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sexta-feira, 13 de setembro de 2019

DIREITA X ESQUERDA - SIGNIFICADO HISTÓRICO

Esquerda e Direita: Nascimento

Há 230 anos, a Direita e a Esquerda “nasciam” na vida política



Em 11 de setembro de 1789, a Assembleia Constituinte, na França revolucionária, se reuniu para deliberar sobre o poder de veto do rei Luís 16. Cada grupo de deputados escolheu seu lugar conforme as afinidades políticas. Assim, de modo involuntário, mas histórico, a distribuição dos parlamentares franceses, há exatamente 230 anos, marcou a divisão entre a Direita (conservadora ou reacionária) e a Esquerda (revolucionária ou reformista), que ainda hoje pontua a vida política nas democracias.

A Revolução Francesa explodira em julho de 1789. Dois meses depois, os deputados contrários à revolução ou ansiosos por contê-la (alguns nobres e clérigos) sentaram-se no lado direito do salão, em relação ao presidente da Assembleia. Este era, tradicionalmente, o chamado “lado da rainha”. Tais parlamentares – monarquistas fiéis ao rei e dispostos a lhe dar o direito de veto absoluto – foram chamados de “aristocratas”, com um tom de desprezo.

Os demais – burgueses representantes do Terceiro Estado e alguns nobres – queriam limitar o veto do rei e sentaram-se do lado esquerdo do presidente (o “lado do Palais Royal”). Favoráveis à revolução e chamados de “patriotas”, eles se dividiam em três grupos. Os “democratas” eram os mais radicais. Defendiam, entre outras bandeiras, as ideias de Rousseau, como o sufrágio universal.

Havia os “monarquistas”, moderados, como Jean Joseph Mounier, autor dos três primeiros artigos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Era esse grupo que lutava por uma monarquia constitucional parlamentar e bicameral, do tipo inglês. Por fim, os “constitucionalistas” formavam o grupo majoritário, entre os quais estava o abade Sieyès, Talleyrand e Lafayette, fonte da primeira Constituição que estabeleceu uma monarquia constitucional.

Na Assembleia de 1789, a composição social dos deputados de cada Estado estava longe de ser uma representação coesa de cada ordem. Junto aos “aristocratas” – os monarquistas, sentados à direita –, a maioria era de nobres provincianos pobres. Já os representantes do Terceiro Estado, à esquerda, eram homens abastados – advogados, médicos, homens de negócio e até nobres “esclarecidos”, escolhidos pela eloquência e cultura.

Portanto, já na sua origem, Direita e Esquerda não correspondiam a um determinado grupo social, como ainda hoje não necessariamente correspondem. A classificação nos ajuda, porém, a indicar tendências, isto é, serve de critérios para organizar as ideias políticas de uma pessoa ou um partido em um certo período. Mas é preciso, justamente, contextualizar os termos Esquerda e Direita para compreendê-los.

O caso francês

Se a Revolução Francesa foi o berço da Esquerda e da Direita, o século 19 foi o período de maturação e mudanças dessas tendências. Foi também quando surgiu a questão social no contexto da Revolução Industrial. O liberalismo, o nacionalismo, o socialismo, o anarquismo e o marxismo trouxeram novas ideias e ajudaram a forjar reivindicações que tornaram mais complexa essa polarização.

A divisão Esquerda-Direita ganhou contornos mais precisos entre a segunda metade do século 19 e o início do século 20. De uma geração a outra e de acordo com as circunstâncias históricas, os termos oscilaram de uma posição a outra, inclusive contrária à anterior. Na França, ao longo do século 19, a principal linha divisória de Esquerda e Direita foi discussão sobre o regime político. Partidários da república e da monarquia mudaram de posição e adquiriam novas nuances conforme a batalha e as demandas da época.

Foi o político direitista François Guizot, ministro da Educação e ardente defensor do rei Luis Filipe, que, em 1833, criou e organizou a educação primária pública da França, lei que marcou a história. A preocupação com a educação só entrou no programa da esquerda na segunda metade do século 19. Jules Ferry, chefe da esquerda republicana, tornou o ensino primário gratuito e obrigatório na França (1881-1882).

A primeira campanha pela abolição da pena de morte foi liderada por François Guizot, ao lado do jovem Victor Hugo, um monarquista convicto na época. Ambos eram de direita. A campanha, contudo, não teve sucesso. Somente em 1981 a pena de morte foi abolida na França – e graças à pressão da esquerda, em especial do socialista Robert Badinter, ministro da Justiça do governo François Mitterand, também socialista.

Uma lei de 1816 havia revogado o divórcio estabelecido pelo Código Napoleônico de 1804. No final daquele século, por pressão da esquerda representada pelos republicanos e socialistas, o divórcio foi legalizado na França (Lei Naquet, 1884). O divórcio era um aspecto importante do programa anticlerical da esquerda que defendia uma sociedade secular igualitária. Com a nova lei, o divórcio passou a ser permitido em caso de crueldade, violência, abuso sério ou adultério.

Ao tornar o adultério motivo para o divórcio e, por conseguinte, criminalizar o adultério, a esquerda rejeitou a reivindicação das feministas – que defendiam o “divórcio revolucionário”, com consentimento mútuo. Em uma sociedade patriarcal e masculina, a lei de 1884 pouco beneficiou a mulher. A esposa infiel continuou sujeita a até dois anos de prisão, o que não ocorria com o homem. Foi somente em 1975 que a França aprovou a descriminalização do adultério, durante o governo de Valéry Giscard d’Estaing, do Partido Republicano, de centro-direita.

O mesmo Jules Ferry, chefe da esquerda republicana que criou o ensino primário gratuito e obrigatório, foi um ardoroso defensor da colonização da África como forma de “civilizar as raças inferiores”. Com a notória exceção de Georges Clemenceau, reconhecido em sua época como um socialista radical, boa parte da esquerda francesa permaneceu fiel à sua política colonial até o final dos anos 1950.

Dimensões mais amplas

A partir do início do século 20, os termos Esquerda e Direita passaram a ser associados a ideologias específicas e foram usados para descrever posições políticas dos cidadãos. Ganharam um espectro mais complexo, que buscava combinar as dimensões política, econômica e social. Visando reconhecer a complexidade e a diversidade que marcam diferentes movimentos e ideologias, Esquerda e Direita foram subdivididas, indo do centro à extrema radical.

Criou-se um certo consenso de que a Esquerda inclui sociais-liberais, sociais-democratas, ambientalistas, socialistas, comunistas e anarquistas. A Direita abarca conservadores, liberais, neoliberais, monarquistas, fascistas e nazistas. Note que o liberalismo, considerado como uma ideia mais à esquerda no século 19, deslocou-se para a direita – um exemplo de como as tendências políticas não são estanques e, portanto, devem ser historicamente contextualizadas.

Isso não significa que o marcador tradicional Esquerda-Direita tenha desaparecido, pelo menos do senso comum. A democracia precisa de argumentos claros e compreensíveis para os eleitores comuns. Isto é o que é torna uma divisão Esquerda-Direita ainda presente e operante.

Fonte: http://desacato.info/ha-230-anos-a-direita-e-a-esquerda-nasciam-na-vida-politica/#more-218198

domingo, 12 de maio de 2019

BAUHAUS



“¿Qué tienen que ver con la Bauhaus unas escaleras mecánicas en Medellín, unos caracteres gráficos en Amán, unos muebles de Londres, una iniciativa de agricultura urbana en Detroit y unas viviendas sin paredes en Tokio?”, se preguntan en el documental Mundo Bauhaus que difundió la Deutsche Welle (DW) para conmemorar el centenario de su fundación este primero de abril ¿Qué tienen en común cientos de edificios y rascacielos del llamado “Estilo Internacional” erigidos en muchos países, con la Bauhaus? El diseño contemporáneo –arquitectónico, industrial, gráfico, tipográfico, de mobiliario, de cerámica, etcétera– hunde sus raíces profundas en la Bauhaus de 1919. Esta escuela se constituyó como una auténtica vanguardia artística y arquitectónica, la más importante en la historia del siglo XX, que trasciende hasta nuestros días.

Weimar, Gropius y la Bauhaus

Pocas semanas después de ser asesinados en Berlín el 15 de enero de 1919 los revolucionarios Rosa Luxemburgo y Karl Liebknecht se funda la Bauhaus en la ciudad de Weimar. Producto de una revolución proletaria en noviembre de 1918 y de la derrota de la insurrección de enero de la Liga Espartaquista –aplastada violentamente por el ala derecha de la socialdemocracia encabezada por Friedrich Ebert– la República de Weimar surge de una asamblea nacional el 11 de agosto. La derrota de Alemania significó una humillación para la naciente y poderosa burguesía germana que después emprendería, comandada por Hitler y sus huestes nazis, afanes imperialistas y nuevamente una guerra mundial. La abdicación del Káiser Guillermo II, el fin de la guerra y la desaparición del II Reich desembocaron en el nuevo régimen republicano. Con la derrota estalló una crisis económica, social y política, pero también una efervescente creatividad en las artes y las ciencias. Este régimen tuvo vigencia de 1919 a 1933, precisamente la vida de la Bauhaus. A partir de 1920, inicia un gran florecimiento cultural y artístico, como bien señala el historiador Eric Weitz: “El espíritu de la revolución creó la sensación de que se abría un nuevo futuro, de posibilidades ilimitadas, que podía desarrollarse de forma más humanitaria. Y ello explica a su vez gran parte de los movimientos innovadores durante la República… La elite conservadora impugnó a la República de Weimar en su totalidad. El trabajo de los artistas, pensadores y arquitectos… fue muy cuestionado por los conservadores. Se trataba de la derecha establecida: los aristócratas, altos funcionarios, oficiales de las fuerzas armadas, banqueros, gente de la iglesia, que no sólo eran antisocialistas y anticomunistas, sino también antidemocráticos. La revolución de 1918/19 dejó intacto su poder. Estableció una democracia política, pero no terminó con la posición social y el poder de la elite ultraconservadora. Esa elite conservadora desafió a la República en todo momento. Muchos de los conflictos se centraron no necesariamente en la esfera política, sino también en los ámbitos cultural y social. Existió por ejemplo la “guerra de los techos de Zehlendorf”, en la que arquitectos y políticos conservadores, incluidos los nazis, argumentaron que los techos planos de la arquitectura moderna no eran alemanes. Para los conservadores, los techos debían ser a dos aguas y puntiagudos. Incluso se tildó a los techos planos de judíos”. La lucha de clases fue muy intensa pero en la República ahora permanecía de manera latente y la oligarquía mantenía el poder dentro de un relativo equilibrio de fuerzas que se inclinó a su favor con la toma del poder por el Partido Nacionalsocialista Obrero Alemán (Nazi) en 1933. El ascenso del fascismo fue la respuesta de la clase dominante alemana a los acontecimientos revolucionarios que siguieron a la Primera Guerra Mundial. “La llegada al poder de los ‘nacionalsocialistas’ significará sobre todo el exterminio de la flor y nata del proletariado alemán, la destrucción de sus organizaciones” (Trotsky). La política de los socialdemócratas y los estalinistas fue mantener dividido e indefenso al movimiento obrero frente a la amenaza nazi, y el fascismo alemán abrumó como una terrible pesadilla hasta 1945.

La posguerra generó una proliferación de variedades del radicalismo social –y como escribe Donald Drew Egbert en su libro El arte y la izquierda en Europa: de la Revolución Francesa a Mayo de 1968– haciendo “surgir asimismo una gran variedad de movimientos artísticamente radicales, que entendían ser una parte integral de la revolución… Los movimientos modernos en las diversas artes y que recibieron su expresión más importante en la famosa escuela de la Bauhaus, no fueron –en términos políticos– específicamente socialistas o comunistas en su origen o en su desarrollo”. Tales movimientos artísticos subrayaban la importancia de una síntesis orgánica de las artes, sin formular distinción entre arte y artesano; síntesis propia del espíritu pedagógico de la Bauhaus.

La historia de la Bauhaus inicia cuando Walter Gropius, berlinés (1883–1969), une la Escuela de Bellas Artes con la Escuela de Artes Aplicadas o Escuela de Artes y Oficios en Weimar, tierra de Goethe y Schiller. Gropius fue su primer director y reunió a maestros de muy alto nivel y prestigio para la educación de las artes y el diseño. El nombre completo de la escuela fue Staatliche Bauhaus (Casa de la Construcción Estatal).

La Bauhaus como síntesis total del arte y el diseño modernos

La escuela tuvo tres periodos: de 1919 a 1925; de 1926 a 1930, y de este año a 1933. Hubo tres directores: Walter Gropius, de 1919 a 1928, Hannes Meyer, suizo (1889-1954), de 1928 a 1930, Ludwig Mies van der Rohe, Aquisgrán, Alemania (1886-1969), de 1930 a 1933. Weimar, Dessau y Berlín, fueron las ciudades que alojaron a la escuela.

Gropius escribió en abril de 1919 el Manifiesto de la Bauhaus: “¡El último fin de toda actividad plástica es la arquitectura! Decorar las edificaciones fue antaño la tarea mas distinguida de las artes plásticas, que constituían elementos inseparables de la gran arquitectura(…) ¡Arquitectos, escultores, pintores, todos debemos volver a la artesanía! No existe ninguna diferencia esencial entre el artista y el artesano ¡Formemos pues un nuevo gremio de artesanos sin las pretensiones clasistas que querían erigir una arrogante barrera entre artesanos y artistas!”

Nunca en tan poco tiempo y en el mismo lugar se reunieron tan grandes maestros del arte y la arquitectura moderna: Paul Klee, Vassily Kandisky; Gropius y Van der Rohe. Algunos profesores de la escuela también pertenecían al Novembergruppe –Grupo de Noviembre, por la revolución alemana de noviembre de 1918–, movimiento artístico ligado al expresionismo, fundado en Berlín el 3 de diciembre de 1918. Entre sus miembros figuraron pintores y escultores, entre otros, como Kandinski, Klee, Lyonel Feininger, y Käthe Kollwitz; arquitectos como Erich Mendelsohn y Van der Rohe; compositores como Alban Berg y Kurt Weill; y el dramaturgo Bertolt Brecht. Ese año, también bajo el influjo de la Revolución, siguiendo el ejemplo de las asambleas de trabajadores y de soldados, se formó el Arbeitsrat für Kunst (Consejo Obrero para el Arte), de cuya dirección formó parte Gropius. Muchas agrupaciones de todo tipo anhelaban el cambio social necesario para “crear una nueva humanidad, una nueva forma de vida del pueblo… entonces el pueblo volverá a participar en la construcción de las grandes obras de arte”, escribió Gropius.

La Bauhaus también fue consecuencia de grandes movimientos artísticos que le precedieron como Arts and Crafts (Artes y Oficios), encabezado por el inglés William Morris. El mismo Gropius reconoció la influencia de Morris y de John Ruskin. El Art Nouveau o Jugendstil igualmente influyó. También fue precursora la Deutscher Werkbund (DWB. Asociación Alemana del Trabajo), fundada en 1907 para fomentar la colaboración entre la industria y el diseño, Gropius fue destacado integrante de la DWB. Gropius siempre consideró que la separación entre bellas artes y oficios, ocurrida en la tradición académica, había causado un desastre sobre las artes. El dadaísmo, el cubismo, el suprematismo y el constructivismo rusos, De Stijl y la Secesión vienesa, fueron influencias contemporáneas sobre la Bauhaus.

La Bauhaus no solamente es el fruto de una época que se sentía revolucionaria sino también es producto esencial de los procesos políticos y económicos. De los primeros con relación a la luchas de clases y de los segundos con el desarrollo capitalista de una industrialización tardía pero muy poderosa. La Bauhaus se trasladó en 1925 a la progresista ciudad industrial de Dessau, debido a la caída del gobierno provincial de Weimar en 1923 por causa del supuesto radicalismo político de la escuela. En Dessau existía un gobierno socialdemócrata y facilitó la construcción del edificio diseñado por el propio Gropius. La Bauhaus siempre recibió el apoyo de los partidos de izquierda y siempre fue atacada por la derecha política.

En 1928 Gropius renuncia a la dirección de la escuela y ante la negativa de Van der Rohe propone a Hannes Meyer, quien era entonces director de la sección de arquitectura. Meyer se declaraba abiertamente comunista y permitió la extrema politización izquierdista de la escuela. Meyer consideraba que las reflexiones de Gropius acerca de la relación entre arte e industria eran superficiales y completamente dominadas por la estética. También era visiblemente simpatizante de la URSS, ya para entonces dominada por Stalin. En los años treinta y en adelante a Meyer podemos considerarlo un estalinista con una visión “marxista” de la arquitectura demasiada dogmática. El 1 de agosto de 1930, Meyer fue despedido por motivos políticos. Su sucesor fue Ludwig Mies van der Rohe.

Tom Wolfe escribió en 1975 un libro: ¿Quién teme al Bauhaus feroz? El 30 de enero de 1930 la Bauhaus es declarada por el nazismo como fuerza política subversiva, “nido de comunistas” y como la élite de “color rojo”; bolchevismo cultural, judía, y “arte degenerado”. En 1933, en Berlín se cierra la Bauhaus y el edificio en Dessau se convierte en sede de un cuerpo militar destinado a ejecutar a todo enemigo del nazismo. El contraste era muy claro, por un lado, el fascismo representa fielmente el totalitarismo de la barbarie social y, por otro, la Bauhaus la modernidad progresiva y una utopía social.


Román Munguía Huato
Es académico de la Universidad de Guadalajara (México).

domingo, 5 de junho de 2016

Democracia e Poder

Obra de Jheronnimus Bosch


Por Paulo Müzell

John Kenneth Galbraith definiu o poder como “habilidade de um indivíduo ou de um grupo conseguir a submissão de outros a seu(s) propósito(s)”. Bertrand Russell complementou, afirmando que o poder na vida social tem um papel correspondente ao da energia no mundo físico. De que forma se exerce o poder, quais os meios utilizados para exercê-lo? Galbraith sintetiza citando o primeiro: punição, coerção, medo, a forma mais antiga de poder. Maquiavel aconselhou o príncipe: “é melhor ser temido do que amado.” Segundo: compensação, premiando aqueles que se submetem ao poder, é exatamente o inverso do medo e da punição. Terceiro: persuasão, que é conseguir a adesão através do convencimento, da crença. A sua forma mais perene: quem adere se sente ou tem a ilusão de ser partícipe.

A história da vida em sociedade é a história do poder. A produção do excedente econômico libera mão de obra da atividade diretamente produtiva: nasce a classe ociosa, nas figuras do líder político e chefe da guerra, do pajé e do curandeiro. Resumidamente, os cinco mil anos da história da humanidade consistem na luta da imensa maioria para ser ouvida, participar das decisões e se beneficiar do aumento da renda e da riqueza gerada. Não querendo ser pessimista, considero que os resultados foram até agora extremamente modestos.

Nas idades antiga, média e moderna, ao longo de quarenta e oito séculos, tivemos lentos e milimétricos avanços na luta contra a tirania e o poder absoluto de uma minoria. Durante séculos e séculos os reis e a Igreja lutaram – e tiveram sucesso – para manter seu poder e privilégios. Só no século XIII, na Inglaterra, tivemos um avanço: revolta dos barões, num episódio de enfrentamento dos excessos do monarca João Sem Terra. A limitação do poder real só ocorreu efetivamente, também na Inglaterra, quatrocentos anos depois, no século XVII: a revolta liderada por Cronwell foi consolidada na Revolução Gloriosa que depôs Jaime II em 1688. Institucionalizou-se ali o Parlamento e uma Constituição que estabeleceu limites ao poder absoluto do rei.

Decorrem pouco mais de duzentos anos da Revolução Francesa, da ascensão de uma nova classe, a burguesia, do iluminismo, do nascimento da democracia formal, do Estado laico estruturado em três poderes teoricamente autônomos e harmônicos entre si. Apesar do triunfante lema de uma Revolução que prometia – liberté, égalité, fraternité -, as desigualdades não foram superadas, se mantiveram. As potências europeias exploraram suas colônias na África, Ásia e América Latina até poucas décadas atrás; o sufrágio universal extensivo às mulheres tem apenas oitenta anos. A escravidão foi abolida formalmente há pouco mais de um século: de fato ainda existe nos países pobres e até aqui no Brasil. Em muitos países não ocorreu ainda a separação Igreja-Estado. Quase um terço da população mundial vive em países muçulmanos onde a fé religiosa se sobrepõe aos direitos da cidadania e há extrema desigualdade de gênero Mais de dois bilhões de chineses, indianos e japoneses vivem numa sociedade onde ainda impera um patriarcalismo primitivo.

O sistema econômico concentra cada vez mais capital: um pequeno número de empresas multinacionais controla o avanço tecnológico e a produção mundial. Defendem a livre concorrência e uma economia de mercado que não existe mais. Um capital financeiro cada vez desregulamentado e especulativo provoca frequentes crises cíclicas: os lucros são privados; os prejuízos públicos. No final da estória o contribuinte é quem acaba pagando a conta, ou seja, cobre os “rombos bilionários”. É a “socialização do prejuízo”, um capitalismo sem riscos. A oligarquia concentra cada vez mais a riqueza dos países, é dona dos meios de comunicação, financia partidos, elege políticos e controla de fato os governos. Este é o cenário mundial: nos Estados Unidos, na Europa e aqui na América Latina.

A crescente concentração da riqueza e do poder torna cada vez mais distante a democracia real. Resta-nos a democracia burguesa e mesmo esta ainda não se consolidou no Brasil. A grave crise política que vivemos hoje é uma prova disto. Um Congresso reacionário liderado por um criminoso montou uma farsa grotesca, um golpe parlamentar, expondo o país ao ridículo. O golpe – uma agressão às leis e à Constituição – contou com a cumplicidade de um poder judiciário cuja instância maior, o Supremo uma vez mais envergonhou a nação, dando respaldo a um justiceiro que cometeu flagrantes arbitrariedades, desrespeitou o direito de defesa e descumpriu as leis. Um juiz cujos atos evidenciam sua parcialidade: um juiz que tem lado. Aquele mesmo Supremo que já se acovardara durante a ditadura militar – dando ares de legalidade à violência e ao arbítrio -, tapou os ouvidos e fechou os olhos no episódio do golpe, chegando ao absurdo de impedir a posse de um ministro de Estado legitimamente indicado pela presidência. Um Supremo que desrespeita a Constituição, influenciado e submisso a uma mídia que falseia os fatos, a serviço de uma oligarquia atrasada, entreguista. Um judiciário corporativo, que instituiu a auxílio moradia, que desrespeita o teto salarial do serviço público e ainda pleiteia novos benefícios absurdos. Um judiciário que se pensa e se organiza como casta, fechado, sem controles externos, um verdadeiro acinte à cidadania. A recente atuação do judiciário brasileiro mostra que a reforma do judiciário é tão ou mais urgente que a reforma política que há tantos anos o país aguarda.

Fonte: http://www.sul21.com.br/jornal/democracia-e-poder/

domingo, 30 de agosto de 2015

Trotsky



Por Eduardo Mancuso

Lev Davidovitch Bronstein nasce na Ucrânia, em 1879, filho de um proprietário de terras judeu. Aos 18 anos juntamente com sua esposa Alexandra e um pequeno grupo de militantes, funda a União dos Trabalhadores do Sul da Rússia. Preso pela polícia czarista, é condenado a quatro anos de deportação na Sibéria. Em 1902, após adotar o pseudônimo que o identificará por toda a vida (copiado de um de seus carcereiros), Trotsky foge da prisão e vai encontrar-se com Lenin em Londres, onde era editado o jornal Iskra (Centelha), órgão do Partido Operário Social-Democrata Russo.

No II Congresso do partido, em 1903, ocorre a divisão entre bolcheviques (maioria), liderados por Lenin e os mencheviques (minoria), que defendem o protagonismo da burguesia liberal na revolução democrática, contra a monarquia czarista.  Trotsky diverge radicalmente da estratégia menchevique, mas vota contra os bolcheviques na questão da organização partidária, fazendo duras críticas às concepções leninistas, que considerava centralizadoras e autoritárias. Às portas da revolução de 1917, quando adere ao bolchevismo, Trotsky fará autocrítica das posições que havia adotado durante e após o histórico congresso, sobre concepção partidária e sua insistência em buscar a conciliação entre mencheviques e bolcheviques (subestimando, inclusive, suas brilhantes análises naquele debate).

A revolução russa de 1905 teve destacada participação de Trotsky, que assume a presidência do primeiro soviete (conselho) da história da classe trabalhadora, em São Petersburgo (futura Petrogrado), e após a derrota do movimento escreve o seu relato. Primeira revolução do século XX, iniciada com a crise do regime czarista, provocada pelas greves dos trabalhadores e pela derrota militar frente ao Japão, teve como marco o “domingo sangrento”, em que milhares de manifestantes foram fuzilados pelas tropas, diante do palácio do czar. A revolução de 1905 marca o surgimento dos sovietes e da greve geral de massas como criações políticas revolucionárias da luta de classes, e exerce forte impacto nas concepções teóricas de Trotsky, Lenin e Rosa Luxemburgo.

Após a revolução de 1905, Trotsky publica um pequeno livro que se mostra profético, “Balanço e Perspectivas”, onde antecipa a estratégia vitoriosa da Revolução Russa. Nessa obra ele resgata o conceito de revolução permanente de Marx, e sustenta o caráter socialista e internacional da revolução na Rússia, sob a direção política da classe operária em aliança com os camponeses – ao contrário dos bolcheviques, que defendiam o caráter democrático burguês da revolução. Uma década depois, Lenin adota essa estratégia em suas “Teses de abril”, reorientando o partido bolchevique para a vitória comunista de 1917.

Em 1914, explode a Primeira Guerra Mundial, com a capitulação da social-democracia frente à guerra imperialista, e seus 10 milhões de mortos marcam tragicamente a traição histórica da Segunda Internacional ao socialismo. Em 1915, a esquerda internacionalista contrária à guerra se encontra na Conferência de Zimmerwald, na Suiça, e as posições de Lenin e Trotsky se reaproximam. Com a fome e a mortandade provocada pela guerra, explode a revolução de fevereiro de 1917, que derruba o czarismo e implanta o governo provisório. Trotsky embarca de volta à Rússia, e chega a Petrogrado um mês depois de Lenin ter desembarcado na famosa Estação Finlândia, e reorientado os rumos do partido bolchevique na oposição ao governo provisório (formado por burgueses liberais e monarquistas constitucionalistas, e depois com a participação de socialistas-revolucionários e mencheviques) que insistia em manter a Rússia na guerra, barrava a reforma agrária e reprimia os trabalhadores e os camponeses.

“Todo o poder aos sovietes” foi a palavra de ordem que Lenin lançou às massas radicalizadas pela guerra e a fome, abrindo o caminho para a revolução de outubro. Em julho, Trotsky ingressa no partido e no comitê central bolchevique com a sua organização Interdistrital. Em setembro, é eleito novamente presidente do Soviete de Petrogrado, e logo depois coordenador do Comitê Militar Revolucionário, órgão responsável pela organização da tomada do poder. Em novembro (outubro pelo antigo calendário russo), irrompe vitoriosa a primeira revolução socialista da história, sob direção bolchevique e o lema de “Paz, pão e terra”.

Porém, havia a guerra com a Alemanha, o bloqueio e a intervenção militar das potências ocidentais contra a Rússia. Trotsky torna-se Comissário do Povo para as Relações Exteriores, chefia as negociações com o alto comando alemão e desenvolve nesse período uma intensa agitação dirigida ao proletariado europeu, em que denuncia as chantagens imperialistas. Porém, no início de 1918 a jovem república soviética é obrigada a assinar a Paz de Brest-Litovsk, imposta pela superioridade militar alemã. No plano interno, era o caos com a guerra civil e os exércitos brancos contrarrevolucionários atacando em três frentes, a oposição de mencheviques e socialistas-revolucionários, e a terrível crise econômica, com o colapso da produção agrícola, industrial e dos transportes. A revolução estava em perigo.

Trotsky torna-se Comissário do Povo para Assuntos Militares e organiza o Exército Vermelho, onde combina oficiais do antigo exército czarista, que se mantém leais ao novo governo com a supervisão de comissários políticos bolcheviques. Depois de passar dois anos atravessando a Rússia em um trem blindado, de onde comanda o Exército Vermelho durante a guerra civil (e onde escreve “Terrorismo e comunismo”, provavelmente seu pior livro), Trotsky conquista a vitória sobre os exércitos brancos em 1920. Porém, em março de 1921, o X Congresso do Partido Bolchevique defronta-se com a revolta dos marinheiros do Kronstadt e revoltas camponesas, ambas, sob influência anarquista, são esmagadas pelo poder soviético. Nesse contexto, o Congresso bolchevique suspende, em caráter extraordinário o direito de tendências no partido, e Lenin lança a Nova Política Econômica (a NEP), que substitui a fase do comunismo de guerra. Após as derrotas das revoluções na Alemanha, na Finlândia e na Hungria, o isolamento da Rússia soviética era total.

Em 1919 Lenin convoca o congresso de fundação da Internacional Comunista e Trotsky redige seu Manifesto (ele vai escrever, também, o Manifesto do II e as Teses do III Congresso). Em 1923 Lenin propõe a Trotsky uma aliança contra Stalin (que detinha a secretaria-geral do partido) e o combate conjunto à nascente burocratização da revolução. Trotsky organiza a Oposição de Esquerda, mas em janeiro de 1924 Lenin morre. Stalin lança uma campanha de filiação partidária de massas, chamada de “recrutamento Lenin”, e apresenta a teoria antimarxista do “socialismo em um só país”.

Entre 1925 e 1927, Trotsky é afastado das suas funções no governo e na direção do partido, até sua expulsão da União Soviética, em 1929. Nesse período, Trotsky escreve algumas de suas obras mais importantes: “Literatura e Revolução”, em defesa de uma arte e cultura socialista; “A Internacional Comunista depois de Lenin”, onde faz um balanço devastador da política internacional do stalinismo; “A Revolução Desfigurada”, onde responde às calúnias e falsificações históricas sobre o seu papel na revolução, e defende a luta política da oposição contra a burocracia stalinista; “Minha Vida”, sua autobiografia; e “A Revolução Permanente”, em que retoma e desenvolve suas teses formuladas anos antes.

Trotsky vive exilado na Turquia até 1933, onde escreve os três volumes de sua magistral “História da Revolução Russa” e os “Escritos sobre a Alemanha” (editado no Brasil por Mário Pedrosa, sob o título “Revolução e contrarrevolução na Alemanha”), duas obras primas do marxismo. Depois de passar pela França e pela Noruega, sob pressão diplomática e ameaças constantes, Trotsky finalmente encontra abrigo no México, graças ao presidente nacionalista Lázaro Cárdenas.

No exílio mexicano, hospedado com sua segunda esposa, Natália Sedova, inicialmente na casa do grande muralista Diego Rivera e da artista plástica Frida Khalo, e depois na casa da rua Viena, a atividade de Trotsky continua sendo o combate incansável contra a burocracia stalinista. Ele denuncia a traição histórica do partido comunista e da social-democracia ao movimento operário alemão, por se recusarem a cerrar fileiras em uma frente única, permitindo a chegada do nazismo ao poder, sem luta; denuncia a traição da revolução espanhola pelo stalinismo e os abjetos Processos de Moscou na Rússia (nos quais Stalin elimina fisicamente toda a “velha guarda” bolchevique).

Em 1936, Trotsky escreve “A Revolução Traída”, caracteriza a União Soviética como um “Estado operário burocraticamente degenerado”, defende a derrubada da ditadura stalinista pelos trabalhadores, através de uma “revolução política”, que resgate a democracia socialista e o poder dos sovietes com pluripartidarismo. Ele afirma então que, ou a classe operária derruba o regime burocrático, ou cedo ou tarde, haverá o retorno ao capitalismo, e declara: “um rio de sangue separa o stalinismo do bolchevismo”. Eram tempos contrarrevolucionários: stalinismo, fascismo, a Grande Depressão capitalista. “Era meia-noite no século”, declara o companheiro de Oposição de Esquerda e biógrafo de Trotsky, Victor Serge. A Segunda Guerra Mundial apontava no horizonte.

Trotsky passa seus últimos anos de vida no México, tentando organizar a Quarta Internacional – fundada em Paris, em 1938, sem a sua presença, por razões de segurança. Escreve o Programa de Transição, com o objetivo de formar uma nova geração de marxistas revolucionários (ele não chama o seu movimento de “trotskista” mas “bolchevique-leninista”), que garantisse a herança e a continuidade da Revolução de Outubro e da Oposição de Esquerda. Após sobreviver ao atentado organizado por membros do Partido Comunista mexicano, armados de metralhadoras, finalmente o braço assassino de Stalin alcança Trotsky. Em 20 de agosto de 1940, o agente stalinista Ramón Mercader, infiltrado na casa-fortaleza de Coyoacan, ataca-o pelas costas em seu escritório, e fura o seu cérebro com uma picareta. Ele resiste por mais um dia, vindo a falecer em 21 de agosto. Na mesa de trabalho de Leon Trotsky, os seus últimos escritos sobre a polícia secreta e os métodos criminosos de Stalin, restam manchados de sangue.

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Novas formas de sofrer no Brasil

 

 

Novas formas de sofrer no Brasil da Retomada


Dois problemas, ou processos, se cruzam, no Brasil dos últimos 20 anos, fazendo com que pensemos em uma mudança estrutural de nossas formas de sofrimento. O primeiro problema é o que podemos chamar de expansão da racionalidade diagnóstica no Brasil pós-inflacionário. Desde então passamos, gradualmente, a entender nossa vida no trabalho, na escola e na comunidade a partir de avaliações. Avaliações, que justificam intervenções que geram novas avaliações. Métricas, orientação para resultados, comparações e cálculo de valores agregados tornaram-se parte e nossa forma de vida comum como nunca antes. Isso justifica, em parte, o crescimento dos diagnósticos de todo tipo: psicológico, educacional, corporativo, jurídico e assim por diante. E não há diagnóstico sem sintoma. Na psicanálise isso se mostrou como uma preocupação ascendente com a psicopatologia e com o tema dos sintomas, os chamados “novos sintomas”: pânicos, depressão, drogadição, anorexia. Esses novos sintomas têm uma coisa em comum. Eles não se organizam a partir do conflito entre o que é proibido e o que é obrigatório, como os sintomas clássicos derivados da contradição entre o desejo e a lei. Os novos sintomas dizem respeito à oposição entre potência e impotência, e eles são determinados por uma crise na intensidade do desejo, ou no que a psicanálise chama de relação entre desejo e gozo.

Paralelamente temos que reconhecer um segundo processo, que tem relação com a profunda reorganização social que o Brasil sofreu nestes últimos 20 anos. Deixamos de nos pensar a partir de divisões como “campo ou cidade”, “desenvolvimento ou subdesenvolvimento”, “nacional ou estrangeiro”, e passamos a tematizar nossas divisões internas em termos da distribuição de recursos ou renda e de acesso a bens simbólicos como saúde, justiça e educação. O deslocamento social da ralé para a pobreza, da pobreza para a classe média, bem como da classe média para cima e para baixo tornou-se real. Isso produziu uma modificação estrutural do mal-estar. O mal-estar (Unbehagen) é uma noção intuitivamente acessível, mas difícil de conceitualizar. Todos nós já passamos por aquela situação na qual o que deveria ter ficado tácito e pressuposto vem à tona, revelando um desencontro de expectativas e rasgando o semblante de nossa representação social.  Algo análogo teria acontecido nesta nova configuração do mal-estar quando ficou claro que algo havia se rompido nos pactos que formaram a brasilidade até então. Há um descompasso entre a transformação e a nomeação da transformação. O mal-estar é a experiência desta zona de indeterminação, anomia e contingência que acompanha toda transformação, mas também todo fracasso transformativo, por isso seu afeto fundamental foi pensado por Freud como sendo a angústia e suas variações mais próximas: sentimento de culpa, desamparo e ansiedade expectante.

Temos então de um lado estes novos sintomas e do outro esta mutação do mal-estar. Entre eles é possível situar a transformação de nossas maneiras de sofrer. O sofrimento possui três características importantes, que explicam porque ele é uma espécie de ponte ou de caminho pelo qual particularizamos o mal-estar na forma de sintomas:
  1. Todo sofrimento é transitivista. Quando sofremos criamos identificações, nas quais o agente e o paciente da ação se indeterminam mutuamente. Exemplo: uma pessoa querida adoece. Ela sofre porque perde sua saúde, você sofre porque ela sofre, ela sofre porque você sofre porque ela sofre, e assim por diante envolvendo todos os que amam aquele que sofre. Vem daí a irresistível tentação, diante de uma história de sofrimento, de contar uma história pior, mais trágica, mais infeliz, mais terrível.
  2. O sofrimento depende de relações de reconhecimento. A experiência de sofrimento que é reconhecida, seja por aqueles que nos cercam, seja pelo Estado, é diferente do sofrimento sobre o qual paira o silêncio, a invisibilidade ou a indiferença. Há, portanto uma política do sofrimento que estabelece para cada comunidade qual demanda deve ser sancionada como legítima e qual deve ser reduzida ao que Freud chamava de sofrimento ordinário.
  3. O sofrimento se estrutura como uma narrativa. Ao contrário da dor, que permanece mais ou menos igual a si mesma, o sofrimento exprime-se em séries transformativas, ele se realiza por meio de um enredo, ele convoca personagens (como a vítima e o carrasco). A experiência de sofrimento envolve a transferência e a partilha de um saber sobre suas causas, motivos e razões. O sofrimento varia radicalmente em conformidade com o saber que se organiza em torno e por meio dele.
Para efeitos de simplificação poderia dizer que estas três condições do sofrimento se sintetizam no que os filósofos antigos chamavam de sentimento. O sentimento é uma categoria essencialmente social, que reúne e resolve contradições inerentes ao mal estar. Disse anteriormente que o mal-estar é sempre um fracasso de nomeação, e quando ele se nomeia perfeitamente o pior se enuncia no horizonte. Ora, uma índice de como o mal-estar se combina com os sintomas na experiência de reconhecimento narrativa e transitiva do sofrimento é justamente a noção de sentimento. Como dizia Lacan o sentimento, mente. Mas é esta mentira que nos permite localizar outro lugar onde estará o grão de verdade faltante.

O que caracteriza o Brasil dos anos 1984 em diante não é apenas uma redemocratização do país, a abertura gradual de sua economia ou a modernização de suas práticas institucionais. Mudamos nossa forma de sofrer, e, como argumentei acima, de reconhecer, partilhar e narrar nosso sofrimento. Isso poderia ser ilustrado pelo que aconteceu com o nosso cinema, particularmente no período de 1997 a 2007, com o chamado Cinema da Retomada. De repente quatro temas ganharam as telas: a traição e a vingança, a invasão de privacidade, a deriva errática de destinos e a “cosmética” da fome e da pobreza. Todas estas narrativas são convergentes com o nome que encontramos para o nosso novo mal-estar: a violência. Meu argumento aqui não é apenas constatativo. Ele aponta para o fato de que a violência está sobrecarregando e condensando muita coisa, talvez coisas demais: a corrupção, a diferença de classes, a tensão entre gêneros, a má distribuição de recursos, a precariedade institucional. Ou seja, o engodo está em pensar que tudo isso tem um nome só, violência, e que, portanto, ao “combatermos” este problema estamos resolvendo todo a resto que nele se comprime. Nada mais falso.

Há um antropólogo, chamado Clemens, que na década de 1930 fez uma pesquisa transcultural estudando como os diferentes povos e civilizações narram seu sofrimento, notadamente no contexto de interpretação social da experiência de adoecimento, e na interpretação narrativa de suas causas. Ele observou que nossa imaginação quanto às diferentes maneiras de sofrer é bastante curta e repetitiva. Nós não conseguimos sair de quatro hipóteses:
  1. Violação de um pacto. Ou seja, acreditamos que o sofrimento deriva do não cumprimento de um pacto, ou da sua não realização adequada ou da usurpação de seu sentido. Essa é a nossa teoria trivial de que se estamos em desgraça é porque é porque algo ou alguém está descumprindo a lei.  Como se se todos agissem em conformidade e adequação com a lei o sofrimento se extinguiria. Ora, no Brasil dos últimos vinte anos há uma maneira nova de pensar o pacto social, que inverte esta teoria. Surge uma percepção de que a lei pode ser usada de forma contrária ao espírito do pacto que a originou. Isso cria um sentimento social que domina uma de nossas novas narrativas de sofrimento, a saber, o ressentimento. O ressentido não é aquele que perdeu, mas aquele que acha que no fundo o jogo é injusto. Ele acha que o Outro tem muito mais poderes do que ele realmente tem, por isso está sempre apaixonado por sua própria inferioridade.
  2. A segunda narrativa clássica para dar forma de linguagem ao sofrimento é a narrativa da perda da alma. E aqui sofremos porque não conseguimos mais nos reconhecer no que fazemos ou em quem nos tornamos. Pensem naquelas pessoas que mudam de classe social ou de padrão de consumo e que de repente são percebidas como inautênticas, postiças, habitando um mundo de mera aparência, por exemplo, como os novos ricos (emergentes). Pensem também naqueles que estão corroídos por uma espécie de sentimento de inadequação existencial, incorrigível e persistente. Uma espécie de vergonha incurável, que não diz respeito ao que alguém faz, que pode ser progressivamente aperfeiçoado, mas que é uma vergonha de ser.
  3. A terceira forma de sofrer, que vem ganhando força entre nós, está referida à hipótese do objeto intrusivo. Ou seja, diante do sofrimento logo interpreto que há alguém a-mais em meu território que está desequilibrando o ambiente e tirando a suposta pureza e harmonia na qual vivíamos antes. Este é o caso tanto da vida murada, em forma de condomínio, que precisa defender-se permanentemente do outro percebido como perigoso, quando das erupções de preconceito e segregação inspirada na homofobia, na opressão contra as minorias sentidas como “perigosas”. Obviamente esta forma de sofrimento refere-se a uma patologia da inveja, ou seja, uma transformação do sentimento de que o outro, com sua própria modalidade de gozo, pode estar mais feliz do que eu, gera a resposta de negação. Uma recusa a reconhecer que isso que é sentido como uma espécie de ostentação ou de exibicionismo é uma espécie de inveja mal tratada em nós mesmos.
  4. A quarta maneira ascendente de sofrer no Brasil da Retomada apoia-se no que Clemens chamou de narrativa da perda da unidade do espírito, ou do sentimento de desregulação entre os sistemas que compõe nossa forma de vida. É o que os sociólogos chamam de anomia e que se expressa em sentimentos como o desamparo, a desorientação e no nosso estranhamento com relação ao tempo ou ao espaço que vivemos. Isso pode se dar por meio de sintomas como o sentimento de inadequação persistente em relação ao próprio corpo, à própria família, à própria vida laboral.
Podemos ver que estas novas formas de sofrimento apoiam-se em discursos antes fartamente disponíveis no Brasil e indissociáveis de nossa formação histórica. O Brasil do jeitinho e do “para os amigos tudo, para os inimigos a lei” deu nesta obsessão com a corrupção e com a purificação dos interesses. O Brasil da opressão de classe e dos latifúndios deu no ressentimento contra a recente mobilidade social. O Brasil da racialização engendrou o sofrimento com a insegurança e com o perigo das classes criminosas e com as patologias do consumo. Por fim, o Brasil da mistura, do sincretismo e da desordem pariu esta nova forma de desorientação que habita as vidas depressivas, sem ideais e sem rumo, que se tornam presas fáceis para novos discursos “ordenadores”.

Espero que essa breve decomposição permita iluminar porque a combinação entre ressentimento, vergonha, inveja e desamparo funde-se no ódio que tem dividido o país. A indignação que este transpira não é só porque enfrentamos problemas novos, mas também porque as novas formas de narrar e de partilhar o sofrimento ainda não foram propriamente reconhecidas, nem institucionalmente, nem em termos discursivos. Quando isso acontece é simples recuarmos para uma variação mais simples da angústia, que é o medo, e a partir dele pressupor no outro a violência que se está a praticar.

A dimensão estética da experiência caracteriza de modo cada vez mais intenso nossa apreciação dos laços de desejo, de amor e de gozo. Em Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros, proponho discutir algumas novas formas de sofrimento que psicoterapeutas e  psicanalistas estão enfrentando tendo em vista o sujeito estético e seu eventual apagamento na contemporaneidade. Nesse sentido, abordo as modalidades de tratamento espontâneo do sofrimento com especial atenção aos sentimentos de desamparo, de ressentimento, de inveja e de vergonha.

http://blogdaboitempo.com.br/2015/04/24/novas-formas-de-sofrer-no-brasil-da-retomada/

domingo, 5 de abril de 2015

O FUTURO DO PAPEL (o papel tem futuro?)






ESCRITA, PAPEL E ERA DIGITAL

O papel tem futuro?


Escrita

Costuma-se afirmar que a história da humanidade iniciou ao mesmo tempo em que surgiram os registros escritos.

Anteriormente ao aparecimento de formas de escrita os seres humanos viviam uma época que se convencionou chamar de pré-história.

A escrita possibilitou à humanidade o início de um processo de comunicação de conteúdos para além da sobrevivência dos seres que formularam essas mensagens.

O surgimento da escrita, portanto, criou um novo e poderoso paradigma.

Há controvérsias a respeito, porém acredita-se que as primeiras formas de escrita surgiram por volta de 4 mil anos antes de Cristo, na região dos atuais países Irã e Iraque, na época conhecida como Mesopotâmia.

À medida que a inteligência humana passou a se desenvolver, as representações gráficas foram se tornando cada vez mais complexas, surgindo a necessidade de aperfeiçoamento dos suportes para a codificação sistemática da escrita.


Papel

Antes da invenção do papel, os seres humanos utilizavam várias formas para se expressar através da escrita. Inicialmente eram utilizadas as superfícies daqueles materiais que a natureza oferecia praticamente prontos para seu uso, como paredes de rocha, pedras, ossos, folhas. Em uma segunda etapa, foram desenvolvidos suportes mais adequados para as representações gráficas, tais como tabletes de barro cozidos, couros de animais, cascas de árvores, papiros, pergaminhos e outros.

Há um certo consenso de que o papel tal como o concebemos atualmente, produzido a partir de fibras vegetais, surgiu em torno do ano 115 antes de Cristo na China.

Gradativamente os processos de produção de papel foram sendo aprimorados.

A invenção da imprensa, no ano de 1450, deu início a um impulso muito importante para a aceleração do processo de massificação da utilização do papel.

A partir de então, até nossos dias, o papel passou a ter uma importância crucial para a história da humanidade.


Era Digital

Desde a invenção da imprensa, no século XV, até meados do século XX, o papel reinou absoluto como suporte da escrita.

Em 1946, porém, entrou em operação nos EUA o primeiro computador, o ENIAC - Eletronic Numerical Integrator And Computer (em português Computador e Integrador Numérico Eletrônico).

Na década de 60 foi criado o primeiro microprocessador, o chip, que permitiu uma diminuição significativa no tamanho dos computadores, já apontando para a portabilidade.

A partir de então a velocidade das inovações é estonteante.

De 1970 em diante as evoluções da tecnologia se concentraram significativamente na procura de processos mais elaborados de componentes internos dos computadores. O tamanho dos mesmos diminuiu drasticamente, assim como o peso.

No começo da década de 80, com a criação do sistema operacional DOS e o início da produção em massa dos computadores pessoais, uma verdadeira revolução se operou.

Em 1990, de forma ainda precária, é colocado em funcionamento o primeiro servidor do que atualmente conhecemos como internet. No ano seguinte é disponibilizado o primeiro navegador.

A partir de então a web começa a ficar cada vez mais popular.

A comunicação entre os seres humanos mudou de forma radical.

Atualmente é muito difícil imaginar uma organização pública, privada ou do terceiro setor -  ou mesmo um lar - sem a intensiva utilização de computadores e da internet.

Como decorrência natural, praticamente todos os registros humanos, desde livros, documentos diversos, música, imagem, etc, são passíveis de serem acessados em meio eletrônico.

O reinado do papel, antes absoluto, encontra-se sob ameaça.

Essa evolução ainda não se completou, pois se trata de uma dramática quebra de paradigma.
São várias as indicações, porém, de que a humanidade se prepara, depois de uma longa jornada, para o que parecia inimaginável: a eliminação lenta, porém inexorável, da utilização do papel.

Omar Rösler
(outono de 2015)