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Entrevista com Luiz Gonzaga De Mello Belluzzo
Marilza de Melo Foucher *
“Creio que uma socialização bastante completa do investimento será o
único meio de se aproximar do pleno emprego, ainda que isso não exclua
qualquer forma de cooperação entre a autoridade pública e a iniciativa
privada.”
– Diante de um Estado esfacelado como está hoje, de que forma um plano keynesiano seria capaz de reorganizar o capitalismo?
– Keynes trata o Estado como uma instância ética e política capaz de
fazer a mediação dos interesses conflitantes da sociedade civil. É
preciso que o Estado e seus corpos intermediários tenham um papel
indutor e regulador. Tudo isto tem que ser contextualizado no período em
que ele viveu. Keynes tinha uma confiança enorme na capacidade do
Estado. O Estado keynesiano é capaz de ver além dos interesses privados.
Liberal e hegeliano, o Estado de Keynes é o espaço da universalização
dos particularismos da sociedade civil.
Keynes tinha horror do individualismo, mas dizia que há sempre um
espaço para certo individualismo, este sentimento que move o indivíduo
na economia mercantil-capitalista. Ele achava “o amor ao dinheiro” um
horror, mesmo sendo um fator de progresso e de mudança social, todavia,
the love of Money ‘pode se transformar em um tormento para o homem moderno’. No livro
Perspectivas econômicas para nossos netos Keynes
escrevia que os homens precisam voltar para os valores fundamentais da
religião, da boa vida, da convivência. Este é um texto muito bonito.
Havia uma visão ética ali por trás. Havia também uma concepção liberal
do Estado na sua origem, ele não foi capaz de ver a transformação que o
estado ia sofrer no capitalismo monopolista e na na sociedade de massas,
em que essa independência do Estado em relação à sociedade civil vai
sendo minada. Falo aqui da sociedade civil como sociedade dos
interesses.
A mesma coisa diz respeito à taxação progressiva. Keynes não acredita
que o capitalismo entregue à sua razão interna possa reduzir as
desigualdades de renda e riqueza. Hoje se observa a dilaceração do
Estado Social . Os sistemas tributários abandonaram a progressividade e
começaram a cobrar impostos sobre as mercadorias e serviços em cima dos
assalariados. A tentativa de manter o peso do imposto de renda, dos
impostos do patrimônio, tudo isto foi destruído pelo movimento do
capitalismo.
Quanto ao terceiro pilar da proposta keynesiana trata-se da eutanásia do “
rentier”.
Keynes explicou no Tratado da Moeda que o sistema bancário moderno é
muito integrado e muito desenvolvido não há razão que o capital seja
considerado escasso. Ricardo discutiu a questão da renda da terra. Na
medida em que a terra vai sendo ocupada, os proprietários podem exigir
uma renda derivada da escassez.
O moderno sistema bancário cria moeda (depósitos) ao conceder
empréstimos. Cria liquidez à frente. Na economia monetária podem surgir
problemas de liquidez, ou seja, de adiantamento de dinheiro para a
realização do gasto. O investimento pode não ocorrer se há um problema
de confiança dos bancos em relação ao pagamento dos empréstimos
adiantados pelos bancos ou se os empresários não tomam crédito porque
antecipam resultados ruins de seu empreendimento futuro.
A existência dos bancos modernos superou o obstáculo da poupança prévia
próprio de uma economia natural. Numa economia natural, por exemplo, que
trabalha só com o trigo, você precisa reservar uma parte de sua
colheita pra plantar no ano seguinte. Isto é poupança, um conceito da
economia real não monetária, se tal coisa existisse.
Numa economia monetária, os empresários só não vão investir se
observarem que o rendimento esperado com a posse de um novo bem de
capital (criação de uma fábrica) é inferior às taxas de juros. Keynes
propunha a administração pública do sistema bancário a fim de facilitar a
oferta de capital monetário para empreendimentos rentáveis. É a mesma
coisa que Marx escreve no volume 3 de
O Capital. Diga-se eles tem uma visão muito parecida sobre a ontologia do econômico.
Em que sentido? Keynes diz que pode definir a economia empresarial
capitalista como uma existência de um lado de empresas que tenham o
controle dos meios de produção e do dinheiro e de outro os trabalhadores
que são obrigados a vender sua força de trabalho. No volume 29 de
Obras Escolhidas estão os escritos que antecedem a
Teoria Geral. Ele abordou o capitalismo desta maneira, estas informações se encontram nos manuscritos que foram descobertos mais tarde.
Os capitalistas não gastam com objetivo de maximizar a produção, ele
gasta com o objetivo de maximizar seus ganhos, seu lucro monetário. O
tratamento que os dois dão à estrutura do capital vai ser fundamental
para a compreensão da evolução do capitalismo. Voltando pra questão da
crise atual, Marx tem páginas muito importantes que Keynes não tem sobre
o progresso técnico a desvalorização do capital e desvalorização do
trabalho.
Então Marx vai muito mais além do que Keynes. Ainda que Keynes tenha
uma visão que para segurar a este ímpeto do capitalismo de desvalorizar o
capital, é preciso segurar a concorrência e não deixar que ela seja
devastadora. Isto é uma visão muito conservadora, por isso ele acha
possível manter o capitalismo funcionando mais ou menos com aquela
condição que eu já descrevi sobre a socialização de investimentos,
sistema fiscal progressivo, eutanásia
rentier. Ele defendia no quarto ponto uma coordenação das economias nacionais e esboça aí uma ordem econômica mundial.
Propõe a construção das instituições internacionais públicas que
permita o ajustamento sem traumas cambiais e monetários dos déficits (e
superávits) dos balanços de pagamentos. Isto significaria facilitar o
crédito aos países deficitários e penalizar os países superavitários. O
propósito de Keynes era evitar os ajustamentos deflacionários e manter
as economias na trajetória do pleno emprego. Mais tarde, em Bretton
Woods, Keynes propôs a
Clearing Union, uma espécie de Banco Central dos bancos centrais. Este emitiria uma moeda bancária, o “
bancor”,
que seria destinada exclusivamente a liquidar posições entre os bancos
centrais. O controle de capitais deveria ser “uma característica
permanente da nova ordem mundial”.
– Professor, diante da realidade de hoje, quanto ao papel do FMI,
perdoe insistir, mas como explicar que o plano Keynes continue atual no
contexto da globalização econômica, face a tudo o que assistimos nesses
últimos tempos?
– O plano Keynes nunca foi tão verdadeiro e atual, mas sua implantação nunca foi tão difícil.
– Por isso eu tenho curiosidade de saber o como, o por quê?
– Isto teria uma implicação muito séria que tem a ver com a questão
do poder político das nações. Ter o controle da moeda reserva confere
muitas vantagens, como bem disse (o ex-presidente Luiz Inácio) Lula (da
Silva) no seminário. De Gaulle também denunciava este privilégio
exorbitante. Ele tinha implicância com esse poder norte-americano, que
ele conhecia muito bem, isto facilitava o movimento das empresas
norte-americanas, facilitava muito bem os investimentos externos,
facilitava o fato dos Estados Unidos não terem problema com sua dívida
pública, ao contrário do que pensam os republicanos norte-americanos.
Eles podem refinanciá-las com grande facilidade, usando até o movimento
de capitais do resto do mundo para os Estados Unidos. Isto foi
importantíssimo na montagem da crise e é importante agora com a taxa de
juros sobre um ativo de 10 anos. Um título do Tesouro para 10 anos estar
hoje em 1.32 é baixíssimo. É um convite ao endividamento para poder
gastar. Mas os republicanos norte-americanos estão obcecados pela
divida.
– Mas voltando ao plano Keynes…
– Ele nunca foi tão clarividente na sua análise e proposições, ele
queria evitar exatamente que ocorresse esses desequilíbrios crônicos
entre balanço de pagamentos dos países mas, ao mesmo tempo, nunca foi
tão difícil, pois as condições políticas para proceder a uma reforma
dessas não existem, existiram naquele momento, por várias razões na
verdade, uma das quais era o sistema monetário internacional, que estava
destruído e precisava ser reconstruído desde o inicio, após a Segunda
Guerra Mundial. Os Estados Unidos saíram da guerra em condições
melhores, com suas indústrias, empresas e seu aparato produtivo
intocados. Eles vinham da experiência do “
New Deal”, tinham
essa visão reformista, foram eles que propuseram as reuniões que criaram
a ONU, como as de Bretton Woods que estabeleceram as organizações
multilaterais. Logicamente que, quando chega o momento de definir o que o
Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional fariam, eles asseguraram
na verdade a superioridade deles, dos Estados Unidos, que ficaram no
coração do sistema. Eles foram generosos, pois ajudaram na reconstrução
da Europa, com os mecanismos de ajuda que criaram. Este gesto de
generosidade não é gratuito face à guerra fria travada com o bloco
soviético. Aqui na Europa houve uma confrontação política entre as duas
concepções. A construção do Estado de bem-estar na Europa tem muito a
ver com a presença da União Soviética, com o medo da expansão União
Soviética.
Eu acho que hoje em dia todas as propostas de reformas passam ao
largo disso que o Keynes disse e nunca foi tão atual, pois não há outra
maneira de resolver esta questão dos desequilíbrios globais.
Só eu e o Lula abordamos esta questão, os outros não trataram da questão
da coordenação internacional. Por que o engano é supor que você vai
partir para as políticas de competividade como se a competição fosse um
processo que criaria um espaço comum a que todos convergiriam?… A
concorrência internacional é geradora de desequilíbrio. Basta ver a
China em relação ao resto do mundo, ou a Alemanha em relação Europa. No
caso da China, quando fez as reformas, abriu seu espaço territorial para
os investimentos estrangeiros e vai oferecer mão de obra barata para
alentar a competição por preços das empresas nos Estados Unidos e
Europa. Quem foi para a China? As grandes empresas norte-americanas,
europeias e japonesas. Eles criaram lá seu espaço de competição. O que
aconteceu? Um problema de desemprego crescente nos Estados Unidos e
Europa. Então você tem hoje o seguinte fenômeno: o sistema empresarial
norte-americano vai muito bem obrigado. Isto é verdade também para as
empresas europeias. Mas o espaço da economia territorial, o espaço
territorial de convivência, onde as pessoas trabalham, vivem, moram,
estudam, comem, têm lazer, esta cada vez mais ameaçado com os cortes nas
áreas dos direitos, da redução de salários, de rebaixamento do padrão
de vida etc. Por isso, as propostas de Keynes continuam atuais e, no
entanto, nunca foram tão impossível.
Os Estados Unidos não querem nem saber disso. Mas os norte-americanos
terão que enfrentar estas questões. Porque se eles mantiverem esse
sistema monetário internacional, não é porque o dólar é fraco, o dólar é
forte, então os chineses vão amealhar, em vez de US$ 3 trilhões de
reserva, US$ 5 trilhões! Isto é ruim para o comércio internacional e ao
mesmo tempo é muito grave porque os chineses vão exercer de alguma forma
esse poder, assim como o Brasil, que tem hoje uma reserva de US$ 370
bilhões e vai ter que acoplar mais.
– O que o senhor achou da proposta dos dois presidentes do Brasil
e da França sobre a criação de um conselho de segurança econômica e
social, nos moldes do Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU)? Já
existe o Conselho Econômico e Social na ONU, todavia, ele não tem
grandes poderes…Nem Lula, nem Jospim demonstraram muito entusiasmo…
– Eu acho que o Lula pegou as resoluções do G20 e mostrou que todas
elas eram corretas, porém nenhuma delas foi implementada. Por quê?
Porque quando você encontra esses obstáculos como esse que eu mencionei
com a questão da gestão da reserva de moedas, os Estados Unidos terão
que discutir este ponto, não tem como. Os Estados Unidos tinham 40% da
produção mundial, hoje eles só têm um pouco mais de 20%. Assim como a
União Européia, que também perdeu espaço com o surgimento dos emergentes
mais parrudos. Eles terão que rediscutir a reforma do sistema
monetário. Por exemplo, o Brasil já estar criando um fundo comum de
estabilização para a América Latina. Os fundos regionais vão surgir. O
Brasil com o Pré-Sal terá que fazer um fundo soberano e isto é uma arma
incrível do Brasil, se bem utilizado. Todavia, isto não vai resolver a
questão do desequilíbrio e nem do emprego. A ideia, por exemplo, de o
presidente (Barack) Obama dizer que os Estados Unidos terão que trazer
de volta as empresas norte-americanas dando-lhes um grau superior de
automação, introduzir a robótica, a lógica é a mesma.
– Então, professor Belluzzo, como seria esta nova governança mundial?
– Pois então, a nova governança mundial terá que caminhar nessa
direção, do Keynes, não tem como. Torna-se necessário restringir um
pouco esta competição, estabelecer regras do comércio internacional que
não são estas atualmente aplicadas. A organização da economia
internacional passa por outras questões, como a da coordenação mais
adequada do comércio, que não podem ser satisfeitas pelas regras atuais
Organização Mundial do Comércio (OMC).
Estas regras estipulam o livre comércio o que não é possível, não
existe competitividade entre os países, existe entre empresas. Se você
aceita as regras da competitividade, deverá aceitar o movimento das
empresas para fora; o abandono da economia territorial se estabelece num
conflito entre a vida no território. É a lógica abstrata da economia.
Esse é o problema do capitalismo. Olhado por certo ângulo, ele é muito
suficiente, mas como explicar que existe uma abundancia de capacidade
produtiva que poderia atender às necessidades básicas e não básicas das
pessoas, e essa incapacidade de gerar igualdade etc. Isto só pode ser
feito pela intervenção pública.
Sinceramente, eu fiquei muito impressionado com perplexidade do
governo socialista da França. As propostas que eles fazem são
francamente insuficientes para enfrentar a gravidade da situação hoje e
do que estar pra vir. Adotar por exemplo, políticas de competitividade e
austeridade neste momento significa sacrificar ainda mais a população.
Existe certa contradição entre o discurso da competitividade e a
criação do Banco de Investimento que ainda não vimos a sua
estruturação… A idéia de ter um Banco de Desenvolvimento com o Brasil é
muito boa. Hoje o BNDES é o maior do mundo. Talvez seja a melhor
resposta para a crise territorial que se vive hoje na Europa.
– A presidenta Dilma apareceu como uma ferrenha defensora da
União Européia e do euro, chegando a afirmar que sua criação foi a maior
construção política do mundo. Todavia, para a maioria dos cidadãos
franceses a Europa política ainda não foi construída daí o não ao
tratado de Lisboa… Que sugestões o senhor teria sobre a saída da crise
européia? E por que o fortalecimento da União européia é importante para
o Brasil?
– Eu venho observando e acompanhando os últimos passos desta crise
européia, inclusive esta questão do debate sobre a União Bancaria.
A Alemanha poderia conduzir a rearticulação e o rearranjo da Europa
política, não o faz porque caminha numa direção oposta e a França esta
numa posição um pouco subordinada. Há uma situação muito difícil, porque
o país que poderia funcionar como país residual na absorção dos choques
tem bloqueios históricos e ideológicos. A Alemanha está jogando em
função de seus próprios interesses, muito diferente do que os Estados
Unidos fizeram no pós-guerra. A Alemanha tem essa característica de se
considerar um pouco acima, isto é uma mancha que não sai. Considera-se
uma nação privilegiada, no certo sentido um pouco parecido no conteúdo e
na forma como os Estados Unidos de hoje, da utopia realizada.
Existe hoje uma resistência da Alemanha em romper com a política de
austeridade europeia. O povo alemão está convencido de sua capacidade de
fazer sacrifícios e suportar; e não está disposto a sacrificar os seus
princípios em nome daqueles considerados gastadores e nada cuidadosos
com suas economias e endividamentos, tais como os europeus do Sul. Nós
temos aí um bloqueio sério.
A Alemanha tem essa coisa também que o Weber percebeu e disse que o
povo alemão tinha esse vicio da obediência, é uma condição meio
complicada, ao mesmo tempo em que eles se acham superiores, eles são
obedientes. Então eles se submetem ao Estado de fato, ao que está ai.
Eles têm uma relação muito tosca com o resto da Europa.
Então, penso que a União Europeia poderia ser reconstruída se ela
usufruísse um pouco mais liberdade, mais fôlego em suas unidades e nos
países membros. Se ela adotasse um mecanismo de compensação fiscal. É um
absurdo que os países tenham déficits entre si com uma moeda comum. É
preciso uma coordenação dentro do Euro que compreenda diversas
estratégias.
No mês de maio deste ano, o prêmio de risco da Espanha, por exemplo,
calculado sobre os rendimentos dos títulos alemães de 10 anos chegou a
500 pontos. Para juntar a desgraça ao infortúnio, a corrida bancária e a
fuga de capitais chegaram à Ibéria, ameaçando a solvência das
instituições grandes, médias e pequenas.
O colapso da confiança não pode ser superado sem a centralização das
decisões na autoridade monetária encarregada de zelar pela higidez das
relações interbancárias e, portanto, pela “normalidade” das operações de
crédito. Você me desculpe, mas isto é de uma burrice inacreditável.
Como pensar que uma moeda comum vai funcionar assim? Eu vejo isto no
curto e médio prazo com muito pessimismo.
É provável que a crise não atingisse tais culminâncias se as
autoridades europeias tivessem admitido a inevitabilidade de uma
reestruturação ordenada da dívida e do controle público do sistema
bancário. Teriam assim mitigado as agruras da recessão e bloqueados o
avanço contagiosos da crise financeira. Trata-se de um caso de
psiquiatria política: a opção mesquinha por fazer pouco e devagar –
too little, too late - transformou-se numa reação avassaladora do tipo
too much forever.
* Marilza de Melo Foucher é economista, jornalista e correspondente do Correio do Brasil em Paris.
Fonte:
CdoB