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quarta-feira, 29 de abril de 2015

Novas formas de sofrer no Brasil

 

 

Novas formas de sofrer no Brasil da Retomada


Dois problemas, ou processos, se cruzam, no Brasil dos últimos 20 anos, fazendo com que pensemos em uma mudança estrutural de nossas formas de sofrimento. O primeiro problema é o que podemos chamar de expansão da racionalidade diagnóstica no Brasil pós-inflacionário. Desde então passamos, gradualmente, a entender nossa vida no trabalho, na escola e na comunidade a partir de avaliações. Avaliações, que justificam intervenções que geram novas avaliações. Métricas, orientação para resultados, comparações e cálculo de valores agregados tornaram-se parte e nossa forma de vida comum como nunca antes. Isso justifica, em parte, o crescimento dos diagnósticos de todo tipo: psicológico, educacional, corporativo, jurídico e assim por diante. E não há diagnóstico sem sintoma. Na psicanálise isso se mostrou como uma preocupação ascendente com a psicopatologia e com o tema dos sintomas, os chamados “novos sintomas”: pânicos, depressão, drogadição, anorexia. Esses novos sintomas têm uma coisa em comum. Eles não se organizam a partir do conflito entre o que é proibido e o que é obrigatório, como os sintomas clássicos derivados da contradição entre o desejo e a lei. Os novos sintomas dizem respeito à oposição entre potência e impotência, e eles são determinados por uma crise na intensidade do desejo, ou no que a psicanálise chama de relação entre desejo e gozo.

Paralelamente temos que reconhecer um segundo processo, que tem relação com a profunda reorganização social que o Brasil sofreu nestes últimos 20 anos. Deixamos de nos pensar a partir de divisões como “campo ou cidade”, “desenvolvimento ou subdesenvolvimento”, “nacional ou estrangeiro”, e passamos a tematizar nossas divisões internas em termos da distribuição de recursos ou renda e de acesso a bens simbólicos como saúde, justiça e educação. O deslocamento social da ralé para a pobreza, da pobreza para a classe média, bem como da classe média para cima e para baixo tornou-se real. Isso produziu uma modificação estrutural do mal-estar. O mal-estar (Unbehagen) é uma noção intuitivamente acessível, mas difícil de conceitualizar. Todos nós já passamos por aquela situação na qual o que deveria ter ficado tácito e pressuposto vem à tona, revelando um desencontro de expectativas e rasgando o semblante de nossa representação social.  Algo análogo teria acontecido nesta nova configuração do mal-estar quando ficou claro que algo havia se rompido nos pactos que formaram a brasilidade até então. Há um descompasso entre a transformação e a nomeação da transformação. O mal-estar é a experiência desta zona de indeterminação, anomia e contingência que acompanha toda transformação, mas também todo fracasso transformativo, por isso seu afeto fundamental foi pensado por Freud como sendo a angústia e suas variações mais próximas: sentimento de culpa, desamparo e ansiedade expectante.

Temos então de um lado estes novos sintomas e do outro esta mutação do mal-estar. Entre eles é possível situar a transformação de nossas maneiras de sofrer. O sofrimento possui três características importantes, que explicam porque ele é uma espécie de ponte ou de caminho pelo qual particularizamos o mal-estar na forma de sintomas:
  1. Todo sofrimento é transitivista. Quando sofremos criamos identificações, nas quais o agente e o paciente da ação se indeterminam mutuamente. Exemplo: uma pessoa querida adoece. Ela sofre porque perde sua saúde, você sofre porque ela sofre, ela sofre porque você sofre porque ela sofre, e assim por diante envolvendo todos os que amam aquele que sofre. Vem daí a irresistível tentação, diante de uma história de sofrimento, de contar uma história pior, mais trágica, mais infeliz, mais terrível.
  2. O sofrimento depende de relações de reconhecimento. A experiência de sofrimento que é reconhecida, seja por aqueles que nos cercam, seja pelo Estado, é diferente do sofrimento sobre o qual paira o silêncio, a invisibilidade ou a indiferença. Há, portanto uma política do sofrimento que estabelece para cada comunidade qual demanda deve ser sancionada como legítima e qual deve ser reduzida ao que Freud chamava de sofrimento ordinário.
  3. O sofrimento se estrutura como uma narrativa. Ao contrário da dor, que permanece mais ou menos igual a si mesma, o sofrimento exprime-se em séries transformativas, ele se realiza por meio de um enredo, ele convoca personagens (como a vítima e o carrasco). A experiência de sofrimento envolve a transferência e a partilha de um saber sobre suas causas, motivos e razões. O sofrimento varia radicalmente em conformidade com o saber que se organiza em torno e por meio dele.
Para efeitos de simplificação poderia dizer que estas três condições do sofrimento se sintetizam no que os filósofos antigos chamavam de sentimento. O sentimento é uma categoria essencialmente social, que reúne e resolve contradições inerentes ao mal estar. Disse anteriormente que o mal-estar é sempre um fracasso de nomeação, e quando ele se nomeia perfeitamente o pior se enuncia no horizonte. Ora, uma índice de como o mal-estar se combina com os sintomas na experiência de reconhecimento narrativa e transitiva do sofrimento é justamente a noção de sentimento. Como dizia Lacan o sentimento, mente. Mas é esta mentira que nos permite localizar outro lugar onde estará o grão de verdade faltante.

O que caracteriza o Brasil dos anos 1984 em diante não é apenas uma redemocratização do país, a abertura gradual de sua economia ou a modernização de suas práticas institucionais. Mudamos nossa forma de sofrer, e, como argumentei acima, de reconhecer, partilhar e narrar nosso sofrimento. Isso poderia ser ilustrado pelo que aconteceu com o nosso cinema, particularmente no período de 1997 a 2007, com o chamado Cinema da Retomada. De repente quatro temas ganharam as telas: a traição e a vingança, a invasão de privacidade, a deriva errática de destinos e a “cosmética” da fome e da pobreza. Todas estas narrativas são convergentes com o nome que encontramos para o nosso novo mal-estar: a violência. Meu argumento aqui não é apenas constatativo. Ele aponta para o fato de que a violência está sobrecarregando e condensando muita coisa, talvez coisas demais: a corrupção, a diferença de classes, a tensão entre gêneros, a má distribuição de recursos, a precariedade institucional. Ou seja, o engodo está em pensar que tudo isso tem um nome só, violência, e que, portanto, ao “combatermos” este problema estamos resolvendo todo a resto que nele se comprime. Nada mais falso.

Há um antropólogo, chamado Clemens, que na década de 1930 fez uma pesquisa transcultural estudando como os diferentes povos e civilizações narram seu sofrimento, notadamente no contexto de interpretação social da experiência de adoecimento, e na interpretação narrativa de suas causas. Ele observou que nossa imaginação quanto às diferentes maneiras de sofrer é bastante curta e repetitiva. Nós não conseguimos sair de quatro hipóteses:
  1. Violação de um pacto. Ou seja, acreditamos que o sofrimento deriva do não cumprimento de um pacto, ou da sua não realização adequada ou da usurpação de seu sentido. Essa é a nossa teoria trivial de que se estamos em desgraça é porque é porque algo ou alguém está descumprindo a lei.  Como se se todos agissem em conformidade e adequação com a lei o sofrimento se extinguiria. Ora, no Brasil dos últimos vinte anos há uma maneira nova de pensar o pacto social, que inverte esta teoria. Surge uma percepção de que a lei pode ser usada de forma contrária ao espírito do pacto que a originou. Isso cria um sentimento social que domina uma de nossas novas narrativas de sofrimento, a saber, o ressentimento. O ressentido não é aquele que perdeu, mas aquele que acha que no fundo o jogo é injusto. Ele acha que o Outro tem muito mais poderes do que ele realmente tem, por isso está sempre apaixonado por sua própria inferioridade.
  2. A segunda narrativa clássica para dar forma de linguagem ao sofrimento é a narrativa da perda da alma. E aqui sofremos porque não conseguimos mais nos reconhecer no que fazemos ou em quem nos tornamos. Pensem naquelas pessoas que mudam de classe social ou de padrão de consumo e que de repente são percebidas como inautênticas, postiças, habitando um mundo de mera aparência, por exemplo, como os novos ricos (emergentes). Pensem também naqueles que estão corroídos por uma espécie de sentimento de inadequação existencial, incorrigível e persistente. Uma espécie de vergonha incurável, que não diz respeito ao que alguém faz, que pode ser progressivamente aperfeiçoado, mas que é uma vergonha de ser.
  3. A terceira forma de sofrer, que vem ganhando força entre nós, está referida à hipótese do objeto intrusivo. Ou seja, diante do sofrimento logo interpreto que há alguém a-mais em meu território que está desequilibrando o ambiente e tirando a suposta pureza e harmonia na qual vivíamos antes. Este é o caso tanto da vida murada, em forma de condomínio, que precisa defender-se permanentemente do outro percebido como perigoso, quando das erupções de preconceito e segregação inspirada na homofobia, na opressão contra as minorias sentidas como “perigosas”. Obviamente esta forma de sofrimento refere-se a uma patologia da inveja, ou seja, uma transformação do sentimento de que o outro, com sua própria modalidade de gozo, pode estar mais feliz do que eu, gera a resposta de negação. Uma recusa a reconhecer que isso que é sentido como uma espécie de ostentação ou de exibicionismo é uma espécie de inveja mal tratada em nós mesmos.
  4. A quarta maneira ascendente de sofrer no Brasil da Retomada apoia-se no que Clemens chamou de narrativa da perda da unidade do espírito, ou do sentimento de desregulação entre os sistemas que compõe nossa forma de vida. É o que os sociólogos chamam de anomia e que se expressa em sentimentos como o desamparo, a desorientação e no nosso estranhamento com relação ao tempo ou ao espaço que vivemos. Isso pode se dar por meio de sintomas como o sentimento de inadequação persistente em relação ao próprio corpo, à própria família, à própria vida laboral.
Podemos ver que estas novas formas de sofrimento apoiam-se em discursos antes fartamente disponíveis no Brasil e indissociáveis de nossa formação histórica. O Brasil do jeitinho e do “para os amigos tudo, para os inimigos a lei” deu nesta obsessão com a corrupção e com a purificação dos interesses. O Brasil da opressão de classe e dos latifúndios deu no ressentimento contra a recente mobilidade social. O Brasil da racialização engendrou o sofrimento com a insegurança e com o perigo das classes criminosas e com as patologias do consumo. Por fim, o Brasil da mistura, do sincretismo e da desordem pariu esta nova forma de desorientação que habita as vidas depressivas, sem ideais e sem rumo, que se tornam presas fáceis para novos discursos “ordenadores”.

Espero que essa breve decomposição permita iluminar porque a combinação entre ressentimento, vergonha, inveja e desamparo funde-se no ódio que tem dividido o país. A indignação que este transpira não é só porque enfrentamos problemas novos, mas também porque as novas formas de narrar e de partilhar o sofrimento ainda não foram propriamente reconhecidas, nem institucionalmente, nem em termos discursivos. Quando isso acontece é simples recuarmos para uma variação mais simples da angústia, que é o medo, e a partir dele pressupor no outro a violência que se está a praticar.

A dimensão estética da experiência caracteriza de modo cada vez mais intenso nossa apreciação dos laços de desejo, de amor e de gozo. Em Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros, proponho discutir algumas novas formas de sofrimento que psicoterapeutas e  psicanalistas estão enfrentando tendo em vista o sujeito estético e seu eventual apagamento na contemporaneidade. Nesse sentido, abordo as modalidades de tratamento espontâneo do sofrimento com especial atenção aos sentimentos de desamparo, de ressentimento, de inveja e de vergonha.

http://blogdaboitempo.com.br/2015/04/24/novas-formas-de-sofrer-no-brasil-da-retomada/

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Livro questiona 23 mitos do capitalismo


A crise financeira de 2008 expôs ao mundo as fraquezas de um ídolo que parecia indestrutível desde a queda do muro de Berlim: o capitalismo. 

O economista sul-coreano Ha-Joon Chang, da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, é um dos mais eminentes críticos das políticas neoliberais em voga desde a década de 80.

Autor dos livros Bad Samaritans: The Myth of Free Trade and the Secret History of Capitalism (em tradução livre, Maus Samaritanos: O mito do livre comércio e a história secreta do capitalismo) e 23 Things They Don't Tell You About Capitalism (em tradução livre, 23 coisas que não te dizem sobre o capitalismo), publicados recentemente, Chang disse à BBC que não é um anticapitalista.

"O capitalismo é o pior sistema, excluídos os outros", ironiza.

Chang disse que muitos dos críticos ou admiradores do sistema estão convencidos de que sabem o que é o capitalismo - mas estão enganados. O economista disse que o que tenta fazer em seus livros é mostrar que muitas das premissas usadas para definir o sistema são meias verdades ou puro mito.

"A idéia do livre mercado, por exemplo. O mercado livre não existe. Todo mercado tem regras e limites que restringem a liberdade de escolha."

Ele pergunta, por exemplo, por que um motorista de ônibus na Suécia ganha 50 vezes mais do que um em Nova Déli (na Índia).

"Porque o de Nova Déli não pode ir à Suécia, pois há limites ao fluxos migratórios."

Outro mito, ele explica, é aquele que propõe que quanto mais livre o mercado e quanto menos envolvimento do governo, maior a riqueza.

Segundo Chang, a coisa não funciona dessa forma. E para ilustrar sua tese, ele cita o caso da desregulamentação do sistema financeiro ocorrida desde a década de 80.

"Como se viu na crise financeira de 2008, (a desregulamentação) destruiu muita riqueza."


Desenvolvimento

Outro mito capitalista, na opinião de Chang, é a ideia do livre comércio. Países desenvolvidos dizem que as nações em desenvolvimento têm de permitir o livre fluxo de capitais e mercadorias para que possam se desenvolver.

Mas essa posição ignora a política adotada historicamente pelos próprios países desenvolvidos - ele diz.
"Tomemos o caso do Reino Unido, berço da Revolução Industrial. No século 17, Daniel Defoe, autor de Robinson Crusoé, além de empresário e espião, publicou uma história sobre o comércio inglês que mostra o protecionismo aplicado desde o século 15".

"Esta política segue até o século 19, quando o Reino Unido se tornou partidário do livre comércio porque já havia desenvolvido sua indústria e não precisava protegê-la."

Chang diz achar "curioso" que a Grã-Bretanha, ao abraçar a ideia do livre comércio, apaga sua própria história e prega algo que não praticou para se desenvolver, ou seja, exige que o resto do mundo adote o livre comércio.

Ainda ilustrando esse ponto, ele lembra que os Estados Unidos não adotaram a política de livre comércio defendida pelos britânicos.

"No século 19 e nas primeiras décadas do século 20, os EUA foram o país mais protecionista do mundo. E uma vez que desenvolveram plenamente sua indústria, exigiram do resto que se convertesse ao livre comércio."

Segundo Chang, a lista de países que usaram uma estratégia similar é grande: França, Japão, Alemanha, Finlândia, Itália, Noruega e Áustria, entre outros.

O economista cita ainda o caso de seu país natal, a Coreia do Sul.

Ele conta que nasceu em 1963, período em que a renda per capita na Coréia do Sul equivalia a menos do que a metade da de Gana.

Em 1977, a renda per capita havia subido para US$ 1 mil e o país se transformara em um grande exportador de automóveis, semicondutores e outros produtos de grande elaboração técnica.

"A Coreia do Sul aplicou todas as receitas que os países desenvolvidos dizem que não se deve aplicar: subsídios, protecionismo, planos estatais, intervencionismo...", enumera Chang.

"Não digo que essa política seja uma varinha mágica. O que digo é que se você estuda a realidade dos países em desenvolvimento no pós-guerra, a história oficial que prega o neoliberalismo, com o FMI e o Banco Mundial no comando, não condiz com a realidade."

Para Chang, o milagre japonês é um exemplo claro, assim como os casos da China e da Coreia do Sul.

Globalização

A idéia da inevitabilidade da globalização como resultado do advento da internet é, segundo Chang, mais um dos mitos do capitalismo.

O economista diz que a invenção do telégrafo, no século 19, produziu uma revolução nas comunicações muito maior do que a internet.

"Antes do telégrafo, demorava-se duas semanas para se transmitir uma mensagem transatlântica por barco. Com o telégrafo, isso foi reduzido para sete minutos."

"E se compararmos ambas as épocas, o mundo do barco a vapor e do telégrafo estava muito mais globalizado do que o dos anos 40, 50 e 60 no século 20, apesar da enorme diferença tecnológica."

Chang diz que as transações financeiras são feitas em segundos, mas lembra que elas só são possíveis porque os mercados financeiros foram desregulados.

"Recorrer à tecnologia é uma maneira de negar que, na realidade, trata-se de uma decisão política."

Veja a lista de afirmações do livro:

1. Não existe livre mercado.
2. Companhias não deveriam ser administradas segundo os interesses de seus donos.
3. A maioria das pessoas nos países ricos ganha mais do que deveria.
4. A máquina de lavar mudou mais o mundo do que a internet.
5. Espere o pior das pessoas e você receberá o pior.
6. Maior estabilidade macroeconômica não tornou a economia mundial mais estável.
7. Políticas de livre mercado raramente tornam países pobres mais ricos.
8. Capital tem nacionalidade.
9. Não vivemos na era pós-industrial.
10. Os Estados Unidos não têm o melhor padrão de vida do mundo.
11. A África não está destinada ao subdesenvolvimento.
12. O governo pode escolher os ganhadores.
13. Tornar pessoas ricas mais ricas não enriquece o restante das pessoas.
14. Os salários de executivos americanos são altos demais.
15. As pessoas nos países pobres são mais empreendedoras do que as dos países ricos.
16. Não somos espertos o suficiente para deixar as coisas a cargo do mercado.
17. Mais educação, por si só, não vai tornar um país mais rico.
18. O que é bom para a General Motors não é necessariamente bom para os Estados Unidos.
19. Apesar da queda do comunismo, ainda estamos vivendo em economias planejadas.
20. Igualdade de oportunidades é desigual.
21. Um governo grande torna as pessoas mais - e não menos - abertas às mudanças.
22. Mercados financeiros precisam se tornar menos, não mais, eficientes.
23. Boas políticas econômicas não requerem bons economistas.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

A Guerra Fria do MP gaúcho

GUERNICA (PICASSO)

Por Maria Inês Nassif 26/06/2008 às 14:03
(JORNAL VALOR ECONÔMICO)

Justiça cassou títulos eleitorais

Seria uma caricatura, não fosse sério. Um relatório secreto do Conselho Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul decreta guerra ao MST, prega dissolver o movimento a bem da "segurança nacional" e define linhas de ataque ao movimento. A ata secreta de reunião no dia 3 de dezembro do ano passado revela que o Conselho constituiu uma força-tarefa para "promover uma ação civil pública com vistas à dissolução do MST e a declaração de sua ilegalidade". A diretriz, que está sendo executada de forma articulada com a Justiça e a Brigada Militar, é a de acuar o movimento em várias frentes: proibir marchas e deslocamentos em massa dos sem terra; investigar os integrantes de acampamentos e dirigentes quanto ao uso de verbas públicas; intervir nas escolas do MST; impedir a presença de crianças e adolescentes nos acampamentos; nos assentamentos, comprovar desvios de finalidade da terra; promover investigação eleitoral "nas localidades em que se situam os acampamentos controlados pelo MST, examinando-se a existência de condutas tendentes ao desequilíbrio deliberado da situação eleitoral" e atuar para cancelar os títulos de eleitor dos assentados.
A decisão teria de ficar sob sigilo por 10 anos, mas veio a público quando foi anexada como prova de uma denúncia feita à Justiça pelo MPE contra acampados do MST em duas áreas cedidas por proprietários na proximidade da Fazenda Coqueiros. A inicial da ação esclarece que os promotores tomam essa iniciativa baseados na diretriz do Conselho. Também foi anexado um relatório do Serviço Secreto da Brigada Militar (PM2). A ofensiva do Ministério Público, a pronta anuência de juízes e uma rápida mobilização de efetivos da Brigada Militar montam o cenário de uma Guerra Fria particular: o MPE aciona a Justiça usando um discurso ideológico; o juiz decide em favor da preleção dos promotores; a Brigada Militar responde prontamente às ordens judiciais.
As sentenças obtidas até agora são um cerco político ao movimento: uma proíbe a manifestação política de acampados em terra do Incra; outra, de um juiz eleitoral, suspende os títulos de eleitores de acampados em Coqueiros; uma ação do MPE relativa à ocupação do horto florestal da Fazenda Barba Negra denuncia 37 integrantes da Via Campesina por dano, furto, cárcere privado, formação de quadrilha e lavagem dinheiro, inclusive pessoas que não estavam no local. Um deles o líder nacional do MST, João Pedro Stédile; as escolas dos assentamentos estão sendo desativadas. Em janeiro, uma pronta sentença do juiz, favorável a ação proposta pelo MPE; a pretexto de investigação de um furto de uma máquina fotográfica, um anel e R$ 200, permitiu à polícia identificar os 1200 participantes do 24 Encontro Estadual do MST. É esse o quadro: a ação articulada e rápida do MPE, da Justiça e da polícia gaúchas está cassando direitos civis e políticos de cidadãos brasileiros. Inclusive o direito ao voto.
O conteúdo ideológico dessa ofensiva está claramente estampado nos autos de processos e em documentos judiciais. A linguagem é tão contundentemente ideológica que é difícil encarar o MPE e a Justiça do Rio Grande do Sul como partes neutras de um conflito. Na inicial da ação civil pública apresentada pelos promotores Luís Felipe de Aguiar Tesheiner e Benhur Biacon Júnior, pedindo a desocupação dos dois assentamentos do MST próximos à Fazenda Coqueiros, eles rezam submissão à orientação do Conselho Superior de "dissolver" o MST e tecem um longo arrazoado sobre subversão. Definem o movimento como "uma organização revolucionária que faz da prática criminosa um meio para desestabilizar a ordem vigente"; asseveram que ?já existem regiões do Brasil dominadas por grupos rebeldes?; apontam como indício de subversão "a doação de recursos por entidades estrangeiras, como a organização Cáritas, mantida pela Igreja Católica". A peça ideológica informa que outros dois promotores estaduais fizeram um "notável serviço de inteligência" no MST, e essa arapongagem concluiu que o movimento social tinha uma ?estratégia confrontacional?, que seria comprovada pelo material apreendido em acampamentos: livros de Paulo Freire, Florestan Fernandes, José Martí, Che Guevara e do pedagogo russo Anton Marenko. De acordo com os promotores, é prova de intenção de atentar contra a segurança o uso de frases como "a construção de uma nova sociedade", "poder popular" e "sufocando com força nossos opressores". Afirmam também que o MST usa de "fraseologia agressiva, abertamente inspirada em slogans dos países do antigo bloco soviético".
Como verdades, são citados dois relatórios do Serviço Secreto da Brigada Militar (PM2). Num deles, o coronel Waldir Reis Cerutti garante que o MST é financiado pelas Farc. "Análises do nosso sistema de inteligência permitem supor que o MST esteja em plena fase executiva de um arrojado plano estratégico, formulado a partir de tal "convênio" (com a Farc), que inclui o domínio de um território em que o governo manda nada ou quase nada, e o MST e a Via Campesina, tudo ou quase tudo". A inicial da ação do MPE não cita, todavia, conclusão de inquérito da Polícia Federal, que não encontrou nenhum indício de ligação do MST ou da Via Campesina do Estado com o movimento guerrilheiro colombiano.
O MPE, a justiça e o governo gaúcho (com sua polícia) atiraram-se numa marcha da insensatez, usando perigosamente instituições democráticas para restringir o direito de associação e de manifestação política e o direito ao voto. Esse é um preço que o MST gaúcho pode pagar agora, mas o país todo paga também no futuro. Incentivar a histeria da direita com discurso de fazer inveja aos militares que comandaram o país entre 1964 e 1985 é um caminho a ser evitado. Pode parecer simplesmente ridículo estimular ofensivas contra movimentos sociais com discursos anti-subversivos. É ridículo, de fato, mas não só isso: é igualmente perigoso.

Maria Inês Nassif é editora de Opinião.
Escreve às quintas-feiras
E-mail maria.inesnassif@valor.com.br