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sábado, 27 de agosto de 2022

A HUMANIDADE DO FUTURO (OU O FUTURO DA HUMANIDADE...)

 

 

De Alpha a Zap

 Por Adriano Oliveira, para Canal Meio (https://www.canalmeio.com.br/)

De cabeça abaixada, os olhos brilham em frente a uma tela acariciada por dedos que repetem o mesmo movimento de arrastar, de cima para baixo, de lado a lado, em movimentos pinça para o zoom, a cada poucos segundos. O almoço chega. Nem é preciso olhar para o prato. A não ser para fazer uma foto. A rotina segue, agora, apenas com uma das mãos, enquanto a outra desempenha a mecânica tarefa de segurar o talher para a displicente alimentação. E assim passam-se minutos de um mergulho em interações virtuais — e virtualmente zero das reais. Essa cena pode descrever o almoço de muitos de nós em um dia qualquer. Mas também narra o cotidiano de crianças e adolescentes.

A geração Alpha, os nascidos a partir de 2010, é a primeira 100% digital. Embora a geração anterior, a Z, já tenha passado parte da infância acessando a internet e ostentando seus primeiros smartphones, os Alphas nasceram em um mundo transformado e dominado pelas inovações tecnológicas, que mudaram radicalmente as relações sociais. A sociedade digital não mais depende de mídias físicas para entretenimento ou informação: consome conteúdo escolhendo o que ver, quando e como quiser. Essa nova geração simplesmente desconhece o analógico.

O ser humano é um animal relacional. A forma como nos desenvolvemos é na conexão com os outros. Aprendemos a falar ao ouvir nossos pais, avós, tios e tias, pessoas do nosso ciclo. Definimos nossas identidades na troca. Nos exemplos. Conforme reduzimos os componentes familiares e o trabalho ultrapassa os limites antes mais claros entre vida pessoal e profissional, a nova leva geracional se desenvolve mirando outros espelhos. Pais e filhos dividem a atenção entre si com os dispositivos eletrônicos. A criança Alpha se acostumou a disputar a atenção dos adultos com as telas. E também a se entreter e perceber o mundo com essa intermediação.

É um assombro observar a facilidade com que os Alpha operam tablets e smartphones, transitando com desenvoltura por games, streamings, diferentes aplicativos e vídeos do YouTube, TikTok e Instagram. A sensação inicial de quem convive com essas criaturas digitais, mesmo os mais novinhos, é de que essa é a geração mais inteligente que já existiu. E há alguma dose de verdade nessa percepção. Ao menos, pode-se antever como uma das características da geração Alpha o fato de que ela vai ser a mais bem formada da história. “Eles são considerados mais inteligentes porque têm uma capacidade de observar o ambiente, de entender o que está acontecendo e transformar isso em conhecimento [de maneira] mais habilidosa do que as gerações anteriores”, explica Maysa Fagundes, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP com ênfase no estudo da geração Alpha. “Então, conseguem transformar o aprendizado em conhecimento com um pouco mais de facilidade.”

Parte dessa facilidade é inerente à própria visão de mundo desse tempo. Um mundo absolutamente sem fronteiras, tanto pela globalização quanto pela integração tecnológica. A vida em rede facilita a troca de experiências entre pessoas em polos opostos do planeta. Os Alphas se adaptaram a essa realidade das últimas duas décadas. É um universo tão novo que até o conceito de tempo e espaço foi alterado. Os Alphas, mesmo os não inteiramente alfabetizados, sabem trocar mensagens com parentes e amigos da escola. E ampliam seu entorno para amizades fora do círculo de convivência, em conversas virtuais esporádicas. Se para a geração X, dos nascidos entre 1965 e 1980, o contato físico e os papos “olho no olho” — ou ao menos por telefone — eram mais importantes, para os Alphas os encontros podem ser espaçados. “O conceito de tempo para eles fica diferente. Não precisa ser ao mesmo tempo. A gente pode ter uma conversa com uma diferença de uma semana e se sentir super próximo”, explica Fagundes.

Vale aqui abrir uma discussão. A teoria geracional criada pelas ciências humanas busca entender o comportamento de uma sociedade nascida em um mesmo período ou contexto histórico. Foi assim que os Baby Boomers, nascidos entre as décadas de 1940 e 1960, começaram a ser estudados. Foi o momento da explosão demográfica, quando os homens voltavam para casa após o fim da Segunda Guerra Mundial. Mas definir gerações, enquadrá-las, é, necessariamente, fazer um recorte. E, assim, evidente, deixar nuances de lado. Não raro, pode-se cair na armadilha dos estereótipos. Numa reportagem da The Atlantic sobre o assunto, Dan Woodman, professor de sociologia da Universidade de Melbourne que estuda rótulos geracionais, crava: "Provavelmente ficaríamos irritados se fizéssemos com gênero ou raça o que ainda conseguimos fazer com gerações”. Por outro lado, rotular uma geração ajuda a descrevê-la e pode ajudar a compreendê-la. “Uma das coisas que fazemos com rótulos geracionais é fazer afirmações sobre o quão diferente essa turma é – eles são tão diferentes, quase estranhos em suas atitudes, que você precisa pagar alguns especialistas para entrar e explicá-los para você.” E paga-se muito bem, ele conta. Neil Howe, um dos criadores do termo Millenials, há cerca de 30 anos, fez uma lucrativa carreira em consultoria, palestrando e escrevendo sobre gerações.

De qualquer forma, é com esses recortes que nos acostumamos a tentar avaliar e prever comportamentos. O próprio Woodman reflete, sobre os Alphas, que “eles ainda são crianças”. “Muitas coisas que atribuímos a uma geração estão na maneira como ela começa a pensar sobre política, na maneira como se envolve com a cultura e [se] é uma fonte de novos movimentos sociais.” Mas compreende-se mais a fundo uma geração, de forma mais substancial, quando eles entram na adolescência. Depois dos Baby Boomers, sociólogos, antropólogos, cientistas sociais e outros estudiosos das humanidades buscaram compreender como seus filhos se diferenciavam de seus antecessores. Robert Capa, fundador da agência Magnum, cunhou o termo geração X, por não encontrar uma definição específica para os nascidos no pós-guerra. Mas a expressão se popularizou após o lançamento da banda Generation X, criada pelo cantor inglês Billy Idol e o lançamento do livro Geração X: contos para uma cultura acelerada, de Douglas Coupland.

As gerações seguintes sempre foram definidas por letras, como a Y, entre 1980 a 1995 (que também ficou conhecida como Millenial), e a Z, de 1995 a 2010. Esgotadas as letras do alfabeto romano, o sociólogo australiano Mark McCrindle, que também tem uma agência de consultoria, fez, em 2008, uma pesquisa — online, claro. Vários nomes associados à tecnologia surgiram ali, como os “Onliners”, “Generation Surf” ou “Technos”. Outros atribuíam à nova geração o peso de redimir os pecados das anteriores, como “Regeneração”, “Geração Esperança”, os “Salvadores”, “Geração Y-não”. McCrindle, porém, optou por adotar um novo alfabeto. Para os bebês que nasceram a partir de 2010, chamou-os de geração Alpha, a primeira letra grega.

Eu, robô

Voltemos a ela. Com uma exposição tão ostensiva às telas, o comportamento dos Alphas também é moldado pelo conteúdo consumido nas plataformas digitais. Os referenciais, dos ideais de beleza do corpo de mulheres e homens até o de seus adereços, vêm com o filtro da publicidade e dos influenciadores. “Estamos falando sobre todo um ideal de existência física, que é manifestado de uma forma totalmente editada nas redes”, explica Pedro Almeida, mestre em antropologia pela UFBA e gestor de inovação. Ele ressalta que os conteúdos nesses espaços, principalmente dos perfis profissionais, são editados para mostrar a vida sempre por um ângulo positivo. Nas raras vezes em que o aspecto negativo é abordado, as mensagens são pensadas de maneira a favorecer a personagem no vídeo. É uma realidade fantasiosa.

Com isso, claro, vem uma crise na construção da autoimagem. A referência para o jovem, que antes eram os pais e os professores, se desloca para influenciadores digitais e artistas. Não que antes os astros de Hollywood não assumissem esse lugar. Mas a convivência entre fãs e ídolos estava restrita às páginas de jornais e revistas. Agora, todos têm perfis nas principais redes sociais, compartilham seu cotidiano, muitas vezes distorcido pelo glamour e a ostentação. São objetos de desejo ao mesmo tempo acessíveis e inalcançáveis. O pré-adolescente, sujeito a uma esperada crise de identidade que vem quando ele não se reconhece mais como igual aos indivíduos de seu círculo familiar, vai procurar sua “tribo” nesse ambiente. Um mundo artificial onde os pratos são perfeitos, as pessoas são lindas, saudáveis, e vivem em constantes viagens a locais deslumbrantes. Na terra onde a grama do perfil alheio é sempre mais verde e florida. “É uma crise da representatividade, da referência que antes estava atribuída a uma paternidade, a um professorado e hoje isso está nas autoridades digitais”, acrescenta Almeida.

Somam-se a elas os buscadores, como o Google. As dúvidas e os medos dessa fase são levadas a uma ferramenta que não oferece necessariamente as respostas, mas apenas interpretações de um algoritmo sobre o que seria o resultado adequado para as pesquisas. Encontrar material confiável online não é trivial, principalmente para os que acabaram de desembarcar ali e ainda não entendem os perigos da desinformação e das ciladas cibernéticas. A abundância de informação na rede tem evidentes vantagens. Pode ser uma grande aliada da curiosidade das crianças. Mas a quantidade não quer dizer que haja qualidade no consumo — tampouco maturidade, intelectual ou emocional, para lidar com o conteúdo que recebem. “Isso me preocupa, porque agora as crianças buscam essas referências na internet e se validam por falas dessas autoridades digitais. Mas para se construir como autoridade digital, principalmente para uma criança, você não precisa ter muito conhecimento, bagagem. Precisa apenas de um atrativo lúdico”, comenta o antropólogo.

Sempre alerta

Os efeitos dessa vida em tela vão além dos comportamentais. Sempre envoltos em estímulos novas informações, os Alphas estão em permanente estado de alerta. "Com isso, nós temos algumas questões de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade”, explica a psicóloga Maysa Fagundes. “Mas também a atenção deles é o tempo todo desviada porque há um letreiro, uma música, ou um vídeo, que é curto.” Pesquisadores da Universidade do Sul da Califórnia monitoraram 2,6 mil adolescentes por dois anos e descobriram que jovens que fazem o uso excessivo de telas como celulares, tablets e outras mídias têm duas vezes mais chances de apresentarem sintomas de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) que os demais.

Muito tempo com celular na mão, pouco tempo para descanso da mente. As muitas horas de uso ao longo da noite têm reduzido a qualidade do sono dos jovens, impactando diretamente no aprendizado e no rendimento escolar. O professor de pediatria de Harvard, Michael Rich, conduz estudos e atendimento clínico desse público em Boston. Ele explica que o cérebro humano, em sua fase de crescimento, está constantemente construindo conexões neurais. Ao mesmo tempo, vai eliminado aquelas menos usadas, num processo de limpeza. Acontece que o uso de mídias digitais desempenha um papel ativo nesse processo, ao oferecer, nas telas, uma estimulação “empobrecida” em comparação com a realidade. Ele defende que o mix entre experiências online e offline é essencial. Mais ainda, o tédio. “O tédio é o espaço em que a criatividade e a imaginação acontecem”, explica Rich.

Mas separar uma criança ou um adolescente de seu gadget não é simples. Isso porque eles ativam uma área extremamente prazerosa e gratificante. “Praticamente todos os jogos e mídias sociais funcionam no que é chamado de sistema de recompensa variável, que é exatamente o que você ganha quando vai ao Mohegan Sun [cassino nos Estados Unidos] e puxa uma alavanca em uma máquina caça-níqueis. Equilibra a esperança de que você vai se tornar grande com um pouco de frustração e, ao contrário da máquina caça-níqueis, um senso de que basta melhorar suas habilidades para chegar lá.”

O futuro

Como o sociólogo Dan Woodman, de Melbourne, explica, os Alphas ainda são muito jovens para que se façam previsões de sua vida adulta. Mas dá para se imaginar os desafios. Além de desenvolver algum nível de controle sobre o uso dos dispositivos e redes sociais, a favor da própria saúde física e mental, será necessário que os Alphas se prepararem para as constantes transformações tecnológicas a que já estão sujeitos. Segundo Pedro Almeida, “existe uma possibilidade muito grande de termos uma crise no mercado de trabalho em nível global, potencializada pela aceleração da automação”.

As escolas já começaram a buscar um novo modelo de ensino, mais focado no desenvolvimento tecnológico e nas habilidades que cada indivíduo apresenta. A reforma do Ensino Médio permite que os alunos escolham a área do conhecimento em que queiram focar. Mas ainda há um longo caminho a ser percorrido. Com a possibilidade de extinção de profissões existentes e a criação de novas áreas de trabalho, muitos desses jovens estão em formação para atividades que nem mesmo foram criadas. “Essa criança, quando terminar o ensino médio, entrar num curso superior, finalizar, entrar no mercado de trabalho... é uma escala de tempo em que tudo pode ter mudado. Será que estamos dando uma educação para essa criança viver o que ela vai necessitar daqui a pouco?”, questiona Almeida. “Se não estamos preparando para o que já temos como pontos essenciais da vida de hoje, imagine daqui a 15, 20 anos.”

Um ponto importante para a nova leva de profissionais é a diferença de visão de carreira no mercado de trabalho. “Eles têm muita dificuldade hoje no mercado porque a maneira como ele está formatado prevê que as carreiras tenham uma continuidade. Você precisa de um tempo numa empresa para crescer, se desenvolver. E eles entendem que o aprender e o se desenvolver é experiência. Então, eu venho, fico nessa empresa seis meses, já aprendi como é que faz, posso sair pra uma outra e aprender outra forma de fazer”, explica Maysa Fagundes. Segundo a psicóloga, um outro ponto de conflito é a falta de foco em uma única área de ação. “É um grande desafio para eles conseguirem fazer uma escolha de carreira, de profissão. Porque para eles, a vida não tem mais isso de você ser uma coisa só a vida inteira. Você pode ser tudo ao mesmo tempo e parar e começar de novo, toda hora.” É aquela alteração no conceito espaço e tempo de que a geração Alpha é ao mesmo tempo vítima e protagonista. Mas tudo indica que essa também é a geração mais preparada para inventar um futuro — e um mercado — em que ela se encaixe perfeitamente.

Fonte da Imagem: Internet.



domingo, 28 de março de 2021

UMA CRÔNICA CIVILIZADA

 




Antes de mais nada, devo ressaltar que esta história ocorre em um bairro considerado pelo senso comum como sendo de “classe média” ou “classe média alta” do Município de Porto Alegre, RS.

Episódio 1

Por algum motivo morador ou moradores de um apartamento situado em um prédio alto e bonito, colocam em seu aparelho de som o Hino Nacional Brasileiro. O aparelho de som parece ser de excelente qualidade, pois o som chega até meu apartamento, em outro prédio, não só alto e claro como fazendo tremer os vidros da janela. Não se sabe também por qual motivo uma voz masculina, após a execução do Hino Nacional, começou a emitir brados na janela convidando a vizinhança a fazer turismo em Cuba, juntamente com palavreado que não vou citar aqui para não ser objeto de censura.

 

Episódio 2

Algum tempo depois, o referido cidadão decide realizar uma festinha iniciando em torno das 3 horas da madrugada. Realmente o aparelho de som é de primeira qualidade. O som das músicas escolhidas chegou no meu apartamento, que se localiza em outro prédio, com nitidez impressionante, mesmo com as janelas fechadas. Atualizei compulsoriamente meu repertorio de pagode e de música pop da moda. 



Episódio 3

Passados alguns dias, as mesmas pessoas decidem fazer nova festa, também iniciando na madrugada. Desta vez o som do aparelho sonoro estava com volume baixo. Deduzi que os demais moradores do prédio enviaram recomendação formal a respeito. Mas nossos festeiros não se apertaram. A música era cantada com volume de voz invejável. Digo A MÚSICA, pois a mesma música era repetida constantemente, em sequência. Eu não conhecia, mas aprendi o início do refrão: “deixa acontecer naturalmente, eu não quero ver você chorar...”. De qualquer forma, consegui dar uma cochilada. Acordei às 05:45 horas com uma voz solitária, pastosa e arrastada, bradando: “deixa acontecer naturalmente, etc”.


O processo civilizador da humanidade parece estar longe de chegar a um patamar satisfatório, não é verdade?

 

Imagem:  Hieronymus Bosch

domingo, 21 de maio de 2017

A IGNORÂNCIA É CONFORTÁVEL

Fonte: http://www.universoracionalista.org/cosmos-e-a-romantizacao-da-ciencia/

As pessoas optam por acreditar no que querem porque não querem admitir que são ignorantes.

Quanto mais aprendemos, mais entendemos que sabemos pouco.

As pessoas que sabem pouco acreditam que sabem tudo.

A rebelião contra o pensamento científico é muito perigosa...

Carlo Rovelli 
(Verona, 3 de maio de 1956. Físico e cosmologista).


quinta-feira, 20 de abril de 2017

ESCOLA SEM PINTO


Como a tentativa de censura a um livro didático no norte do país mostra que, no Brasil atual, a ignorância não é apenas uma tragédia nacional, mas um instrumento político usado por milícias de ódio

 

Por Eliane Brum, para








Estudantes de uma escola pública no Rio de Janeiro.
Estudantes de uma escola pública no Rio de Janeiro. AP





No final de março, um grupo de pais de uma escola pública estadual da cidade de Ji-Paraná, no norte do Brasil, entregou um abaixo-assinado ao Ministério Público de Rondônia. Eles exigiam a retirada da sala de aula de um livro de ciências cujo conteúdo de educação sexual seria “impróprio” para alunos da oitava série do ensino fundamental. O desenho de um pênis ereto, usada pelas autoras da obra didática para explicar o funcionamento do órgão, é um dos principais motivos da tentativa de censura. O pinto duro não deveria estar lá.

Neste pequeno grande acontecimento há muitas tragédias. E todas elas contam de nós. Há quem ache bizarro. Eu só consigo achar triste. Seria mais fácil se este fosse um caso isolado, numa escola pública do interior de Rondônia, no norte do Brasil, lugar distante para a maioria. Seria mais fácil, mas falso. É preciso prestar muita atenção ao que está acontecendo no Brasil: incitados pelos novos inquisidores, cada vez é maior o número de fogueiras onde queimam livros, reputações e, principalmente, direitos.

1) Por que querem castrar um livro didático?

Uma das mães afirma ao portal G1, da Globo: “Neste livro, eles incitam a criança, que está no início da adolescência, a descobrir a vida sexual. Também vulgarizam a virgindade da criança, dizendo que ela pode sofrer bullying e que, se ela perder a virgindade, pode ser melhor”.
O coordenador regional de educação, José Antônio de Medeiros, diz ao portal UOL: "Este livro traz uma abordagem sobre sexualidade e tem ilustrações, de certo modo, até um pouco agressivas. Ficou muito explícito as simulações de carícias, de estímulo sexual, e até umas imagens demonstrando penetração, mostrando o órgão sexual masculino e feminino...”.
O vereador de Ji-Paraná, Johny Paixão (PRB), afirmou à TV Globo que os temas do livro podem incitar à prática não consensual do sexo. “Meu compromisso com eles (pais) é lutar com todas as forças possíveis para que nós venhamos a retirar esse livro da sala de aula, porque ele é tendencioso. As imagens são tendenciosas. Elas afloram a sexualidade. Por que vou aflorar a sexualidade se as crianças não podem fazer sexo?”.
Dito assim, a impressão de quem lê as matérias e assiste às notícias sobre a “polêmica” é de que o livro Ciências 8o ano – Ensino Fundamental II da coleção Projeto Apoema (Editora do Brasil) é uma espécie de Kama Sutra escolar.

2) Mas o que diz o livro ameaçado de fogueira pelos novos inquisidores?

Tenho um hábito cada vez mais raro: antes de opinar sobre um livro ou um texto, eu o leio. Esta frase pode ser interpretada como ironia. Gostaria que fosse. Quero deixar explícito que não é. Infelizmente.
A seguir, um trecho do capítulo 5, intitulado “Adolescência”, do livro indicado para adolescentes de 13 anos ou mais:
“Nos últimos 30 anos, tem-se falado muito sobre sexualidade. Propuseram-se diversas teorias, realizaram-se vários estudos, e o tema é até hoje explorado nos jornais, nas revistas e nos programas de televisão. No entanto, muitas vezes, há uma idealização da vida sexual, dando a falsa impressão de que existe uma fórmula única de viver plenamente a sexualidade, um padrão sexual, um modelo rígido ao qual todas as pessoas devem se adaptar (...). Cada um pode viver muito bem, e plenamente, do seu jeito e conforme sua orientação. O importante é fazê-lo com responsabilidade e ter direito à informação e espaço para expressar suas opiniões”.
Num outro ponto, o livro reproduz a fala de um médico ginecologista: “É preciso lembrar que o sexo é bom quando é bom para os dois”. E segue: “O médico explica que ser virgem não significa de maneira alguma estar fora do mundo atual, mas estar em um momento de reflexão: ‘A pessoa virgem ainda não se sente preparada para enfrentar a relação sexual com a maturidade que ela merece. E isso independe de idade’”.


Em nenhuma das ilustrações os homens são eunucos: deveriam ser?
Há ilustrações de um homem na fase infantil, adolescente e adulta. Nenhum deles é eunuco. Deveriam ser? Se fossem, haveria um problema, já que homens castrados e com pênis decepados, na nossa sociedade, são vítimas de violência. Há também o desenho de um pênis “flácido” e de um pênis “em ereção”, para ilustrar a explicação sobre anatomia e aspectos biológicos: “O tamanho do pênis varia entre os homens e não tem relação biológica com fertilidade nem com potência sexual”.
Outra reclamação se refere a uma série de ilustrações que ensinam as mulheres a realizarem o autoexame de mamas, como um ato de prevenção ao câncer. E, sim, nas imagens a mulher tem seios. Se não tivesse, haveria um problema de informação, já que mulheres têm peitos, dos mais diversos formatos e tamanhos, mas decididamente peitos. Sem contar que seria difícil ensinar a fazer o toque, no exame preventivo, sem que houvesse um seio no desenho. Como detectar um caroço ou uma alteração suspeita num seio sem um seio? E haveria ainda mais uma complicação: mulheres mastectomizadas, na maioria das vezes, perderam os seios devido ao desenvolvimento de tumores, exatamente a doença que este capítulo do livro pretender colaborar para prevenir.
Reproduzi aqui os principais pontos atacados. Mas o livro ainda não foi proibido e pode ser lido por todos, para que tirem suas próprias conclusões.







Uma das páginas que gerou o abaixo-assinado.
Uma das páginas que gerou o abaixo-assinado.


 

3) Como ler a tentativa de censura?

Minha primeira hipótese é a de que as pessoas que atacaram o livro não leram o livro. Lembrando que ler é bem diferente de apenas passar os olhos. A diferença entre o que é dito sobre este capítulo do livro e o que está de fato escrito no livro é enorme, como se pode ver nos exemplos citados. Em alguns momentos, o que dizem que o livro disse é exatamente o oposto do que o livro de fato diz. Como é possível?
Aqui, estamos diante de duas tragédias contemporâneas, explícitas nas redes sociais da internet. A primeira delas é que as pessoas não leem, mas mesmo assim jogam o texto na fogueira. Ou leem apenas o enunciado e dão uma olhada nas imagens e “queimam” o livro. E, como ler exige tempo e atenção, mas reproduzir o discurso de ódio leva apenas um segundo, em pouco tempo as chamas já incineraram o alvo do ataque. Isso vale para livros, como é o caso, vale para reputações. Assim, livros que exigiram anos de pesquisa de seus autores, como é o caso deste, ou reputações construídas ao longo de uma vida inteira, são destruídas sem que uma parte dos linchadores perceba a violência e a amplidão do seu ato.
A segunda tragédia é a da própria educação. A internet escancarou uma realidade conhecida, mas cujas proporções não tinham ficado tão claras até então. Muitos leem de fato o texto, o livro, mas não conseguem interpretá-lo. Qualquer frase um pouco mais elaborada ou mais longa ou menos direta se torna um enigma. Ironias não são compreendidas, metáforas são decodificadas como literalidades. Pessoas têm alcançado a universidade sem conseguir interpretar um texto.
É possível que parte destes pais – parte – tenha lido o capítulo do livro e não tenha conseguido interpretá-lo, adotando assim a versão que estava disponível. E se a versão que estava disponível era a da necessidade de proteger os filhos do mal, ali representado pelo livro, podemos supor que pode ter se tornado fácil aderir ao protesto. Aderir sem uma reflexão maior que poderia, inclusive, ter sido proporcionada pela escola.


Quando alguém passa pelo sistema educacional e chega à vida adulta sem condições de interpretar o que lê esta pessoa é também uma vítima
É fácil culpar os pais e apontar uma suposta ignorância. E, vale a pena deixar claro, uso ignorância neste texto no sentido daquele que ignora um fato ou informação, daquele que não teve ou não tem acesso ao conhecimento. Como parte de uma sociedade, somos todos responsáveis pela tragédia educacional. É muito triste que as pessoas não consigam ler ou interpretar um texto ou por falta de acesso à escola ou porque a escola que deveria ensiná-lo não foi capaz de fazê-lo.
Quando alguém passa pelo sistema educacional e chega à vida adulta sem condições de interpretar o que lê isso representa uma traição àquela pessoa, com graves consequências para a sua vida e para a vida da comunidade. Assim, se parte destes pais são algozes de um livro, são também vítimas de um sistema educacional em que, com poucas exceções, a escola pública tem prédios precários e cheios de problemas, a maioria dos professores é mal paga e uma parcela deles é mal preparada, uma escola pública onde falta até mesmo o básico. E, ainda assim, contra tudo, muitos profissionais lutam para criar espaços de qualidade e educar a população.
É importante lembrar ainda que os pais e mães deste abaixo-assinado fizeram um percurso. Eles levaram suas questões até a autoridade na área da educação e buscaram a Câmara de Vereadores. O coordenador regional de educação e o vereador que assumiu a “causa” têm uma responsabilidade pública e devem responder publicamente por ela. Como se vê nas matérias, seguiram o caminho do ataque fácil. Do representante da educação, em especial, seria legítimo esperar uma abordagem mais responsável.
Contradições não devem ser contornadas, mas acolhidas e enfrentadas. Este episódio, surgido a partir do susto de uma mãe, poderia ter se tornado uma oportunidade de encontro, de diálogo e de reflexão coletiva, inclusive dentro da escola. Mas, por irresponsabilidades variadas, da qual não escapa a imprensa, assumiu de imediato contornos de fogueira. É assim que os cada vez mais escassos espaços de debate estão sendo interditados neste país.

 

4) O que o pinto duro tem a ver com isso?

Não é possível ignorar o tema que alimentou a fogueira. Fosse outro, talvez a leitura tivesse se mostrado mais acessível e a interpretação do texto não sofresse tanta interdição. Mas era de educação sexual que se tratava. E de um mito (ou seria tabu?) muito difícil de ser desmontado, que é o da criança assexuada. Ele aparece em todas as falas reproduzidas pelas matérias da imprensa. A ideia de uma criança sem sexualidade se confunde com a própria invenção da infância na modernidade, já que em outros períodos históricos pessoas desta faixa etária não eram vistas desta maneira.
Os principais pensadores da infância derrubam esse mito. Mas ele persiste. E aparece das mais variadas formas, muitas delas inconscientes. Se alguém observar as matérias de imprensa, por exemplo, vai descobrir frases como esta: “Homens, mulheres e crianças...”. Ou seja, as crianças não são homens e mulheres, mas seres assexuados. Eu mesma cometia esse equívoco, sem perceber o que fazia, até ser alertada por uma amiga. Passei a usar então “Adultos e crianças, homens e mulheres...”.
A ideia de que as crianças são “puras” e que uma das provas disso é que não teriam sexualidade é amplamente difundida no senso comum. E assim os pais acabam por reprimir qualquer manifestação que desminta essa crença. Para piorar, a repressão é respaldada por algumas religiões. Isso não significa que as crianças terão relações sexuais, obviamente. Seu corpo nem está preparado para isso. Mas significa que vão se tocar, descobrir o corpo, e que não há nada de errado com isso. Pelo contrário. É saudável que se descubra também o próprio corpo na idade em que tudo se descobre.
Aos pais cabe orientar e respeitar seus filhos e filhas, ajudando-os a se tornarem adultos capazes de respeitar o corpo e o desejo do outro e capazes de respeitar seu próprio corpo, fazendo do sexo uma experiência prazerosa e responsável quando o momento chegar. E é também pelo conhecimento que se conhece e se respeita o próprio corpo e o corpo do outro. A ignorância é uma grande aliada da violência que se faz consigo mesmo e com o outro.
Se é mais fácil reprimir as crianças exatamente porque são crianças e dependem para tudo dos pais, o mesmo não se pode dizer dos filhos na fase que se nomeou “adolescência”. E este talvez seja o susto de parte destes pais. Não há nenhum mistério nisso. Qualquer um, eu e você, estivemos lá (na adolescência) e nos lembramos muito bem. Estes pais também devem se lembrar que um dos principais interesses – ou talvez o principal interesse – era justamente sexo.


Assim, acusar o livro, como fez uma mãe e o vereador, por fazer “aflorar o sexo” em adolescentes de 13 anos ou mais é uma negação completa da realidade. Aos 13 anos, a maioria dos humanos quase só pensa nisso, o que não significa que vai fazer sexo com um parceiro ou parceira de imediato, passar do pensamento ao ato, da masturbação à relação sexual com outro corpo. Esta é uma decisão que cada um deverá tomar no seu tempo, com conhecimento e responsabilidade e respeito com seu corpo e com o corpo do outro, como o próprio livro tão bem sublinha.
Do mesmo modo, considerar que o desenho de um pênis ereto vai surpreender algum adolescente não faz qualquer sentido. Com permissão para uma brincadeira, porque o tema deveria ser também lúdico, o que talvez surpreenda mais um menino nesta faixa etária é o desenho do “pênis flácido”. Do mesmo modo, é comum uma menina conferir várias vezes por dia no espelho se seu peito cresceu, apalpando-o e acariciando-o, sem qualquer problema em ter prazer com isso. Assim como é natural tocar seu pênis ou sua vagina para descobrir o que lhe dá prazer e conhecer seu corpo, o que também vai ajudá-lo a ter prazer e dar prazer ao outro quando o dia chegar.
Debater este tema é responsabilidade também da escola. E os pais deveriam enxergar nela uma aliada para que seus filhos tenham de fato educação sexual não apenas em uma disciplina, mas em todas. E, assim, sentirem-se à vontade para discutir as transformações que lhe causam angústia e conhecer o seu corpo não só pela biologia, mas por todas as áreas que atravessam o tema da sexualidade. O conhecimento é o principal fator de prevenção de gravidez adolescente indesejada, doenças sexualmente transmissíveis, violências sexuais e bullying. É pelo conhecimento e pelo diálogo que adolescentes poderão tomar as melhores decisões sobre a sua vida e construir, no seu tempo, uma vida sexual responsável e prazerosa.
Quem lê o livro jogado na fogueira percebe claramente o esforço das autoras para cumprir este papel. É uma pena que seus detratores não consigam – ou não queiram – enxergar que livros como este, assim como professores que ajudem os estudantes a interpretá-los e debatê-los, são justamente os que não deixam os pais sozinhos num mundo tão complicado e violento, em que os adultos têm se sentido tão desamparados para educar crianças e adolescentes. É abrindo os livros – e não fechando-os – que os pais estariam melhor acompanhados.

 

5) Onde se esconde a maldade?

Ainda que seja improvável (mas não impossível) que o livro seja formalmente banido das salas de aula, como quer uma parcela dos pais desta escola, a obra já foi “queimada” publicamente. A fogueira já foi acesa e ardeu, porque as fogueiras hoje são sem matéria (por enquanto), mas suas labaredas têm longo alcance e graves consequências.
Diante da repercussão, é possível que o Ministério da Educação, numa próxima seleção, não escolha este livro. É possível que os professores das escolas privadas prefiram pular esta obra para não se arriscar a polêmicas. E é possível que os autores de livros didáticos passem a contornar o tema da educação sexual em suas obras, para se protegerem de eventuais inquisidores. Assim como jornalistas, políticos e intelectuais já começam a evitar certos temas para se protegerem de linchamentos que atingem não só a eles, mas começam a alcançar suas famílias.
Depois da fogueira pública, o resto acontece em silêncio. E acontece (também) por causa do silêncio. É desta maneira insidiosa que a ignorância se infiltra. É por esse caminho sombrio que o medo penetra e domina. É por essa técnica que historicamente os fascismos subjugaram as mentes e os corpos e produziram seus crimes. É preciso prestar muita atenção ao que está acontecendo no Brasil.
Por décadas a escola pública foi abandonada, enquanto o ensino privado foi se tornando um negócio cada vez mais lucrativo, cada vez menos pedagógico e mais empresarial. Por décadas os professores foram desvalorizados, os prédios foram sendo depredados, a escola se afastando mais e mais da comunidade – e a comunidade se afastando mais e mais da escola. Por décadas muito poucos se perguntaram seriamente como se sentiam alunos em escolas às vezes literalmente caindo aos pedaços, sem equipamentos básicos, em salas de aula ocupadas por professores mal pagos, sobrecarregados e, em alguns casos, despreparados. Por décadas um número crescente de pais passou a se esfalfar para conseguir dinheiro para matricular os filhos numa escola particular, mesmo que ruim, e aqueles que tinham mais condições de fazer a disputa por qualidade de educação deixaram a escola pública. Permaneceu quem não pôde sair – e permaneceram os idealistas, sempre em menor número. A escola pública passou a ocupar o lugar de resto. E como resto professores e alunos foram tratados.
Nos últimos anos, um movimento com muita potência surgiu. Estudantes passaram a ocupar as escolas e, transgressão das transgressões, passaram a cuidar delas e a exigir qualidade na educação. Como restos eles não incomodavam. Como protagonistas, cidadãos, foram criminalizados como “invasores” e “vândalos”.
Mas também nos últimos anos um movimento muito mais articulado se organizou. Ele não é novo, mas ganhou uma articulação nova. E sua principal arma é justamente a deseducação que a escola no lugar de resto produziu. Sua principal arma é a ignorância e a falta de conhecimento, que geram adesão em vez de reflexão, gritos em vez de diálogo. Fogueira.
Depois da corrosão da educação pública produzida pela ditadura civil-militar (1964-1985), a resposta dos governos democráticos que vieram a seguir foi insuficiente para a urgência do problema. Houve avanços significativos em algumas gestões, como a de Fernando Henrique Cardoso e de Luiz Inácio Lula da Silva, mas muito menores do que seria necessário para uma mudança que produzisse transformação estrutural. E, como todo vazio acaba sendo ocupado, ressurgiu o velho engodo embalado em papel novo e disseminado para milhões de seguidores nas redes sociais: o problema da escola pública é “moral” – e “de doutrinação ideológica”. Percebendo o risco, era preciso ocupar. Isso fica explícito no momento em que os estudantes tomam o partido da escola pública e restauram o valor da política, mas são duramente reprimidos não só pela polícia, mas também pelas milícias de ódio em defesa do projeto nomeado “Escola Sem Partido”.
Nesta manipulação, vendida à sociedade como um projeto restaurador da ordem (mas qual ordem?), o problema não seria a escola caindo aos pedaços, os professores mal pagos, a falta de estrutura material e pedagógica, mas uma suposta “doutrinação ideológica” praticada por professores “esquerdistas”, “comunistas” e moralmente desvirtuados a serviço do mal. (Com a esquerda mal parando em pé, isso deveria ser piada, mas não é, já que uma das consequências da ignorância é sua vítima não entender piada, muito menos humor ou ironia.)
Diante do medo e do desamparo, sentimentos que crescem em qualquer crise, a resposta moral sempre cola. Assim como um inimigo forjado. E cola mais ainda quando não existe uma proposta alternativa que as pessoas possam compreender e confiar. O problema então torna-se o outro – e ele deve ser destruído. Diante de pais assustados, com todo o direito tanto de querer que seus filhos sejam bem educados como de concluir que não estão sendo, qualquer mão estendida, mesmo que seja na forma de uma resposta estapafúrdia e violenta, geradora de mais desconhecimento e ignorância, é agarrada.
E assim pais são incitados por milícias de ódio na internet a tornarem-se inquisidores. Em vez de irem à escola para dialogar, compartilhar e reivindicar, construir junto, são estimulados a apontar o dedo e a linchar. Na época da ditadura, este serviço odioso era realizado nas escolas públicas por professores cooptados pelas forças da repressão, que espionavam os colegas e faziam seus relatórios, enquanto ganhavam pontos na carreira. Hoje, o que antes acontecia nos cantos escuros é amplamente incitado nas redes. A infâmia é vendida como virtude moral.
Construir é difícil, lento e dá trabalho. Queimar é imediato. E nada mais cômodo do que poder extravasar sua frustração culpando o outro e, se possível, eliminando-o. Ou deletando-o do espaço público. A estratégia é velha, muito velha. A única novidade é a entrada da internet na equação. Mas como a história não foi bem ensinada para as gerações que aí estão, ela é vendida e comprada como nova.

 

6) O que diz a autora do capítulo atacado?

Nos últimos anos, episódios de censura ou tentativas de censura a livros didáticos e de literatura têm pipocado pelo país. Alguns casos se tornam conhecidos, outros são abafados. É raro professores, bibliotecários e autores se arriscarem a defender a obra publicamente. Em geral, temem a demissão e, mais recentemente, o linchamento pessoal. Algumas editoras costumam aconselhar seus autores a silenciar, na expectativa de que o incêndio se extinga com menos prejuízos. Na minha opinião, isso é um erro e uma omissão de responsabilidade pública. Tentativas de censura e ataques a livros e autores dizem respeito a toda sociedade e devem ser enfrentados como o que são.
O livro de Ciências para o 8o ano, da coleção Projeto Apoema, é assinado por Ana Maria Pereira, Margarida Santana e Mônica Waldhelm. O capítulo atacado foi escrito por Mônica. Ela é professora do Ensino Médio, titular de Biologia no Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio de Janeiro (CEFET/RJ). Tem 50 anos de idade e 33 de magistério. É doutora em Educação pela PUC-Rio e consultora da Unesco. Enviei a ela algumas perguntas por e-mail e ela respondeu a todas elas. A seguir, os principais pontos:
Pergunta. Como você se sentiu ao tomar conhecimento deste episódio?
Resposta. Confesso que custei a entender o motivo alegado para o abaixo-assinado feito pelo grupo de mães e pais. Ao ler e ouvir as declarações não reconhecia naquelas palavras o conteúdo do livro: Pornografia? Vulgarização do sexo? Estímulo à promiscuidade? Imagens fortes? Sabia de todo cuidado que tivemos ao produzir cada volume e constatei que havia um ruído na comunicação ou algo mais preocupante por trás desta ação. Foi um misto de surpresa, perplexidade e tristeza.
P. O livro já havia sofrido algum tipo de ataque antes?
R. Esta coleção em questão não. Recebemos um parecer muito positivo na última avaliação do MEC no âmbito do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), e os livros são adotados por escolas públicas e privadas de todo o Brasil. Contudo, este campo da sexualidade é tradicionalmente espinhoso. Ao longo de 20 anos como autora, visitando escolas de Norte a Sul e conversando com os colegas professores, já ouvi alguns relatos de situações delicadas. Em uma escola, embora os professores manifestassem explicitamente o desejo de utilizar nossos livros, a presença de imagens de vulvas e pênis foi motivo de controvérsia por parte da coordenação pedagógica. Também soubemos de uma escola na qual uma professora de Ciências venceu a resistência da coordenadora e adotou a coleção, mas depois teve problemas com a mãe de uma aluna. Esta mãe simplesmente grampeou as páginas do livro que continham figuras de vulvas, pênis, camisinha e similares. Mas foram casos isolados e resolvidos com conversa e mediação.
P. Você escreveu a parte relativa à educação sexual. Quais são os cuidados que toma nas suas escolhas?
R. Como docente – e até quando fui aluna – sempre me incomodou a maneira como o corpo historicamente é apresentado e, deste modo, estudado nos livros didáticos de Ciências. O tema sexualidade humana quase sempre é abordado nos capítulos finais dos livros, onde o professor em geral nunca chega durante o ano letivo – e de modo reduzido ao aspecto da reprodução. As figuras aparecem quase sempre na forma de esquemas em cortes transversais ou longitudinais. Com seu corpo ainda desengonçado e com acne, o adolescente se depara, nos livros didáticos, com figuras e modelos “perfeitos”, bem torneados e com dentes corretos e, então, não se reconhece como tal. Também acho difícil um aluno da Educação Básica reconhecer-se nas estranhas figuras assexuadas. Ainda hoje, em muitos livros, pênis e vulvas/vaginas, em geral, só aparecem em cortes "estratégicos", expondo apenas sua anatomia interna. Além disso, com imagens humanas idealizadas e retocadas no computador, os livros acabam por reforçar o que faz a produção mídiatica predominante, que hipervaloriza a aparência física e acaba por determinar padrões estéticos. Estes “padrões” são buscados febrilmente por jovens nas academias de ginástica e no uso de anabolizantes. Também se refletem nos consultórios médicos, onde vão em busca de "reparos", assim como no avanço de distúrbios como bulimia e anorexia.
P. Esta foi a razão para a sua investigação no mestrado?
R. Este incômodo com certeza motivou minha pesquisa no mestrado em Educação realizada na Universidade Federal Fluminense (1998), na qual investiguei a produção sociopolítica do corpo nos livros didáticos de Ciências editados nas décadas de 1960 e 1990. Ao ser convidada logo depois para escrever livros didáticos, tive a oportunidade de propor um material que modificasse, ainda que em parte, este cenário preocupante. Hoje é consenso no meio educacional que o currículo escolar não pode estar desvinculado da realidade dos alunos, tendo em vista que uma das funções da escola é a preparação para a vida cidadã. No contexto desta discussão, entendo que as questões relativas ao corpo, gênero, sexualidade e papeis sociais devem ser trazidas para sala de aula, dado o impacto que provocam na vida dos alunos. Muitas vezes, porém, as angústias e tabus acerca da sexualidade estão baseadas no desconhecimento da anatomia e da fisiologia do próprio corpo. Daí a importância de criar condições para que os professores possam conversar com os alunos, levando-os a expressar suas crenças e seus mitos em relação ao corpo e à sexualidade como ponto de partida para o estudo dos aspectos biológicos do sexo. No volume didático alvo da polêmica, num total de seis unidades, optamos por abordar a sexualidade na terceira unidade. Queríamos evitar que este tema fosse relegado a segundo plano caso ficasse no fim do livro. O texto escrito por mim foi objeto de cuidadosa análise também das outras autoras e da equipe da editora, pois não queríamos correr o risco de produzir nem reforçar subjetividades hegemônicas que levassem a preconceitos e discriminação por gênero, etnia, orientação sexual etc. Em diversos momentos, na versão para o professor, colocamos “bilhetes” sinalizando para a importância de debater determinados tópicos e atentar para atitudes preconceituosas. Ao abordar as características anatômicas femininas e masculinas incluímos também representações de corpos inteiros e com as estruturas externas visíveis. Cuidamos para não reforçar a “pedagogia do terror”, associando sexualidade somente à doença ou à gravidez indesejada. Destacamos a importância do cuidado com o corpo, associando-o à promoção da saúde e à vivência prazerosa e responsável da sexualidade.
P. Como você insere esse episódio no contexto mais amplo do país?
R. Não há como negar que uma onda conservadora vem assolando nosso país. E isto tem provocado repercussão e embates travados tanto no campo das ideias quanto das ações e até das políticas públicas. No campo educacional não é diferente. Tentativas de censura e cerceamento de práticas docentes e uso de materiais didáticos têm sido recorrentes e até apoiadas por representantes políticos que se dizem “defensores da moral e bons costumes” das famílias brasileiras. A retirada dos termos “gênero e orientação sexual” da última versão do texto da Base Nacional Comum Curricular entregue ao Conselho Nacional de Educação não será inócua. Embora o MEC insista que as escolas terão autonomia para construir seus currículos, a não explicitação do termo esvazia sua legitimidade e importância. Currículo é um território de poder e de embates. Esta omissão no documento norteador deixa autores de livros didáticos e docentes sem respaldo legal para abordar o tema. E pode simplesmente impedir a discussão sobre diversidade sexual, estereótipos de gênero e atitudes homofóbicas nas escolas. Iniciativas como a tentativa de censura ao nosso livro de Ciências, a livros de Geografia que incluem famílias homoafetivas, a periódica conclamação em redes sociais a famílias para que induzam seus filhos a filmarem episódios de “doutrinação” nas escolas, assim como um vereador querendo “fiscalizar” as aulas e vários projetos de lei em andamento são elementos de um cenário que causa extrema preocupação com a liberdade de expressão dos educadores em geral. A propagada neutralidade religiosa, sexual e política não tem nada de neutra. Reflete as visões e crenças de um grupo conservador na sociedade.
P. Como você interpreta a manifestação destes pais? O que, afinal, eles temem, a ponto de querer proibir o livro?
R. Acho que há vários aspectos envolvidos. Um deles é o que envolve o desejo e a crença de controle total sobre os filhos (incluindo seus corpos, sexualidade, formas de pensar e ver o mundo). E sei que este desejo não é mal intencionado. Um outro se refere ao fato de cada pai e mãe como pessoa ter seu conjunto de crenças e referências culturais influenciado por experiências pessoais, familiares, religiosas e outras. E embora a escola pública seja para todos, alguns pretendem impor sua forma de ver o mundo como verdade absoluta. Então o racista não quer ver o racismo discutido, o homofóbico não quer que se aborde gênero e preconceito, o misógino acha desnecessário falar sobre feminismo e por aí vai. Paradoxalmente, constato que enquanto em várias escolas e livros de Ciências a questão da sexualidade é ignorada ou abordada superficialmente, no dia-a-dia é crescente a erotização da infância e da adolescência. A realidade é bem diferente do que muitos pais querem admitir. Adolescentes procuram informações onde podem. E a escola pode trazer esta informação de modo adequado. Sabemos que não basta informar, é preciso debater, problematizar, levá-los a refletir, a construir projetos de vida. Enquanto os pais acham que seus filhos com 13-15 anos ainda não devem discutir sexualidade e ver imagens de pênis, o Ministério da Saúde reduziu a idade mínima para a vacinação contra HPV para 9 anos para garantir imunização antes do início da vida sexual. Soma-se a isso o alarmante número de grávidas adolescentes, o crescimento do HIV entre jovens, o suicídio e homicídio de jovens homossexuais...
P. E como você avalia a relação entre escola e comunidade?
R. Ainda existe falta de diálogo entre muitas escolas e as famílias dos alunos. Uma maior aproximação, buscando esclarecer a proposta pedagógica, a realização de projetos envolvendo a comunidade e trabalhos intersetoriais (com o posto de saúde local, por exemplo) são estratégias que reforçam a parceria e trazem sinergia ao processo educativo. Nosso livro propõe várias atividades envolvendo a comunidade por reconhecer a importância desta interação. A sexualidade envolve pessoas e, consequentemente, sentimentos, que precisam ser percebidos e respeitados. Envolve também crenças e valores, assim como ocorre em um determinado contexto sociocultural e histórico, o que tem papel determinante nos comportamentos. Nada disso pode ser ignorado quando se debate a sexualidade com os jovens. O papel de problematizador e orientador do debate, que cabe ao educador, é essencial para que os adolescentes aprendam a refletir e a tomar decisões coerentes com seus valores, no que diz respeito à sua própria sexualidade, ao outro e ao coletivo, conscientes de sua inserção em uma sociedade que incorpora a diversidade. Consideramos que silenciar – nos discursos e práticas – no âmbito das questões relativas à sexualidade humana tem implicações gravíssimas na formação de nossas crianças e jovens.
P. Como você nomearia o que está acontecendo? E como um professor pode enfrentar essa conjuntura?
R. Como autora, professora, mãe e cidadã, reforço e valorizo a necessidade de um movimento de resistência organizado e coletivo – e portanto com mais impacto e eficiência – por parte dos educadores, frente às recentes e sistemáticas ações que buscam tirar a autonomia docente e isolar a sala de aula e a escola da vida real, alijando os alunos do debate acerca de questões contemporâneas cada vez mais relevantes. A busca por uma sociedade pautada na solidariedade, na alteridade, na justiça social, no respeito e na convivência pacífica passa pelo reconhecimento da diversidade como positiva. Questionar as muitas formas de preconceito e de exclusão social é papel de uma escola que pretende ajudar a construir um Brasil menos sexista, menos racista e menos homofóbico – e isso deve começar na Educação Infantil.

 

7) Por que a ONU se manifestou?

Apenas nas últimas semanas, vários golpes articulados acentuaram a crise educacional e ética do país. E colaboraram para aumentar a violência e ampliar a ignorância no âmbito da escola pública. Tanto que, em 13 de abril, a ONU fez um comunicado manifestando sua preocupação com ameaças ao direito à educação e à liberdade de expressão no Brasil e pedindo que o governo brasileiro se manifeste em 60 dias.
No documento, os relatores das Nações Unidas apontam o projeto “Escola Sem Partido” e as “visitas-surpresa” a escolas municipais feitas pelo vereador de São Paulo Fernando Holiday (DEM) como motivos de apreensão. O vereador entrou nas escolas para “analisar se há doutrinação no conteúdo que está sendo dado nas salas de aula”. No vídeo divulgado por ele se anuncia: “Escola Sem Partido. Holiday faz visitas supresas em escolas de SP e quer que você denuncie casos de doutrinação”.
Segundo a Folha de S. Paulo, o episódio provocado pelo vereador quase causou a demissão do secretário de Educação de São Paulo, Alexandre Schneider. O secretário, respeitado na área educacional, repudiou com veemência a tentativa de intimidação dos professores, citando a Constituição. Em seguida, foi vítima de uma campanha de desqualificação promovida por grupos articulados na internet. Segundo o jornal, o secretário não teria se sentido apoiado pelo prefeito João Doria (PSDB). O prefeito pode ter preferido manter o apoio das milícias de ódio na internet, que o inflam nas redes como o grande “gestor”.
No comunicado, os relatores da ONU afirmam que, se os projetos de lei baseados no Escola Sem Partido forem aprovados, isso pode significar restrição indevida ao direito de liberdade de expressão de alunos e professores no Brasil, com impacto no ensino do país em diversos temas. Alertam ainda que o Escola Sem Partido pode representar “censura significativa” e restringir o direito do aluno a receber informação.
O documento manifesta ainda a preocupação com o impacto destas ideias sobre as políticas públicas, como a retirada da expressão “orientação sexual” da Base Nacional Comum Curricular do país, que define as competências e os objetivos do aprendizado dos estudantes em cada etapa da vida escolar. Os relatores afirmam também que a mudança contraria a recomendação da ONU para que o país reforce os programas de combate à homofobia.
Escola Sem Partido é um projeto idealizado pelo advogado Miguel Nagib em 2004, nos últimos anos adotado como bandeira pelas milícias de ódio na internet e por algumas das vozes mais atrasadas do Legislativo. A escolha do nome é esperta. Ela sugere uma finalidade legítima: a de impedir que professores façam proselitismo político-partidário em sala de aula ou o que tem sido difundido como “doutrinação ideológica”. Na prática, o Escola Sem Partido propõe exatamente o que afirma combater: doutrinação ideológica e proselitismo. Mas para isso é preciso capacidade de interpretar texto e de “ler” a realidade, justamente o que a Escola deveria promover, mas tem fracassado por todos os motivos conhecidos.
O nome do projeto, que já era esperto quando foi concebido, tornou-se ainda mais eficiente num momento em que os principais partidos políticos do país estão atolados na lama exposta pela Operação Lava Jato e parte da classe política virou caso de polícia. Assim, em vez do “político”, estes grupos lançam a figura do “gestor”, aquele que supostamente está “limpo” porque não foi enlameado pela política, reduzida por eles a palavrão.
Se há dificuldade de interpretar textos, como esperar que exista interpretação de subtextos e de entrelinhas? Quantos vão perceber que negar a política, uma das criações mais potentes do pensamento humano, responsável por alguns dos maiores avanços da humanidade, é um ato político? E que se autodenominar “gestor” é uma esperteza política de um político esperto?
De novo estamos de volta à tragédia da educação. E agora ela ecoa para muito além dos muros das escolas. A ignorância não é apenas uma tragédia, mas um instrumento. E, no Brasil, este instrumento nunca foi usado de forma tão articulada como hoje.

 

8) Quem silencia?

Como a história ensina, para quem teve a chance de aprender, a opressão se instala devagar. É um acontecimento aqui, outro lá, aparentemente sem conexão. E assim ela vai se infiltrando primeiro nas franjas do cotidiano, nas periferias dos debates. E depois vai avançando para a área central até tornar-se o próprio centro. A cada novo linchamento, a cada nova fogueira, e elas são ateadas pela direita, mas também pela esquerda, muitos têm se calado. Há gente demais se esquecendo de sua responsabilidade pública e soprando as brasas para longe de si. Muitos que têm espaço para falar e ressonância para ser escutado têm silenciado, na esperança de que a vítima mais recente da inquisição promovida nas redes sociais e em certa mídia se incinere sozinho na fogueira da sua reputação e que nenhuma brasa caia no seu quintal. Lamento dizer, mas vai cair. E aí, talvez, seja tarde demais para reagir.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum





quinta-feira, 11 de agosto de 2016

A FÁBULA DOS PORCOS ASSADOS



Certa vez, aconteceu um incêndio num bosque onde se encontravam alguns porcos. Estes foram assados pelo incêndio. Os homens, acostumados a comer carne crua, experimentaram os porcos assados e acharam deliciosos. Logo, toda vez que queriam comer carne assada incendiavam o bosque...

O sistema foi desenvolvido e aperfeiçoado. Mas nem sempre as coisas iam bem: às vezes os animais ficavam queimados ou parcialmente crus; outras, de tal maneira queimados que era impossível utilizá-los. Como era um procedimento montado em grande escala, isso preocupava muito a todos, porque, se o Sistema falhava, as perdas ocasionadas eram igualmente grandes. Milhões de pessoas alimentavam-se só de carne assada e também muitos eram os que tinham ocupação nessa tarefa. Portanto, o Sistema simplesmente não devia falhar. Mas, curiosamente, à medida que se fazia em maiores escalas, mais parecia falhar e maiores perdas parecia causar.

Em razão das deficiências, aumentavam as queixas. Já era um clamor geral a necessidade de se reformar profundamente o Sistema. Tanto assim que, todos os anos, realizavam-se congressos, seminários, conferências e jornadas para achar a solução. Mas parece que não acertavam o melhoramento do mecanismo, porque no ano seguinte repetiam-se os congressos, os seminários, as conferências e as jornadas. E assim sempre.

A causa do fracasso do Sistema, segundo os especialistas, podiam ser atribuídas ou à indisciplina dos porcos, que não permaneciam onde deviam, ou à inconstante natureza do fogo, difícil de controlar, ou às árvores excessivamente verdes, ou à umidade da terra, ou ao serviço de informações meteorológicas que não acertava o lugar, o momento e a quantidade de chuva, ou...

Como se vê, as causas eram difíceis de determinar, porque na verdade, o Sistema para assar os porcos era muito complexo. Fora montado uma grande estrutura; uma enorme maquinaria com inúmeras variáveis tinha sido institucionalizada. Havia indivíduos dedicados a acender – os incendiadores – que, ao mesmo tempo, eram especialistas de setores. Havia incendiadores da Zona Norte, da Zona Oeste, etc., incendiadores noturnos, diurnos, com especialização matutina e vespertina, incendiadores de verão, inverno, com disputas jurídicas sobre o outono e a primavera. Havia especialista em vento, os anemotécnicos, um Diretor Geral de Assamento e Alimentação Assada, um Diretor de Técnicas Ígneas ( com seu conselho geral de assessores), um Administrador Geral de Florestação Incendiável, uma Comissão Nacional de Treinamento Profissional em Porcologia, um Instituto Superior de Cultura e Técnicas Alimentícias (ISCUTA) e o BODRIO (Bureau Orientador de Reformas Ígneo-Operativas).

O BODRIO era tão grande, que tinha um inspetor de reformas para cada 7.000 porcos, aproximadamente. E era precisamente o BODRIO que propiciava anualmente os congressos, os seminários, as conferências e as jornadas. Mas isto só parecia servir para incrementar o BODRIO em burocracia. Tinha se projetado e encontrava-se em pleno crescimento a formação de novos bosques e selvas, seguindo as últimas indicações técnicas, em regiões escolhidas segundo determinada orientação, onde os ventos não soprassem mais de 3 horas seguidas e houvesse reduzida porcentagem de umidade. Havia milhões de pessoas trabalhando na preparação dos bosques a serem incendiados. Alguns especialistas eram enviados para a Europa e os EUA, com a missão de estudar a importação das melhores madeiras, árvores, sementes, fogos melhores e mais potentes, além de pesquisar idéias operativas, por exemplo, como fazer buracos para que neles caíssem os porcos. Havia também grandes instalações para manter os porcos antes do incêndio, mecanismos para deixá-los sair no momento oportuno, técnicos em sua alimentação, etc. Havia construções de estábulos para porcos, professores formadores de especialistas na construção de estábulos para porcos, universidades que preparavam os professores formadores dos especialistas na construção dos estábulos para porcos, fundações que apoiavam os investigadores que davam o fruto do seu trabalho às universidades que preparavam os professores formadores na construção de estábulo para porcos, etc.

As soluções que os congressos sugeriam eram, por exemplo, aplicar triangularmente o fogo após Va -1 pela velocidade do vento sul, soltar os porcos 15 minutos antes que o fogo-promédio da floresta alcançasse 47°; outros diziam que era necessário instalar grandes ventiladores que serviriam para orientar a direção do fogo e assim por diante. Poucos especialistas estavam de acordo entre si e cada um tinha investigações e dados para provar suas afirmações.

Um dia, um investigador da categoria SO/DM/VCH , chamado João Bonsenso falou que o problema era muito fácil de se resolver. Tudo consistia, segundo ele, primeiramente, em matar o porco escolhido, limpando e cortando adequadamente o animal e colocando-o, posteriormente, numa jaula metálica ou armação sobre brasas, até que o efeito do calor e não das chamas, o assasse ao ponto.

Ciente, o Diretor Geral de Assamento mandou chamá-lo e perguntou que coisa esquisita ele andava falando por ali. Depois de ouvi-lo, disse-lhe:

- O que o senhor fala está bem, somente na teoria. Não vai dar certo na prática. Pior ainda, é impraticável. Vamos ver: o que o senhor faria com os anemotécnicos , no caso de se adotar o que está sugerindo?

- Não sei, respondeu João.

- Onde vai por os acendedores das diversas especialidades?

- Não sei.

- E os indivíduos que foram ao estrangeiro para se especializar durante anos e cuja formação custou tanto ao país? Vou pô-los para limpar porquinhos?

- Não sei.

- E os que têm se especializado todos esses anos em participar dos congressos, seminários e jornadas para a Reforma e Melhoramentos do Sistema? Se o que você fala resolve tudo, que faço com eles?

- Não sei.

- O senhor percebe agora que a sua solução não é aquela de que todos nós necessitamos? O senhor acredita que, se tudo fosse tão simples, os nossos especialistas não teriam achado a solução antes? Veja só! Que autores falam isso? Que autoridade há para avaliar sua sugestão? O senhor, por certo, imagina que eu posso dizer aos engenheiros em anemotécnica que é questão de por brasinhas sem chamas! O que eu faço com os bosques já preparados, no ponto de serem queimados, que somente possuem madeira apta para fogo-em-conjunto, cujas árvores não produzem frutos, cuja falta de folhas faz com que não prestem para dar sombras? O que faço? Diga-me !!!

- Não sei.

- O que faço com a Comissão Redatora de Programas Assados, com seus Departamentos de Classificação e Seleção de Porcos, com a Arquitetura Funcional de Estábulos, estatística, população, etc. ?

- Não sei.

- Diga-me: o Engenheiro em Porcopirotecnia, o Sr. J.C da Figuração, não é uma extraordinária personalidade científica?

- Sim, parece que sim.

- Bem, o simples fato de possuir valiosos e extraordinários engenheiros em Porcopirotecnia indica que o Sistema é bom. E que faço com indivíduos tão valiosos?

- Não sei.

- Viu? O senhor tem é que trazer solução para certos problemas: como fazer melhores anemotécnicos , como conseguir mais rápido acendedores do Oeste (que é a nossa maior dificuldade), como fazer estábulos de oito andares ou mais, em lugar de somente sete, como até agora. Tem que melhorar o que temos e não mudá-lo. Traga-me uma proposta para que nossos bolsistas na Europa custem menos, ou mostre-me como fazer uma boa revista para análise profunda do problema da Reforma do Assamento. É disso que necessitamos. É disso que o país necessita. Ao senhor falta sensatez, senso comum ! Diga-me, por exemplo, o que faço com meu bom amigo (e parente), o Presidente da Comissão para o Estudo de Aproveitamento Integral dos Resíduos dos Ex-Bosques?

- Realmente, estou perplexo! - falou João.

- Bem, agora que conhece bem o problema, não diga por aí que o senhor conserta tudo. Agora, o senhor vê que o problema é mais sério e não tão simples como o senhor imaginava. Tanto os de baixo como os de fora dizem: “Eu conserto tudo”. Mas tem que estar dentro para conhecer os problemas e saber das dificuldades. Agora, cá entre nós, recomendo-lhe que não insista com sua idéia, porque isso poderia trazer problemas para o senhor no seu cargo. Não por mim! Eu falo pelo seu próprio bem, porque eu o compreendo, entendo seu posicionamento, mas o senhor sabe que pode encontrar outro superior menos compreensivo. O senhor sabe como são, às vezes, não é?

João Bonsenso, coitado, não falou um “A”. Sem despedir-se, meio assustado e meio atordoado com a sensação de estar caminhando de cabeça para baixo, saiu e nunca mais ninguém o viu. Não se sabe para onde foi. Por isso é que, até hoje é costume dizer que, na tarefa de reforma e melhoria do Sistema, falta o bom senso."

Artigo originalmente publicado em: Juicio de la Escuela, CIRIGLIANO, F. T.. Editorial Humanitas, Buenos Aires, 1976.

domingo, 4 de setembro de 2011

CAMILA VALLEJO

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“A classe dominante não tem interesse em mudar a educação” 

 

O peso de seus argumentos em programas de televisão, a clareza de suas intervenções diante das autoridades que dobram sua idade e a capacidade inata de aglutinar as massas, converteram-a na líder mais visível deste movimento que já derrubou um ministro e jogou o governo de Sebastián Piñera nas cordas. Usando um jeans surrado, um lenço artesanal no pescoço, um piercing no nariz e esse olhar que esconde uma das mentes políticas mais brilhantes que apareceram no Chile nos últimos anos, Camila Vallejo concedeu uma entrevista exclusiva a Christian Palma, correspondente da Carta Maior em Santiago do Chile.

 

Há três meses, Camila Vallejo, a carismática presidenta da Federação de Estudantes da Universidade do Chile (Fech), podia tomar um metrô tranquilamente e caminhar sem chamar a atenção mais do que qualquer outra mulher bonita chilena. Nesse tempo, os estudantes universitários e secundaristas iniciavam um movimento sem precedentes que inclui até hoje ocupações e greves nas escolas do país e diversas marchas pelas principais cidades chilenas pedindo fundamentalmente o fim do lucro no sistema educacional, mais qualidade nos conteúdos ministrados nas salas de aula e gratuidade completa na educação pública.

Ela, com paciência, visitava os colégios explicando ponto por ponto as razões das reivindicações estudantis e parava para conversar com os jornalistas com calma. Foi em um desses eventos que a conheci. Usando um jeans surrado, um lenço artesanal no pescoço, um piercing no nariz e esse olhar que esconde uma das mentes políticas mais brilhantes que apareceram no Chile nos últimos anos, trocamos algumas palavras.

A revolução estudantil se incendiou, os argumentos dos estudantes foram entendidos e valorizados pela cidadania e Camila Vallejo demonstrou que é muito mais do que um rosto bonito. O peso de seus argumentos em programas de televisão, a clareza de suas intervenções diante das autoridades que dobram e triplicam a idade e a capacidade inata de aglutinar as massas, converteram-a na líder mais visível deste movimento que já derrubou um ministro e obrigou o governo de direita de Sebastián Piñera a oferecer três alternativas para destravar o conflito. Mas nenhuma delas satisfez os estudantes.

Tamanha foi a pressão sobre o governo, que o próprio Piñera chamou os jovens para uma conversa neste sábado no palácio de La Moneda. Um dia antes deste convite que pode marcar o início do fim da crise, Camila Vallejo, achou um espaço em sua agenda e concedeu esta entrevista exclusiva à Carta Maior, recém chegada de Brasília, onde se reuniu com seus pares brasileiros. Ela reconhece que tem tempo apenas para comer.

Considerando as dezenas de pedidos de entrevistas solicitadas por meios de comunicação chilenos e estrangeiros, interessados nesta jovem mulher, alguns minutos com ela são um luxo.

Estrela das redes sociais – como boa parte de sua geração – convocou milhares por meio do Facebook e do Twitter, mas também foi ameaçada de morte ou insultada covardemente pela web. Tranquila, diz que está consciente dos riscos que isso significa, mas, mais importante ainda, sabe a tremenda responsabilidade que passa a ter com apenas 23 anos.

Senhoras e senhores, com vocês Camila Antonia Amaranta Vallejo Dowling, a menina que jogou o governo de direita de Sebastian Piñera nas cordas. Saiba por que.

- Você diz que as demandas estudantis não são um assunto de direita ou esquerda, mas sim de toda a sociedade chilena. Acredita que a cidadania entendeu isso?

Este movimento alcançou uma massividade e uma transversalidade que nunca tinham sido vistas desde o retorno à democracia (1990). Uma enorme parcela daqueles que, em um determinado momento, apoiaram Piñera, hoje se dá conta de que este não é um ataque direto à sua posição, mas sim a um modelo de educação que concebe a educação como um bem de mercado e não como um direito, e também a um sistema democrático que hoje, se reconhece , é muito estreito.

O questionamento à conduta do governo, inclusive de cidadãos que pertencem a setores que, em um determinado momento, apoiaram o atual presidente, deixa evidente que existe o entendimento de que a luta que hoje travamos é pelo direito à educação e por uma mudança de sistema que beneficie toda a sociedade e o desenvolvimento do Chile. Ela não se limita a buscar benefícios para um setor político particular.

O movimento se polarizou entre direita e esquerda. Isso é prejudicial?

Para entender esse conflito é preciso analisá-lo a partir de duas perspectivas. Por um lado, é preciso considerar que, junto à população, a problemática educacional se transversalizou de uma forma nunca vista, o que tem gerado um apoio massivo ao movimento vindo de diversos setores e atores ligados à educação. Por outro lado, temos um setor muito mais minoritário e ideológico representado pelas classes dominantes, que não estão interessadas em uma mudança na educação, tanto porque o atual sistema beneficia diretamente seus bolsos, como porque ele os mantêm em sua posição de privilegiados frente a uma população com fraca educação. A polarização de duas grandes alternativas educacionais é produto da postura intransigente desse setor. Ou seja, a polarização não se encontra no interior do movimento estudantil – que tem sabido priorizar a unidade atuando de forma conjunta -, mas sim representa uma enorme contradição entre as mudanças que a cidadania está exigindo hoje frente uma minoria conservadora cujos interesses são representados pelo Executivo.

Qual a consistência deste movimento para resistir às artimanhas urdidas no espectro político da direita e também do governo?

Hoje o movimento conta com uma série de fortalezas, tais como a amplitude que ultrapassa o meramente estudantil e o transforma em um movimento social; a unidade dos diferentes atores ligados ao mundo educacional, que após um longo processo conseguiram conjugar esforços em torno de pautas unificadas; a representatividade dos anseios da cidadania, na medida em que tem ocorrido processos democráticos por meio dos quais se definem as melhores estratégias a utilizar; e, finalmente, conta com a experiência histórica dos diferentes movimentos que nos precederam como o foi o movimento estudantil dos “pinguins” (estudantes secundaristas) de 2006.

O movimento se vale de todas essas ferramentas para fazer frente às diferentes artimanhas que podem surgir tanto da articulação da direita como do governo, as quais, até aqui, temos sabido enfrentar.

Atuação do governo

Para entender um pouco mais o sistema educacional chileno e por que a direita não quer transformá-lo é preciso ter em mente que há três tipos de escolas de educação superior herdados da ditadura de Pinochet. Há os centros de formação técnica, os institutos profissionais e as universidades que se dividem em tradicionais, com aportes do Estado, e privadas. O ingresso nelas passa por uma prova de conhecimentos e, para os que não têm dinheiro, há um sistema de créditos outorgados pelo setor privado quase sem nenhuma regulação e com juros altíssimos. Em 2006, a presidenta Michelle Bachelet se complicou com a “Revolução dos Pinguins” que mobilizou só os estudantes secundaristas. Eles receberam promessas que não foram cumpridas e agora, com 80% da cidadania aprovando as mobilizações, o governo de Piñera recebeu os protestos na sua porta.

Qual sua avaliação sobre a atuação do governo no tema? Não deu resposta às suas demandas, faz declarações infelizes saindo da boca do próprio presidente (“não há nada grátis na vida”, “as pedras nos levaram à ruptura da democracia”) e tenta dar um perfil violento às marchas (com infiltração de policiais).

O governo não está escutando a cidadania, o que mostra que está disposto a seguir defendendo intransigentemente seu modelo educativo, inclusive assumindo o custo de omitir o que o povo tem demandado massivamente durante mais de três meses.

Não contente com isso, tem explorado ao máximo as ferramentas com as quais conta o governo e a direita chilena – meios de comunicação, força policial e militar, respaldo dos grandes grupos econômicos – para deslegitimar o movimento, baseando-se na mentira por trás de estratégias populistas.

A pressão social que este movimento conseguiu acumular obrigou Piñera a mostrar do que é feito este governo, quais são os limites democráticos que ele está disposto a cruzar e quem representa realmente, o que constitui um enorme desprestígio e desaprovação de sua gestão, o que já foi expresso nas últimas pesquisas que, historicamente, eles mesmos têm validado.

O questionamento à incapacidade de manejar a demanda social por uma educação pública gratuita e de qualidade para todos alcança novos níveis na medida em que o grau de repressão ultrapassou qualquer limite de tolerância de um Estado de Direito. Durante esses meses de protesto, temos sido testemunhas de aberrantes abusos por parte do corpo policial, sob ordens do Executivo, através do Ministro do Interior e Segurança Pública, Rodrigo Hinzpeter, o que atingiu seu ápice com a morte de um estudante na semana passada.

Qual sua opinião sobre o papel da Concertação (oposição) em tudo isso?

A Concertação desemprenhou um papel bastante oportunista tentando
obter ganhos políticos com o que ocorre hoje no país. Neste sentido vemos hoje representantes dessa coletividade criticando o modelo educacional, como, por exemplo, o ex-presidente Ricardo Lagos que diz “que o modelo não já não aguenta mais”, esquecendo-se que foram eles mesmos que administraram e aprofundaram a mercantilização da educação e que, por outro lado, um importante setor dessa organização é formado por proprietários de colégios, por investidores no negócio da educação superior.

Apesar disso, dado o nível de participação que a Concertação tem no Parlamento, corresponde a eles agora responder a altura de suas declarações em favor do movimento. Ou seja, devem assegurar que os projetos de lei que surgiram dessas mobilizações representem integralmente o que as demandas sociais estabeleceram e, por motivo nenhum, devem voltar a negociar pelas costas do movimento, como terminou ocorrendo com o processo da Revolução dos Pinguins de 2006.

Com a foice e o martelo no coração

Camila Vallejo é filha de ex-militantes allendistas e referência das Juventudes Comunistas. Na atualidade, foi obrigada a congelar a tese para se formar em geografia. Ela não reconhece abertamente, mas tampouco descarta seguir uma carreira política.

Já pensou em seguir sendo dirigente no futuro, ainda mais em um país carente de líderes jovens?

Sobre o meu futuro, tenho dito que tenho um projeto pessoal de caráter acadêmico, ou seja, gostaria de terminar meu curso e seguir neste caminho. No entanto, concebo os cargos de representação como uma responsabilidade e de modo algum como um privilégio, pelo que, a priori, não posso dizer que não continuarei tendo cargos de representação popular.

Alguns dirigentes estudantis internacionais olham com especial atenção para o Chile, depositam esperança neste movimento e estão atentos para que as conquistas não sejam perdidas. Como avalia essa tremenda responsabilidade?

Creio que a esperança de que as conquistas desse movimento não sejam perdidas, assim como a responsabilidade por elas é compartilhada pela totalidade dos envolvidos. Se é verdade que, às vezes, minha pessoa é transformada em ícone do movimento, temos claro que a sua construção é uma conquista que pertence a todos. Confio que temos feito as coisas corretamente, o que é demonstrado pelo incrível apoio cidadão que nos acompanha três meses depois de iniciada essa mobilização. Sob estas condições, se o governo não tiver suas demandas satisfeitas, isso será responsabilidade da intransigência do governo e da traição da cidadania por parte da direita chilena, o que não estamos dispostos a tolerar.

O que te parece o modelo educacional de Lula (ProUni) que estabelece um mecanismo de bolsas de estudo para estudantes de universidades privadas com finalidade lucrativa, mas que está dirigido especialmente para estudantes de baixa renda e é financiado com isenções fiscais para esses estabelecimentos?

Para além do detalhe técnico das propostas, o que hoje estamos defendendo no Chile são ideias políticas muito concretas. E o fim do lucro na educação é uma das consignas que teve maior adesão da cidadania. A própria lei chilena de Educação criada na ditadura proíbe o fim do lucro em todas as universidades. O cumprimento dessa lei é um dever que esse governo descumpriu grosseiramente e que, após essa mobilização, não nos contentaremos com a continuidade dessa situação. É preciso avançar na direção da proibição do lucro em todo o sistema educacional, desde o pré-escolar a todos os setores de educação superior, assegurando sanções para aqueles que descumprirem esta lei e para aqueles que fizeram isso durante os últimos 30 anos.

Qual sua impressão sobre o apoio dos trabalhadores às mobilizações estudantis e sobre a convocação de outra mobilização massiva para 8 de setembro?

O fato de os trabalhadores apoiarem as mobilizações é algo fundamental para cada processo histórico revolucionário, pois como sujeito histórico o trabalhador que hoje se encontra diretamente explorado pelo processo produtivo sobre o qual se sustenta nossa sociedade capitalista neoliberal.

Se nós, jovens estudantes, somos chamados a gerar e fomentar as mudanças, temos que ter claro que estes devem se realizar junto aos trabalhadores, pois são eles, finalmente, o real motor da história.

Você sofreu críticas e ataques, sem sentido, maliciosos. Você disse que eles fazem parte do jogo, mas alguns ultrapassam todos os limites, como o de que é manipulada pelo Partido Comunista. O que diz sobre isso?

Efetivamente, eu sou militante das Juventudes Comunistas do Chile e isso é algo que nunca escondi, muito pelo contrário, é algo do que sinto muito orgulho, pois é uma grande escola que me permitiu crescer e desenvolver-me politicamente.

Além disso, é de se esperar que, na atual situação, aqueles que não estão à altura do conflito busquem argumentos como estes para atacar, não somente a mim, mas também ao resto dos dirigentes. Mas o certo é que hoje eu represento não só os estudantes da Universidade do Chile, cuja Federação presido, mas também me toca ser a voz de todos os estudantes do Chile, enquanto porta-voz da Confederação de Estudantes do Chile (Confech) e a legitimidade que tanto os estudantes como a cidadania concederam a meu desempenho evidencia que essas acusações não passam de sujas estratégias desesperadas de quem, como disse anteriormente, não tem sido capaz de ganhar o debate.

Tradução: Katarina Peixoto