam uma sociedade em que se pode dizer o que se pensa
com a garantia de que ninguém será mal compreendido.” E este é o
problema percebido no multiculturalismo. Em sociedades europeias nas
quais a transformação passa pela chegada de imigrantes, gente com
sotaques e tons diversos de cor na pele, o multiculturalismo interdita a
conversa sobre o desconforto que muitos sentem com estas pessoas
diferentes. Noutras sociedades, como a brasileira, o novo vocabulário da
política dificulta a entrada no debate para quem rejeita políticas
públicas voltadas para os tradicionalmente excluídos para quem é
tradicionalmente excluído — mulheres, negros, indígenas etc.
O foco está, sempre, em rejeitar a ideia de que o povo é composto por
grupos com muitas diferenças e reforçar a ideia de um povo verdadeiro e
homogêneo.
Daí que ignorar fatos e falar o que se sente é ser autêntico. Ir a um interrogatório de CPI e ignorar por completo as normas habituais — recusar as regras do jogo — é igualmente ser autêntico.
Amplia a credibilidade, não a diminui. Porque rejeita a linguagem da
democracia liberal, multicultural, para abraçar um outro conceito de
democracia. Um significado em todo diferente para a palavra.
“A mentira do populista”, escreveu a cientista no Guardian, “tem por objetivo ser percebida.
É o contrário da mentira que quer esconder algo. No jogo que o
populista joga, mentir é glorificado. É um instrumento de subversão, seu
objetivo é mostrar que o líder cruzará qualquer limite para ‘servir ao
povo’. Estas mentiras são símbolos de que estes políticos não se
restringem às normas correntes da elite liberal democrata. Enquanto
liberais democratas se preocupam em sinalizar virtude, populistas
sinalizam repulsa.”
Repulsa à diversidade. A um mundo transformado.
É uma política de apelo aos instintos, não ao cérebro. Fonte da Imagem: https://br.pinterest.com/pin/662169951435691700/
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