quinta-feira, 18 de junho de 2009

As mensagens tóxicas de Wall Street


Um dos legados desta crise será uma batalha de alcance global em torno de idéias. Ou melhor, em torno de que tipo de sistema econômico será capaz de trazer o máximo de benefício para a maior quantidade de pessoas. É possível que a crise atual não tenha ganhadores. Mas sem dúvida produziu perdedores e, entre esses, os defensores do tipo de capitalismo praticado nos EUA ocupam lugar de destaque. A análise é de Joseph Stiglitz.

Joseph Stiglitz - SinPermiso - Carta Maior

Toda crise tem um fim, e ainda que hoje as coisas pareçam obscuras, esta crise econômica também passará. O certo em todo caso é que nenhuma crise, e muito menos uma tão grave como a atual vai-se sem deixar um legado. Um dos legados desta crise será uma batalha de alcance global em torno de idéias. Ou melhor, em torno de que tipo de sistema econômico será capaz de trazer o máximo de benefício para a maior quantidade de pessoas. Em lugar algum essa batalha é mais inflamada do que no chamado Terceiro Mundo. Algo como 80% da população mundial vive na Ásia, na América Latina e na África. Dentre esses, uns 1,4 bilhões subsistem com menos de 1,25 dólares por dia. Nos Estados Unidos, chamar alguém de socialista pode não ser mais que uma desqualificação exagerada. Em boa parte do mundo, contudo, a batalha entre capitalismo e socialismo – ou ao menos entre o que muitos estadunidenses consideram socialismo – segue na ordem do dia. É possível que a crise atual não tenha ganhadores. Mas sem dúvida produziu perdedores e, entre esses, os defensores do tipo de capitalismo praticado nos EUA ocupam lugar de destaque. No futuro, de fato, viveremos as consequências dessa constatação.

A queda do Muro de Berlim em 1989 marcou o fim do comunismo como uma idéia viável. Certamente, o comunismo se arrastava com problemas manifestos há décadas. Porém, depois de 1989 tornou-se muito difícil sair em sua defesa de maneira convincente. Durante um certo período parecia que a derrota do comunismo supunha a vitória segura do capitalismo, particularmente do capitalismo de tipo estadunidense. Francis Fukuyama chegou a proclamar “o fim da história”, definiu o capitalismo de mercado democrático como a última etapa de desenvolvimento social e declarou que a humanidade toda avançaria nessa direção. A rigor, os historiadores registrarão os 20 anos seguintes a 1989 como o breve período do triunfalismo estadunidense. O colapso dos grandes bancos e das entidades financeiras, o descontrole econômico subsequente e terminou com as tentativas caóticas de resgate. E também com o debate acerca do “fundamentalismo de mercado”, com a idéia de que os mercados, sem qualquer controle e restrição, podem por si sós assegurar prosperidade econômica e crescimento. Hoje, só o auto-engano poderia levar alguém a afirmar que os mercados podem auto-regular-se, ou que basta confiar no auto-interesse dos participantes no mercado para garantir que as coisas funcionem corretamente e de forma honesta.

O debate econômico é especialmente intenso no mundo em vias de desenvolvimento. Mesmo que no Ocidente tenhamos a tendência a esquecê-lo, há 190 anos um terço do produto bruto mundial se gerava na China. Depois, e de uma maneira um tanto repentina, a exploração colonial e os injustos acordos comerciais, combinados com uma revolução tecnológica nos Estados Unidos e na Europa condenaram os países em desenvolvimento ao atraso. Como resultado disso, até 1950 a economia chinesa representava menos de 5% do produto bruto mundial. Em meados do século XIX, na realidade, o Reino Unido e a França tiveram de empreender uma guerra para abrir a China ao comércio global. Esta foi a “segunda guerra do ópio”, assim chamada porque os países ocidentais tinham muito pouco que vender a China, com exceção dessas drogas, que rapidamente invadiram seus mercados e geraram uma ampla dependência entre a população. Com esta guerra o ocidente ensaiava uma nova via de correção da balança de pagamentos.

O colonialismo deixou uma herança complexa no mundo em desenvolvimento. Entra a maioria da população, contudo, a visão dominante era que tinham sido cruelmente explorados. Para muitos líderes novos a teoria marxista oferecia uma interpretação que sugeria essa experiência, visto que sustentava que a exploração era na realidade o moto do sistema capitalista. Por isso, a independência política que as colônias conquistaram depois da Segunda Guerra Mundial não significou o fim do colonialismo econômico. Em algumas regiões, como a África, a exploração – a extração de recursos naturais e a devastação ambiental em troca de algumas migalhas – era evidente. Em outros lugares foi mais sutil.

Em diferentes regiões do mundo, instituições internacionais como o Fundo Monetário Internacional ou o Banco Mundial passaram a ser vistas como instrumentos de controle pós-colonial. Essas instituições fomentaram o fundamentalismo de mercado (ou “neoliberalismo”, como foi chamado amiúde), uma categoria idealizada pelos estadunidenses como “mercados livres e irrestritos”. Também pressionaram pela desregulação do setor financeiro, das privatizações e da liberalização do comércio.

O Banco Mundial e o FMI asseguravam que tudo o que faziam era para o bem dos países em desenvolvimento. Sua atuação era respaldada por equipes de economistas partidários do livre mercado, muitos dos quais provenientes da catedral da economia de livre mercado, a Universidade de Chicago. Ao final, os programas dos “Chicago boys” não trouxeram os resultados prometidos. As rendas estancaram. Onde houve crescimento a riqueza foi parar nos estratos mais altos. A crise econômica no interior dos países se tornaram cada vez mais frequentes. Só nos últimos 30 anos, de fato, produziram-se mais de cem de gravidade considerável...

Nesse contexto, não surpreende que as populações dos países em desenvolvimento creiam cada vez menos nas motivações altruístas do Ocidente. Suspeitavam que a retórica da economia de livre mercado – o que brevemente se conheceu como “o Consenso de Washington” - era só a proteção dos interesses comerciais de sempre. Essas suspeitas viram-se reforçadas pela própria hipocrisia dos países ocidentais. Europa e Estados Unidos não abriram seus próprios mercados à agricultura produzida no Terceiro Mundo, que com frequência era tudo o que esses países poderiam oferecer. Ao contrário, forçaram-os a eliminar subsídios necessários à criação de novas indústrias, ao passo que concediam subsídios a seus próprios agricultores...

A ideologia do livre mercado resultou como uma desculpa para se cometer novas formas de exploração. “Privatizar” queria dizer que os estrangeiros podiam comprar minas e campos de petróleo a preço baixo nos países em desenvolvimento. Supunha que podiam extrair lucros consideráveis de atividades monopólicas e semi-monopólicas, como as telecomunicações. “Liberalizar”, por sua vez, queria dizer que podiam obter créditos com facilidade. E se as coisas iam mal, o FMI forçava a socialização das perdas com o que os esforços de pagar aos bancos recaía sobre a população em seu conjunto. Também confortava que as empresas estrangeiras podiam arrasar com as indústrias emergentes, bloqueando o desenvolvimento do talento empresarial local. O capital fluía livremente, mas o trabalho, não, salvo no caso dos indivíduos melhor dotados, que podiam encontrar um emprego no mercado global.

Obviamente que esses não são mais que rabiscos de um quadro mais complexo. Na Ásia, por exemplo, sempre houve resistência ao Consenso de Washington, e inclusive restrições à livre circulação de capital. Os gigantes asiáticos – China e Índia – conduziram a economia a sua maneira e obtiveram índices inéditos de crescimento. Porém, em geral, e sobretudo naqueles países em que o Banco Mundial e o FMI controlaram as rendas, as coisas não foram tão bem.

Para os críticos do capitalismo estadunidense no Terceiro Mundo o modo como os EUA tem respondido à crise constitui a gota d'água. Durante a crise do sudeste asiático, há apenas uma década, os Estados Unidos e o FMI exigiram que os países afetados reduzissem o déficit através de cortes os gastos sociais. Pouco importou que em países como a Tailândia essas medidas tenham contribuído para o ressurgimento da epidemia de AIDS, ou que em outros, como a Indonésia, houvesse corte de subsídios para a alimentação dos famintos. Estados Unidos e FMI forçaram esses países a aumentarem os tipos de lucros, em alguns casos a mais de 50%. Exigiram que a Indonésia fosse dura com os bancos e, dos governos, que não acudissem no resgate daqueles. Que precedente perigoso! - disseram -; que tremenda intervenção no delicado mecanismo de relógio do livre mercado!

O contraste entre a reação exibida diante da crise asiática e da estadunidense é notório e não passou desapercebido. Para tirar os EUA do fundo do poço somos testemunhos de incrementos massivos no gasto e no déficit, assim como das taxas de juros, que foram praticamente reduzidas a zero. As ajudas aos bancos fluem à direita e à esquerda. Alguns dos funcionários de Washington que tiveram de lidar com a crise asiática agora estão encarregados de dar respostas à crise estadunidense. Por que os Estados Unidos – perguntam-se as pessoas do Terceiro Mundo – prescrevem uma medicina diferente quando se trata de si mesmos?

Nos países em desenvolvimento, muitos são os que padecem com os efeitos do sermão recebido nos últimos anos: adote instituições como as dos Estados Unidos; siga as nossas políticas; comprometam-se com a desregulação; se querem aprender “boas” práticas bancárias, abram seus mercados aos bancos estadunidenses; e vendam (não casualmente) vossas empresas e bancos aos Estados Unidos, especialmente a preço de banana nas épocas de crise. Sim, reconhecia Washington, pode ser doloroso, mas ao final estarão melhor. Os Estados Unidos enviaram seus Secretários do Tesouro (de ambos os partidos) ao redor do mundo a anunciarem a boa nova. Aos olhos de muitos, a porta giratória que permite aos líderes financeiros passarem comodamente de Wall Street a Washington e de Washington a Wall Street os outorgava então mais credibilidade: pareciam combinar perfeitamente o poder do dinheiro e o da política. Os líderes financeiros norte-americanos tinham razão em pensar que o melhor para os Estados Unidos ou o mundo, era bom para os mercados financeiros. Porém, o contrário não era certo: nem tudo o que era bom para Wall Street era bom para os Estados Unidos e para o mundo.

Não é um simples gesto de Schadenfreude, de alegria com a desgraça alheia, o que motiva o juízo severo que os países em desenvolvimento fazem sobre o fracasso econômico dos Estados Unidos. Também está em jogo a necessidade de discernir qual é o sistema econômico que pode funcionar melhor no futuro. Indubitavelmente, esses países têm todo interesse do mundo em ver uma rápida recuperação dos Estados Unidos.

Sabem que, por si sós, não poderiam afrontar o que os Estados Unidos têm feito para tentar reviver sua economia. Sabem que nem sequer o elevado nível de gasto realizado está funcionando rápido o suficiente. Sabem que, em consequência do colapso econômico estadunidense, 200 milhões de pessoas a mais caíram na pobreza nos curso dos últimos anos. Mas estão convencidos, cada vez mais, de que qualquer ideal econômico propugnado pelos Estados Unidos é um ideal de que seguramente haveriam de fugir.

Por que a desilusão do mundo com o modelo de capitalismo estadunidense deveria nos preocupar? A ideologia que promovemos todos esses anos deixou de funcionar, mas talvez seja bom que não possa ser reparada. Seria por acaso possível – inclusive também até agora – sobreviver se ninguém aderisse ao modo de vida estadunidense?

Seguramente nossa influência diminuirá, já que é pouco provável que se nos considerem um modelo a seguir. Em todo caso, é o que já estava ocorrendo de fato. Os Estados Unidos iriam desempenhar sozinhos um papel crucial no capital global, já que todos pensavam que tínhamos um talento especial para lidar com o risco e para lidar com recursos financeiros.

Hoje ninguém pensa algo assim e a Ásia – de onde procedem boa parte dos ganhos do mundo – já está desenvolvendo seus próprios centros financeiros. Temos deixado de ser a fonte central de capital. Os três bancos mais importantes do mundo são agora chineses. O principal banco norte-americano caiu para o quinto lugar.

O dólar foi durante muito tempo moeda de reserva. Os países tinham o dólar como referência para determinar a confiança em suas próprias moedas e governos. Contudo, progressivamente, vem-se impondo nos bancos centrais de diferentes partes do mundo a idéia de que o dólar pode não ser um referente de valor. Seu valor, de fato, tem oscilado e caído. O enorme incremento da dívida estadunidense na atual crise, combinado com os empréstimos indiscriminados do Federal Reserve dispararam as especulações em torno do futuro do dólar. Os chineses sugeriram de maneira aberta a possibilidade de inventar algum novo tipo de moeda para substituí-lo.

Enquanto isso, o custo de lidar com a crise está transbordando nossas necessidades. Nunca fomos generosos em nossas ajudas aos pobres. Mas as coisas estão piorando. Nos últimos anos, os investimentos chineses na África têm sido superiores aos do Banco Mundial e o Banco Africano de Desenvolvimento juntos; muito distantes das realizadas pelos Estados Unidos. Para enfrentar a crise, os países africanos pedem socorro a Pequim, em busca de ajuda, e não a Washington.

Minha preocupação aqui, em todo caso, tem a ver com o âmbito das idéias. Preocupa-me que, à medida que sejam vistas com maior nitidez as falhas do sistema econômico e social estadunidense, as pessoas dos países em desenvolvimento venham a extrair conclusões errôneas. Apenas uns poucos países – e talvez os próprios Estados Unidos – aprenderão corretamente a lição. Dar-se-ão conta de que para seguir adiante é necessário um regime em que a distribuição dos papéis entre governo e o mercado seja equilibrada, e no qual haja um estado forte, capaz de administrar formas efetivas de regulação. Dar-se-ão conta de que o poder dos interesses privados deve ser limitado.

Outros países, porém, tirarão conclusões mais confusas e profundamente trágicas. Depois do fracasso de seus sistemas do pós-guerra, a maioria dos países ex-comunistas retornaram ao capitalismo de mercado e exaltaram Milton Friedman no lugar de Karl Marx como novo Deus. Com a nova religião, contudo, as coisas não vão indo bem. Muitos países podem pensar, em consequência, que não só o capitalismo ilimitado, de tipo estadounidense, fracassou, mas que o próprio conceito de economia de mercado é que faliu e se tornou inútil para qualquer circunstância. O velho comunismo não regressará, mas sim diversas formas excessivas de intervir no mercado. E fracassarão. Os pobres sofrem com o fundamentalismo de mercado, que gera um efeito derrame, mas de baixo para cima, e não de cima para baixo. Mas os pobres seguirão sofrendo com esses regimes, uma vez que não geram crescimento. Sem crescimento não pode haver redução sustentável da pobreza. Jamais houve economia exitosa que não tenha repousado fortemente nos mercados. A pobreza estimula a desafeição. Os inevitáveis fracassos conduzirão a pobreza ainda maior e serão difíceis de gestionar, sobretudo por parte de governos que chegaram ao poder com o propósito de combater o capitalismo de tipo norte-americano. As consequências para a estabilidade global e para a própria segurança dos Estados Unidos são evidentes.

Até agora, existia uma percepção de valores compartilhados entre os Estados Unidos e as elites de todo mundo lá educadas. A crise econômica erodiu a credibilidade dessas elites. Temos alimentado os críticos com a forma depravada de capitalismo praticada nos Estados Unidos, poderosa munição para contraatacar com o sermao de uma filosofia antimercado mais ampla. E seguimos lhes proporcionando mais e mais munição. Enquanto na recente cúpula do G20 nos comprometíamos a não apoiar o protecionismo, estabelecíamos uma previsão de “compra estadunidense” no nosso próprio pacote de estímulos. Depois, para abrandar a oposição de nossos aliados europeus, modificávamos a norma, sob todos os aspectos discriminatória em relação aos países pobres. A globalização nos tornou mais interdependentes; o que ocorre numa parte do mundo afeta a outra, um fato provado pelo contágio dos outros de nossas dificuldades econômicas.

Para resolver problemas globais, é fundamental que exista um sentido de cooperação e confiança, assim como um certo sentido de valores compartilhados. Essa confiança nunca foi sólida, e não fez senão debilitar-se nos últimos tempos.

A fé na democracia é outra das vítimas. No mundo em desenvolvimento, as pessoas olham para Washington e vêem o sistema de governo que permitiu a Wall Street prescrever uma série de regras que puseram a economia global em risco e que, quando é o caso de assumir as consequências, volta a recorrer a Wall Street para gestionar sua recuperação. Vêem permanentes redistribuições de riqueza para o topo da pirâmide, claramente às custas dos cidadãos comuns. Vêem, em suma, um problema básico de falta de controle no sistema democrático estadunidense. E depois que se tenha visto tudo isso é preciso apenas um pequeno passo para concluir que há algo que funciona inevitavelmente mal com a própria democracia.

A economia estadunidense e, até certo ponto, nosso prestígio no exterior vão eventualmente se recuperar. Durante muito tempo os Estados Unidos foram o país mais admirado do mundo, e ainda é o mais rico. Goste-se ou não, nossas ações estão sujeitas a permanentes exames. Nossos êxitos são emulados. Porém, nossos fracassos são criticados com escárnio. Tudo isso me devolve a Francis Fukuyama. Fukuyama estava equivocado ao pensar que as forças da democracia liberal e da economia de mercado triunfariam de modo inevitável e que não havia volta atrás. Não estava equivocado, contudo, em crer que a democracia e as forças de mercado são esenciais para ter um mundo justo e próspero. A crise econômica, em boa medida desencadeada pelo comportamento dos Estados Unidos, causou mais danos a esses valores fundamentais que qualquer regime totalitário o fez em tempos recentes. Talvez seja verdade que o mundo se encaminha para o fim da história, mas agora se trata é de navegar contra o vento e de sermos capazes de definir o custo das coisas.

Joseph Stiglitz é professor de teoria econômica na Universidade Columbia, foi Presidente do Council of Economic Advisers entre 1995 e 1997, ganhou o Nobel de Economia em 2001. Atualmente preside a comissão de especialistas nomeada pelo presidente da Assembléia Geral da ONU para o estudo de reformas no sistema monetário e financeiro internacional.

Tradução: Katarina Peixoto

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