Por Adriano Oliveira, para Canal Meio (https://www.canalmeio.com.br/)
De cabeça abaixada, os olhos brilham em frente a uma tela acariciada
por dedos que repetem o mesmo movimento de arrastar, de cima para baixo,
de lado a lado, em movimentos pinça para o zoom, a cada poucos
segundos. O almoço chega. Nem é preciso olhar para o prato. A não ser
para fazer uma foto. A rotina segue, agora, apenas com uma das mãos,
enquanto a outra desempenha a mecânica tarefa de segurar o talher para a
displicente alimentação. E assim passam-se minutos de um mergulho em
interações virtuais — e virtualmente zero das reais. Essa cena pode
descrever o almoço de muitos de nós em um dia qualquer. Mas também narra
o cotidiano de crianças e adolescentes.
A geração Alpha, os nascidos a partir de 2010, é a primeira 100%
digital. Embora a geração anterior, a Z, já tenha passado parte da
infância acessando a internet e ostentando seus primeiros smartphones,
os Alphas nasceram em um mundo transformado e dominado pelas inovações
tecnológicas, que mudaram radicalmente as relações sociais. A sociedade
digital não mais depende de mídias físicas para entretenimento ou
informação: consome conteúdo escolhendo o que ver, quando e como quiser.
Essa nova geração simplesmente desconhece o analógico.
O ser humano é um animal relacional. A forma como nos desenvolvemos é
na conexão com os outros. Aprendemos a falar ao ouvir nossos pais,
avós, tios e tias, pessoas do nosso ciclo. Definimos nossas identidades
na troca. Nos exemplos. Conforme reduzimos os componentes familiares e o
trabalho ultrapassa os limites antes mais claros entre vida pessoal e
profissional, a nova leva geracional se desenvolve mirando outros
espelhos. Pais e filhos dividem a atenção entre si com os dispositivos
eletrônicos. A criança Alpha se acostumou a disputar a atenção dos
adultos com as telas. E também a se entreter e perceber o mundo com essa
intermediação.
É um assombro observar a facilidade com que os Alpha operam tablets e
smartphones, transitando com desenvoltura por games, streamings,
diferentes aplicativos e vídeos do YouTube, TikTok e Instagram. A
sensação inicial de quem convive com essas criaturas digitais, mesmo os
mais novinhos, é de que essa é a geração mais inteligente que já
existiu. E há alguma dose de verdade nessa percepção. Ao menos, pode-se
antever como uma das características da geração Alpha
o fato de que ela vai ser a mais bem formada da história. “Eles são
considerados mais inteligentes porque têm uma capacidade de observar o
ambiente, de entender o que está acontecendo e transformar isso em
conhecimento [de maneira] mais habilidosa do que as gerações
anteriores”, explica Maysa Fagundes, mestre em Psicologia Clínica pela
PUC-SP com ênfase no estudo da geração Alpha. “Então, conseguem
transformar o aprendizado em conhecimento com um pouco mais de
facilidade.”
Parte dessa facilidade é inerente à própria visão de mundo desse
tempo. Um mundo absolutamente sem fronteiras, tanto pela globalização
quanto pela integração tecnológica. A vida em rede facilita a troca de
experiências entre pessoas em polos opostos do planeta. Os Alphas se
adaptaram a essa realidade das últimas duas décadas. É um universo tão
novo que até o conceito de tempo e espaço foi alterado. Os Alphas, mesmo
os não inteiramente alfabetizados, sabem trocar mensagens com parentes e
amigos da escola. E ampliam seu entorno para amizades fora do círculo
de convivência, em conversas virtuais esporádicas. Se para a geração X,
dos nascidos entre 1965 e 1980, o contato físico e os papos “olho no
olho” — ou ao menos por telefone — eram mais importantes, para os Alphas
os encontros podem ser espaçados. “O conceito de tempo para eles fica
diferente. Não precisa ser ao mesmo tempo. A gente pode ter uma conversa
com uma diferença de uma semana e se sentir super próximo”, explica
Fagundes.
Vale aqui abrir uma discussão. A teoria geracional criada pelas
ciências humanas busca entender o comportamento de uma sociedade nascida
em um mesmo período ou contexto histórico. Foi assim que os Baby
Boomers, nascidos entre as décadas de 1940 e 1960, começaram a ser
estudados. Foi o momento da explosão demográfica, quando os homens
voltavam para casa após o fim da Segunda Guerra Mundial. Mas definir
gerações, enquadrá-las, é, necessariamente, fazer um recorte. E, assim,
evidente, deixar nuances de lado. Não raro, pode-se cair na armadilha
dos estereótipos. Numa reportagem da The Atlantic
sobre o assunto, Dan Woodman, professor de sociologia da Universidade
de Melbourne que estuda rótulos geracionais, crava: "Provavelmente
ficaríamos irritados se fizéssemos com gênero ou raça o que ainda
conseguimos fazer com gerações”. Por outro lado, rotular uma geração
ajuda a descrevê-la e pode ajudar a compreendê-la. “Uma das coisas que
fazemos com rótulos geracionais é fazer afirmações sobre o quão
diferente essa turma é – eles são tão diferentes, quase estranhos em
suas atitudes, que você precisa pagar alguns especialistas para entrar e
explicá-los para você.” E paga-se muito bem, ele conta. Neil Howe, um
dos criadores do termo Millenials, há cerca de 30 anos, fez uma
lucrativa carreira em consultoria, palestrando e escrevendo sobre
gerações.
De qualquer forma, é com esses recortes que nos acostumamos a tentar
avaliar e prever comportamentos. O próprio Woodman reflete, sobre os
Alphas, que “eles ainda são crianças”. “Muitas coisas que atribuímos a
uma geração estão na maneira como ela começa a pensar sobre política, na
maneira como se envolve com a cultura e [se] é uma fonte de novos
movimentos sociais.” Mas compreende-se mais a fundo uma geração, de
forma mais substancial, quando eles entram na adolescência. Depois dos
Baby Boomers, sociólogos, antropólogos, cientistas sociais e outros
estudiosos das humanidades buscaram compreender como seus filhos se
diferenciavam de seus antecessores. Robert Capa, fundador da agência
Magnum, cunhou o termo geração X, por não encontrar uma definição
específica para os nascidos no pós-guerra. Mas a expressão se
popularizou após o lançamento da banda Generation X, criada pelo cantor
inglês Billy Idol e o lançamento do livro Geração X: contos para uma
cultura acelerada, de Douglas Coupland.
As gerações seguintes sempre foram definidas por letras, como a Y,
entre 1980 a 1995 (que também ficou conhecida como Millenial), e a Z, de
1995 a 2010. Esgotadas as letras do alfabeto romano, o sociólogo
australiano Mark McCrindle, que também tem uma agência de consultoria,
fez, em 2008, uma pesquisa — online, claro. Vários nomes associados à
tecnologia surgiram ali, como os “Onliners”, “Generation Surf” ou
“Technos”. Outros atribuíam à nova geração o peso de redimir os pecados
das anteriores, como “Regeneração”, “Geração Esperança”, os
“Salvadores”, “Geração Y-não”. McCrindle, porém, optou por adotar um
novo alfabeto. Para os bebês que nasceram a partir de 2010, chamou-os de
geração Alpha, a primeira letra grega.
Eu, robô
Voltemos a ela. Com uma exposição tão ostensiva às telas, o
comportamento dos Alphas também é moldado pelo conteúdo consumido nas
plataformas digitais. Os referenciais, dos ideais de beleza do corpo de
mulheres e homens até o de seus adereços, vêm com o filtro da
publicidade e dos influenciadores. “Estamos falando sobre todo um ideal
de existência física, que é manifestado de uma forma totalmente editada
nas redes”, explica Pedro Almeida, mestre em antropologia pela UFBA e
gestor de inovação. Ele ressalta que os conteúdos nesses espaços,
principalmente dos perfis profissionais, são editados para mostrar a
vida sempre por um ângulo positivo. Nas raras vezes em que o aspecto
negativo é abordado, as mensagens são pensadas de maneira a favorecer a
personagem no vídeo. É uma realidade fantasiosa.
Com isso, claro, vem uma crise na construção da autoimagem. A
referência para o jovem, que antes eram os pais e os professores, se
desloca para influenciadores digitais e artistas. Não que antes os
astros de Hollywood não assumissem esse lugar. Mas a convivência entre
fãs e ídolos estava restrita às páginas de jornais e revistas. Agora,
todos têm perfis nas principais redes sociais, compartilham seu
cotidiano, muitas vezes distorcido pelo glamour e a ostentação. São
objetos de desejo ao mesmo tempo acessíveis e inalcançáveis. O
pré-adolescente, sujeito a uma esperada crise de identidade que vem
quando ele não se reconhece mais como igual aos indivíduos de seu
círculo familiar, vai procurar sua “tribo” nesse ambiente. Um mundo
artificial onde os pratos são perfeitos, as pessoas são lindas,
saudáveis, e vivem em constantes viagens a locais deslumbrantes. Na
terra onde a grama do perfil alheio é sempre mais verde e florida. “É
uma crise da representatividade, da referência que antes estava
atribuída a uma paternidade, a um professorado e hoje isso está nas
autoridades digitais”, acrescenta Almeida.
Somam-se a elas os buscadores, como o Google. As dúvidas e os medos
dessa fase são levadas a uma ferramenta que não oferece necessariamente
as respostas, mas apenas interpretações de um algoritmo sobre o que
seria o resultado adequado para as pesquisas. Encontrar material
confiável online não é trivial, principalmente para os que acabaram de
desembarcar ali e ainda não entendem os perigos da desinformação e das
ciladas cibernéticas. A abundância de informação na rede tem evidentes
vantagens. Pode ser uma grande aliada da curiosidade das crianças. Mas a
quantidade não quer dizer que haja qualidade no consumo — tampouco
maturidade, intelectual ou emocional, para lidar com o conteúdo que
recebem. “Isso me preocupa, porque agora as crianças buscam essas
referências na internet e se validam por falas dessas autoridades
digitais. Mas para se construir como autoridade digital, principalmente
para uma criança, você não precisa ter muito conhecimento, bagagem.
Precisa apenas de um atrativo lúdico”, comenta o antropólogo.
Sempre alerta
Os efeitos dessa vida em tela vão além dos comportamentais. Sempre
envoltos em estímulos novas informações, os Alphas estão em permanente
estado de alerta. "Com isso, nós temos algumas questões de transtorno de
déficit de atenção e hiperatividade”, explica a psicóloga Maysa
Fagundes. “Mas também a atenção deles é o tempo todo desviada porque há
um letreiro, uma música, ou um vídeo, que é curto.” Pesquisadores da
Universidade do Sul da Califórnia monitoraram 2,6 mil adolescentes por
dois anos e descobriram
que jovens que fazem o uso excessivo de telas como celulares, tablets e
outras mídias têm duas vezes mais chances de apresentarem sintomas de
Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) que os demais.
Muito tempo com celular na mão, pouco tempo para descanso da mente.
As muitas horas de uso ao longo da noite têm reduzido a qualidade do
sono dos jovens, impactando diretamente no aprendizado e no rendimento
escolar. O professor de pediatria de Harvard,
Michael Rich, conduz estudos e atendimento clínico desse público em
Boston. Ele explica que o cérebro humano, em sua fase de crescimento,
está constantemente construindo conexões neurais. Ao mesmo tempo, vai
eliminado aquelas menos usadas, num processo de limpeza. Acontece que o
uso de mídias digitais desempenha um papel ativo nesse processo, ao
oferecer, nas telas, uma estimulação “empobrecida” em comparação com a
realidade. Ele defende que o mix entre experiências online e offline é
essencial. Mais ainda, o tédio. “O tédio é o espaço em que a
criatividade e a imaginação acontecem”, explica Rich.
Mas separar uma criança ou um adolescente de seu gadget não é
simples. Isso porque eles ativam uma área extremamente prazerosa e
gratificante. “Praticamente todos os jogos e mídias sociais funcionam no
que é chamado de sistema de recompensa variável, que é exatamente o que
você ganha quando vai ao Mohegan Sun [cassino nos Estados Unidos] e
puxa uma alavanca em uma máquina caça-níqueis. Equilibra a esperança de
que você vai se tornar grande com um pouco de frustração e, ao contrário
da máquina caça-níqueis, um senso de que basta melhorar suas
habilidades para chegar lá.”
O futuro
Como o sociólogo Dan Woodman, de Melbourne, explica, os Alphas ainda
são muito jovens para que se façam previsões de sua vida adulta. Mas dá
para se imaginar os desafios. Além de desenvolver algum nível de
controle sobre o uso dos dispositivos e redes sociais, a favor da
própria saúde física e mental, será necessário que os Alphas se
prepararem para as constantes transformações tecnológicas a que já estão
sujeitos. Segundo Pedro Almeida, “existe uma possibilidade muito grande
de termos uma crise no mercado de trabalho em nível global,
potencializada pela aceleração da automação”.
As escolas já começaram a buscar um novo modelo de ensino, mais
focado no desenvolvimento tecnológico e nas habilidades que cada
indivíduo apresenta. A reforma do Ensino Médio permite que os alunos
escolham a área do conhecimento em que queiram focar. Mas ainda há um
longo caminho a ser percorrido. Com a possibilidade de extinção de
profissões existentes e a criação de novas áreas de trabalho, muitos
desses jovens estão em formação para atividades que nem mesmo foram
criadas. “Essa criança, quando terminar o ensino médio, entrar num curso
superior, finalizar, entrar no mercado de trabalho... é uma escala de
tempo em que tudo pode ter mudado. Será que estamos dando uma educação
para essa criança viver o que ela vai necessitar daqui a pouco?”,
questiona Almeida. “Se não estamos preparando para o que já temos como
pontos essenciais da vida de hoje, imagine daqui a 15, 20 anos.”
Um ponto importante para a nova leva de profissionais é a diferença
de visão de carreira no mercado de trabalho. “Eles têm muita dificuldade
hoje no mercado porque a maneira como ele está formatado prevê que as
carreiras tenham uma continuidade. Você precisa de um tempo numa empresa
para crescer, se desenvolver. E eles entendem que o aprender e o se
desenvolver é experiência. Então, eu venho, fico nessa empresa seis
meses, já aprendi como é que faz, posso sair pra uma outra e aprender
outra forma de fazer”, explica Maysa Fagundes. Segundo a psicóloga, um
outro ponto de conflito é a falta de foco em uma única área de ação. “É
um grande desafio para eles conseguirem fazer uma escolha de carreira,
de profissão. Porque para eles, a vida não tem mais isso de você ser uma
coisa só a vida inteira. Você pode ser tudo ao mesmo tempo e parar e
começar de novo, toda hora.” É aquela alteração no conceito espaço e
tempo de que a geração Alpha é ao mesmo tempo vítima e protagonista. Mas
tudo indica que essa também é a geração mais preparada para inventar um
futuro — e um mercado — em que ela se encaixe perfeitamente.
Antes de mais nada, devo ressaltar que esta história ocorre em um bairro considerado pelo senso comum como sendo de “classe média” ou “classe média alta” do Município de Porto Alegre, RS.
Episódio 1
Por algum motivo morador ou moradores de um apartamento situado em um prédio alto e bonito, colocam em seu aparelho de som o Hino Nacional Brasileiro. O aparelho de som parece ser de excelente qualidade, pois o som chega até meu apartamento, em outro prédio, não só alto e claro como fazendo tremer os vidros da janela. Não se sabe também por qual motivo uma voz masculina, após a execução do Hino Nacional, começou a emitir brados na janela convidando a vizinhança a fazer turismo em Cuba, juntamente com palavreado que não vou citar aqui para não ser objeto de censura.
Episódio 2
Algum tempo depois, o referido cidadão decide realizar uma festinha iniciando em torno das 3 horas da madrugada. Realmente o aparelho de som é de primeira qualidade. O som das músicas escolhidas chegou no meu apartamento, que se localiza em outro prédio, com nitidez impressionante, mesmo com as janelas fechadas. Atualizei compulsoriamente meu repertorio de pagode e de música pop da moda.
Episódio 3
Passados alguns dias, as mesmas pessoas decidem fazer nova festa, também iniciando na madrugada. Desta vez o som do aparelho sonoro estava com volume baixo. Deduzi que os demais moradores do prédio enviaram recomendação formal a respeito. Mas nossos festeiros não se apertaram. A música era cantada com volume de voz invejável. Digo A MÚSICA, pois a mesma música era repetida constantemente, em sequência. Eu não conhecia, mas aprendi o início do refrão: “deixa acontecer naturalmente, eu não quero ver você chorar...”. De qualquer forma, consegui dar uma cochilada. Acordei às 05:45 horas com uma voz solitária, pastosa e arrastada, bradando: “deixa acontecer naturalmente, etc”.
O processo civilizador da humanidade parece estar longe de chegar a um patamar satisfatório, não é verdade?
As pessoas optam por acreditar no que querem porque não querem admitir que são ignorantes. Quanto mais aprendemos, mais entendemos que sabemos pouco. As pessoas que sabem pouco acreditam que sabem tudo. A rebelião contra o pensamento científico é muito perigosa...
Carlo Rovelli (Verona, 3 de maio de 1956. Físico e cosmologista).
Como a
tentativa de censura a um livro didático no norte do país mostra que, no
Brasil atual, a ignorância não é apenas uma tragédia nacional, mas um
instrumento político usado por milícias de ódio
Estudantes de uma escola pública no Rio de Janeiro.Silvia IzquierdoAP
No final de março, um grupo de pais de uma escola pública estadual da cidade de Ji-Paraná, no norte do Brasil, entregou um abaixo-assinado ao Ministério Público de Rondônia. Eles exigiam a retirada da sala de aula de um livro de ciências cujo conteúdo de educação sexual seria “impróprio” para alunos da oitava série do ensino fundamental. O desenho de um pênis ereto, usada pelas autoras da obra didática para explicar o funcionamento do órgão, é um dos principais motivos da tentativa de censura. O pinto duro não deveria estar lá.
Neste pequeno grande acontecimento há muitas tragédias. E todas elas contam de nós. Há quem ache bizarro. Eu só consigo achar triste. Seria mais fácil se este fosse um caso isolado, numa escola pública do interior de Rondônia, no norte do Brasil, lugar distante para a maioria. Seria mais fácil, mas falso. É preciso prestar muita atenção ao que está acontecendo no Brasil: incitados pelos novos inquisidores, cada vez é maior o número de fogueiras onde queimam livros, reputações e, principalmente, direitos.
1) Por que querem castrar um livro didático?
Uma das mães afirma ao portal G1, da Globo:
“Neste livro, eles incitam a criança, que está no início da
adolescência, a descobrir a vida sexual. Também vulgarizam a virgindade
da criança, dizendo que ela pode sofrer bullying e que, se ela perder a
virgindade, pode ser melhor”.
O coordenador regional de educação, José Antônio de Medeiros, diz ao portal UOL:
"Este livro traz uma abordagem sobre sexualidade e tem ilustrações, de
certo modo, até um pouco agressivas. Ficou muito explícito as simulações
de carícias, de estímulo sexual, e até umas imagens demonstrando
penetração, mostrando o órgão sexual masculino e feminino...”.
O vereador de Ji-Paraná, Johny Paixão (PRB), afirmou à TV Globo
que os temas do livro podem incitar à prática não consensual do sexo.
“Meu compromisso com eles (pais) é lutar com todas as forças possíveis
para que nós venhamos a retirar esse livro da sala de aula, porque ele é
tendencioso. As imagens são tendenciosas. Elas afloram a sexualidade.
Por que vou aflorar a sexualidade se as crianças não podem fazer sexo?”.
Dito assim, a impressão de quem lê as matérias e assiste às notícias sobre a “polêmica” é de que o livro Ciências 8o ano – Ensino Fundamental II da coleção Projeto Apoema (Editora do Brasil) é uma espécie de Kama Sutra escolar.
2) Mas o que diz o livro ameaçado de fogueira pelos novos inquisidores?
Tenho um hábito cada vez mais raro: antes de opinar sobre um livro ou
um texto, eu o leio. Esta frase pode ser interpretada como ironia.
Gostaria que fosse. Quero deixar explícito que não é. Infelizmente.
A seguir, um trecho do capítulo 5, intitulado “Adolescência”, do livro indicado para adolescentes de 13 anos ou mais:
“Nos últimos 30 anos, tem-se falado muito sobre sexualidade.
Propuseram-se diversas teorias, realizaram-se vários estudos, e o tema é
até hoje explorado nos jornais, nas revistas e nos programas de
televisão. No entanto, muitas vezes, há uma idealização da vida sexual,
dando a falsa impressão de que existe uma fórmula única de viver
plenamente a sexualidade, um padrão sexual, um modelo rígido ao qual
todas as pessoas devem se adaptar (...). Cada um pode viver muito bem, e
plenamente, do seu jeito e conforme sua orientação. O importante é
fazê-lo com responsabilidade e ter direito à informação e espaço para
expressar suas opiniões”.
Num outro ponto, o livro reproduz a fala de um médico ginecologista: “É preciso lembrar que o sexo
é bom quando é bom para os dois”. E segue: “O médico explica que ser
virgem não significa de maneira alguma estar fora do mundo atual, mas
estar em um momento de reflexão: ‘A pessoa virgem ainda não se sente
preparada para enfrentar a relação sexual com a maturidade que ela
merece. E isso independe de idade’”.
Em nenhuma das ilustrações os homens são eunucos: deveriam ser?
Há ilustrações de um homem na fase infantil, adolescente e adulta.
Nenhum deles é eunuco. Deveriam ser? Se fossem, haveria um problema, já
que homens castrados e com pênis decepados, na nossa sociedade, são
vítimas de violência.
Há também o desenho de um pênis “flácido” e de um pênis “em ereção”,
para ilustrar a explicação sobre anatomia e aspectos biológicos: “O
tamanho do pênis varia entre os homens e não tem relação biológica com
fertilidade nem com potência sexual”.
Outra reclamação se refere a uma série de ilustrações que ensinam as
mulheres a realizarem o autoexame de mamas, como um ato de prevenção ao câncer.
E, sim, nas imagens a mulher tem seios. Se não tivesse, haveria um
problema de informação, já que mulheres têm peitos, dos mais diversos
formatos e tamanhos, mas decididamente peitos. Sem contar que seria
difícil ensinar a fazer o toque, no exame preventivo, sem que houvesse
um seio no desenho. Como detectar um caroço ou uma alteração suspeita
num seio sem um seio? E haveria ainda mais uma complicação: mulheres
mastectomizadas, na maioria das vezes, perderam os seios devido ao
desenvolvimento de tumores, exatamente a doença que este capítulo do
livro pretender colaborar para prevenir.
Reproduzi aqui os principais pontos atacados. Mas o livro ainda não
foi proibido e pode ser lido por todos, para que tirem suas próprias
conclusões.
Uma das páginas que gerou o abaixo-assinado.Reprodução
3) Como ler a tentativa de censura?
Minha primeira hipótese é a de que as pessoas que atacaram o livro
não leram o livro. Lembrando que ler é bem diferente de apenas passar os
olhos. A diferença entre o que é dito sobre este capítulo do livro e o
que está de fato escrito no livro é enorme, como se pode ver nos
exemplos citados. Em alguns momentos, o que dizem que o livro disse é
exatamente o oposto do que o livro de fato diz. Como é possível?
Aqui, estamos diante de duas tragédias contemporâneas, explícitas nas redes sociais da internet.
A primeira delas é que as pessoas não leem, mas mesmo assim jogam o
texto na fogueira. Ou leem apenas o enunciado e dão uma olhada nas
imagens e “queimam” o livro. E, como ler exige tempo e atenção, mas
reproduzir o discurso de ódio leva apenas um segundo, em pouco tempo as
chamas já incineraram o alvo do ataque. Isso vale para livros, como é o
caso, vale para reputações. Assim, livros que exigiram anos de pesquisa
de seus autores, como é o caso deste, ou reputações construídas ao longo
de uma vida inteira, são destruídas sem que uma parte dos linchadores
perceba a violência e a amplidão do seu ato.
A segunda tragédia é a da própria educação.
A internet escancarou uma realidade conhecida, mas cujas proporções não
tinham ficado tão claras até então. Muitos leem de fato o texto, o
livro, mas não conseguem interpretá-lo. Qualquer frase um pouco mais
elaborada ou mais longa ou menos direta se torna um enigma. Ironias não
são compreendidas, metáforas são decodificadas como literalidades.
Pessoas têm alcançado a universidade sem conseguir interpretar um texto.
É possível que parte destes pais – parte – tenha lido o capítulo do
livro e não tenha conseguido interpretá-lo, adotando assim a versão que
estava disponível. E se a versão que estava disponível era a da
necessidade de proteger os filhos do mal, ali representado pelo livro,
podemos supor que pode ter se tornado fácil aderir ao protesto. Aderir
sem uma reflexão maior que poderia, inclusive, ter sido proporcionada
pela escola.
Quando alguém passa pelo sistema educacional e
chega à vida adulta sem condições de interpretar o que lê esta pessoa é
também uma vítima
É fácil culpar os pais e apontar uma suposta ignorância.
E, vale a pena deixar claro, uso ignorância neste texto no sentido
daquele que ignora um fato ou informação, daquele que não teve ou não
tem acesso ao conhecimento. Como parte de uma sociedade, somos todos
responsáveis pela tragédia educacional. É muito triste que as pessoas
não consigam ler ou interpretar um texto ou por falta de acesso à escola
ou porque a escola que deveria ensiná-lo não foi capaz de fazê-lo.
Quando alguém passa pelo sistema educacional e chega à vida adulta
sem condições de interpretar o que lê isso representa uma traição àquela
pessoa, com graves consequências para a sua vida e para a vida da
comunidade. Assim, se parte destes pais são algozes de um livro, são
também vítimas de um sistema educacional em que, com poucas exceções, a
escola pública tem prédios precários e cheios de problemas, a maioria
dos professores
é mal paga e uma parcela deles é mal preparada, uma escola pública onde
falta até mesmo o básico. E, ainda assim, contra tudo, muitos
profissionais lutam para criar espaços de qualidade e educar a
população.
É importante lembrar ainda que os pais e mães deste abaixo-assinado
fizeram um percurso. Eles levaram suas questões até a autoridade na área
da educação e buscaram a Câmara de Vereadores. O coordenador regional
de educação e o vereador que assumiu a “causa” têm uma responsabilidade
pública e devem responder publicamente por ela. Como se vê nas matérias,
seguiram o caminho do ataque fácil. Do representante da educação, em
especial, seria legítimo esperar uma abordagem mais responsável.
Contradições não devem ser contornadas, mas acolhidas e enfrentadas.
Este episódio, surgido a partir do susto de uma mãe, poderia ter se
tornado uma oportunidade de encontro, de diálogo e de reflexão coletiva,
inclusive dentro da escola. Mas, por irresponsabilidades variadas, da
qual não escapa a imprensa,
assumiu de imediato contornos de fogueira. É assim que os cada vez mais
escassos espaços de debate estão sendo interditados neste país.
4) O que o pinto duro tem a ver com isso?
Não é possível ignorar o tema que alimentou a fogueira. Fosse outro,
talvez a leitura tivesse se mostrado mais acessível e a interpretação do
texto não sofresse tanta interdição. Mas era de educação sexual que se
tratava. E de um mito (ou seria tabu?) muito difícil de ser desmontado,
que é o da criança assexuada. Ele aparece em todas as falas reproduzidas
pelas matérias da imprensa. A ideia de uma criança sem sexualidade se
confunde com a própria invenção da infância na modernidade, já que em outros períodos históricos pessoas desta faixa etária não eram vistas desta maneira.
Os principais pensadores da infância derrubam esse mito. Mas ele
persiste. E aparece das mais variadas formas, muitas delas
inconscientes. Se alguém observar as matérias de imprensa, por exemplo,
vai descobrir frases como esta: “Homens, mulheres e crianças...”. Ou
seja, as crianças não são homens e mulheres,
mas seres assexuados. Eu mesma cometia esse equívoco, sem perceber o
que fazia, até ser alertada por uma amiga. Passei a usar então “Adultos e
crianças, homens e mulheres...”.
A ideia de que as crianças são “puras” e que uma das provas disso é
que não teriam sexualidade é amplamente difundida no senso comum. E
assim os pais acabam por reprimir qualquer manifestação que desminta
essa crença. Para piorar, a repressão é respaldada por algumas religiões.
Isso não significa que as crianças terão relações sexuais, obviamente.
Seu corpo nem está preparado para isso. Mas significa que vão se tocar,
descobrir o corpo, e que não há nada de errado com isso. Pelo contrário.
É saudável que se descubra também o próprio corpo na idade em que tudo
se descobre.
Aos pais cabe orientar e respeitar seus filhos e filhas, ajudando-os a
se tornarem adultos capazes de respeitar o corpo e o desejo do outro e
capazes de respeitar seu próprio corpo, fazendo do sexo uma experiência
prazerosa e responsável quando o momento chegar. E é também pelo
conhecimento que se conhece e se respeita o próprio corpo e o corpo do
outro. A ignorância é uma grande aliada da violência que se faz consigo
mesmo e com o outro.
Se é mais fácil reprimir as crianças exatamente porque são crianças e
dependem para tudo dos pais, o mesmo não se pode dizer dos filhos na
fase que se nomeou “adolescência”. E este talvez seja o susto de parte
destes pais. Não há nenhum mistério nisso. Qualquer um, eu e você,
estivemos lá (na adolescência) e nos lembramos muito bem. Estes pais
também devem se lembrar que um dos principais interesses – ou talvez o
principal interesse – era justamente sexo.
Assim, acusar o livro, como fez uma mãe e o vereador, por fazer
“aflorar o sexo” em adolescentes de 13 anos ou mais é uma negação
completa da realidade. Aos 13 anos, a maioria dos humanos quase só pensa
nisso, o que não significa que vai fazer sexo com um parceiro ou
parceira de imediato, passar do pensamento ao ato, da masturbação à
relação sexual com outro corpo. Esta é uma decisão que cada um deverá
tomar no seu tempo, com conhecimento e responsabilidade e respeito com
seu corpo e com o corpo do outro, como o próprio livro tão bem sublinha.
Do mesmo modo, considerar que o desenho de um pênis ereto vai
surpreender algum adolescente não faz qualquer sentido. Com permissão
para uma brincadeira, porque o tema deveria ser também lúdico, o que
talvez surpreenda mais um menino nesta faixa etária é o desenho do
“pênis flácido”. Do mesmo modo, é comum uma menina conferir várias vezes
por dia no espelho se seu peito cresceu, apalpando-o e acariciando-o,
sem qualquer problema em ter prazer com isso. Assim como é natural tocar
seu pênis ou sua vagina para descobrir o que lhe dá prazer e conhecer
seu corpo, o que também vai ajudá-lo a ter prazer e dar prazer ao outro
quando o dia chegar.
Debater este tema é responsabilidade também da escola. E os pais
deveriam enxergar nela uma aliada para que seus filhos tenham de fato
educação sexual não apenas em uma disciplina, mas em todas. E, assim,
sentirem-se à vontade para discutir as transformações que lhe causam
angústia e conhecer o seu corpo não só pela biologia, mas por todas as
áreas que atravessam o tema da sexualidade. O conhecimento é o principal
fator de prevenção de gravidez adolescente indesejada, doenças sexualmente transmissíveis, violências sexuais e bullying.
É pelo conhecimento e pelo diálogo que adolescentes poderão tomar as
melhores decisões sobre a sua vida e construir, no seu tempo, uma vida
sexual responsável e prazerosa.
Quem lê o livro jogado na fogueira percebe claramente o esforço das
autoras para cumprir este papel. É uma pena que seus detratores não
consigam – ou não queiram – enxergar que livros como este, assim como
professores que ajudem os estudantes
a interpretá-los e debatê-los, são justamente os que não deixam os pais
sozinhos num mundo tão complicado e violento, em que os adultos têm se
sentido tão desamparados para educar crianças e adolescentes. É abrindo
os livros – e não fechando-os – que os pais estariam melhor
acompanhados.
5) Onde se esconde a maldade?
Ainda que seja improvável (mas não impossível) que o livro seja
formalmente banido das salas de aula, como quer uma parcela dos pais
desta escola, a obra já foi “queimada” publicamente. A fogueira já foi
acesa e ardeu, porque as fogueiras hoje são sem matéria (por enquanto),
mas suas labaredas têm longo alcance e graves consequências.
Diante da repercussão, é possível que o Ministério da Educação,
numa próxima seleção, não escolha este livro. É possível que os
professores das escolas privadas prefiram pular esta obra para não se
arriscar a polêmicas. E é possível que os autores de livros didáticos
passem a contornar o tema da educação sexual em suas obras, para se
protegerem de eventuais inquisidores. Assim como jornalistas,
políticos e intelectuais já começam a evitar certos temas para se
protegerem de linchamentos que atingem não só a eles, mas começam a
alcançar suas famílias.
Depois da fogueira pública, o resto acontece em silêncio. E acontece
(também) por causa do silêncio. É desta maneira insidiosa que a
ignorância se infiltra. É por esse caminho sombrio que o medo penetra e
domina. É por essa técnica que historicamente os fascismos subjugaram as mentes e os corpos e produziram seus crimes. É preciso prestar muita atenção ao que está acontecendo no Brasil.
Por décadas a escola pública foi abandonada, enquanto o ensino
privado foi se tornando um negócio cada vez mais lucrativo, cada vez
menos pedagógico e mais empresarial. Por décadas os professores foram
desvalorizados, os prédios foram sendo depredados, a escola se afastando
mais e mais da comunidade – e a comunidade se afastando mais e mais da
escola. Por décadas muito poucos se perguntaram seriamente como se
sentiam alunos em escolas às vezes literalmente caindo aos pedaços, sem
equipamentos básicos, em salas de aula ocupadas por professores mal
pagos, sobrecarregados e, em alguns casos, despreparados. Por décadas um
número crescente de pais passou a se esfalfar para conseguir dinheiro
para matricular os filhos numa escola particular, mesmo que ruim, e
aqueles que tinham mais condições de fazer a disputa por qualidade de
educação deixaram a escola pública. Permaneceu quem não pôde sair – e
permaneceram os idealistas, sempre em menor número. A escola pública
passou a ocupar o lugar de resto. E como resto professores e alunos
foram tratados.
Nos últimos anos, um movimento com muita potência surgiu. Estudantes passaram a ocupar as escolas e, transgressão das transgressões, passaram a cuidar delas e a exigir qualidade na educação. Como restos eles não incomodavam. Como protagonistas, cidadãos, foram criminalizados como “invasores” e “vândalos”.
Mas também nos últimos anos um movimento muito mais articulado se
organizou. Ele não é novo, mas ganhou uma articulação nova. E sua
principal arma é justamente a deseducação que a escola no lugar de resto
produziu. Sua principal arma é a ignorância e a falta de conhecimento,
que geram adesão em vez de reflexão, gritos em vez de diálogo. Fogueira.
Depois da corrosão da educação pública produzida pela ditadura civil-militar
(1964-1985), a resposta dos governos democráticos que vieram a seguir
foi insuficiente para a urgência do problema. Houve avanços
significativos em algumas gestões, como a de Fernando Henrique Cardoso e de Luiz Inácio Lula da Silva,
mas muito menores do que seria necessário para uma mudança que
produzisse transformação estrutural. E, como todo vazio acaba sendo
ocupado, ressurgiu o velho engodo embalado em papel novo e disseminado
para milhões de seguidores nas redes sociais: o problema da escola
pública é “moral” – e “de doutrinação ideológica”. Percebendo o risco,
era preciso ocupar. Isso fica explícito no momento em que os estudantes
tomam o partido da escola pública e restauram o valor da política, mas são duramente reprimidos não só pela polícia, mas também pelas milícias de ódio em defesa do projeto nomeado “Escola Sem Partido”.
Nesta manipulação, vendida à sociedade como um projeto restaurador da
ordem (mas qual ordem?), o problema não seria a escola caindo aos
pedaços, os professores mal pagos, a falta de estrutura material e
pedagógica, mas uma suposta “doutrinação ideológica” praticada por professores “esquerdistas”, “comunistas”
e moralmente desvirtuados a serviço do mal. (Com a esquerda mal parando
em pé, isso deveria ser piada, mas não é, já que uma das consequências
da ignorância é sua vítima não entender piada, muito menos humor ou
ironia.)
Diante do medo e do desamparo, sentimentos que crescem em qualquer
crise, a resposta moral sempre cola. Assim como um inimigo forjado. E
cola mais ainda quando não existe uma proposta alternativa que as
pessoas possam compreender e confiar. O problema então torna-se o outro
– e ele deve ser destruído. Diante de pais assustados, com todo o
direito tanto de querer que seus filhos sejam bem educados como de
concluir que não estão sendo, qualquer mão estendida, mesmo que seja na
forma de uma resposta estapafúrdia e violenta, geradora de mais
desconhecimento e ignorância, é agarrada.
E assim pais são incitados por milícias de ódio na internet a
tornarem-se inquisidores. Em vez de irem à escola para dialogar,
compartilhar e reivindicar, construir junto, são estimulados a apontar o
dedo e a linchar. Na época da ditadura, este serviço odioso era
realizado nas escolas públicas por professores cooptados pelas forças da
repressão, que espionavam os colegas e faziam seus relatórios, enquanto
ganhavam pontos na carreira. Hoje, o que antes acontecia nos cantos
escuros é amplamente incitado nas redes. A infâmia é vendida como
virtude moral.
Construir é difícil, lento e dá trabalho. Queimar é imediato. E nada
mais cômodo do que poder extravasar sua frustração culpando o outro e,
se possível, eliminando-o. Ou deletando-o do espaço público. A
estratégia é velha, muito velha. A única novidade é a entrada da
internet na equação. Mas como a história não foi bem ensinada para as
gerações que aí estão, ela é vendida e comprada como nova.
6) O que diz a autora do capítulo atacado?
Nos últimos anos, episódios de censura ou tentativas de censura a
livros didáticos e de literatura têm pipocado pelo país. Alguns casos se
tornam conhecidos, outros são abafados. É raro professores,
bibliotecários e autores se arriscarem a defender a obra publicamente.
Em geral, temem a demissão e, mais recentemente, o linchamento pessoal.
Algumas editoras costumam aconselhar seus autores a silenciar, na
expectativa de que o incêndio se extinga com menos prejuízos. Na minha
opinião, isso é um erro e uma omissão de responsabilidade pública.
Tentativas de censura e ataques a livros e autores dizem respeito a toda
sociedade e devem ser enfrentados como o que são.
O livro de Ciências para o 8o ano, da coleção Projeto
Apoema, é assinado por Ana Maria Pereira, Margarida Santana e Mônica
Waldhelm. O capítulo atacado foi escrito por Mônica. Ela é professora do
Ensino Médio, titular de Biologia no Centro Federal de Educação
Tecnológica do Rio de Janeiro (CEFET/RJ). Tem 50 anos de idade e 33 de
magistério. É doutora em Educação pela PUC-Rio e consultora da Unesco.
Enviei a ela algumas perguntas por e-mail e ela respondeu a todas elas. A
seguir, os principais pontos: Pergunta.Como você se sentiu ao tomar conhecimento deste episódio? Resposta. Confesso que custei a entender o motivo
alegado para o abaixo-assinado feito pelo grupo de mães e pais. Ao ler e
ouvir as declarações não reconhecia naquelas palavras o conteúdo do
livro: Pornografia?
Vulgarização do sexo? Estímulo à promiscuidade? Imagens fortes? Sabia
de todo cuidado que tivemos ao produzir cada volume e constatei que
havia um ruído na comunicação ou algo mais preocupante por trás desta
ação. Foi um misto de surpresa, perplexidade e tristeza. P. O livro já havia sofrido algum tipo de ataque antes? R. Esta coleção em questão não. Recebemos um parecer
muito positivo na última avaliação do MEC no âmbito do Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD), e os livros são adotados por escolas
públicas e privadas de todo o Brasil. Contudo, este campo da sexualidade
é tradicionalmente espinhoso. Ao longo de 20 anos como autora,
visitando escolas de Norte a Sul e conversando com os colegas
professores, já ouvi alguns relatos de situações delicadas. Em uma
escola, embora os professores manifestassem explicitamente o desejo de
utilizar nossos livros, a presença de imagens de vulvas e pênis foi
motivo de controvérsia por parte da coordenação pedagógica. Também
soubemos de uma escola na qual uma professora de Ciências venceu a
resistência da coordenadora e adotou a coleção, mas depois teve
problemas com a mãe de uma aluna. Esta mãe simplesmente grampeou as
páginas do livro que continham figuras de vulvas, pênis, camisinha e
similares. Mas foram casos isolados e resolvidos com conversa e
mediação. P. Você escreveu a parte relativa à educação sexual. Quais são os cuidados que toma nas suas escolhas? R. Como docente – e até quando fui aluna – sempre me
incomodou a maneira como o corpo historicamente é apresentado e, deste
modo, estudado nos livros didáticos de Ciências. O tema sexualidade
humana quase sempre é abordado nos capítulos finais dos livros, onde o
professor em geral nunca chega durante o ano letivo – e de modo reduzido
ao aspecto da reprodução. As figuras aparecem quase sempre na forma de
esquemas em cortes transversais ou longitudinais. Com seu corpo ainda
desengonçado e com acne, o adolescente se depara, nos livros
didáticos, com figuras e modelos “perfeitos”, bem torneados e com
dentes corretos e, então, não se reconhece como tal. Também acho
difícil um aluno da Educação Básica reconhecer-se nas estranhas figuras
assexuadas. Ainda hoje, em muitos livros, pênis e vulvas/vaginas, em
geral, só aparecem em cortes "estratégicos", expondo apenas sua
anatomia interna. Além disso, com imagens humanas idealizadas e
retocadas no computador, os livros acabam por reforçar o que faz a
produção mídiatica predominante, que hipervaloriza a aparência física
e acaba por determinar padrões estéticos. Estes “padrões” são
buscados febrilmente por jovens nas academias de ginástica e no uso de
anabolizantes. Também se refletem nos consultórios médicos, onde vão
em busca de "reparos", assim como no avanço de distúrbios como bulimia e anorexia. P. Esta foi a razão para a sua investigação no mestrado? R. Este incômodo com certeza motivou minha pesquisa no mestrado em Educação realizada na Universidade Federal Fluminense
(1998), na qual investiguei a produção sociopolítica do corpo nos
livros didáticos de Ciências editados nas décadas de 1960 e 1990. Ao ser
convidada logo depois para escrever livros didáticos, tive a
oportunidade de propor um material que modificasse, ainda que em parte,
este cenário preocupante. Hoje é consenso no meio educacional que o
currículo escolar não pode estar desvinculado da realidade dos alunos,
tendo em vista que uma das funções da escola é a preparação para a
vida cidadã. No contexto desta discussão, entendo que as questões
relativas ao corpo, gênero, sexualidade e papeis sociais devem ser
trazidas para sala de aula, dado o impacto que provocam na vida dos
alunos. Muitas vezes, porém, as angústias e tabus acerca da
sexualidade estão baseadas no desconhecimento da anatomia e da
fisiologia do próprio corpo. Daí a importância de criar condições
para que os professores possam conversar com os alunos, levando-os a
expressar suas crenças e seus mitos em relação ao corpo e à
sexualidade como ponto de partida para o estudo dos aspectos biológicos
do sexo. No volume didático alvo da polêmica, num total de seis
unidades, optamos por abordar a sexualidade na terceira unidade.
Queríamos evitar que este tema fosse relegado a segundo plano caso
ficasse no fim do livro. O texto escrito por mim foi objeto de cuidadosa
análise também das outras autoras e da equipe da editora, pois não
queríamos correr o risco de produzir nem reforçar subjetividades
hegemônicas que levassem a preconceitos e discriminação por gênero,
etnia, orientação sexual etc. Em diversos momentos, na versão para o
professor, colocamos “bilhetes” sinalizando para a importância de
debater determinados tópicos e atentar para atitudes preconceituosas.
Ao abordar as características anatômicas femininas e masculinas
incluímos também representações de corpos inteiros e com as
estruturas externas visíveis. Cuidamos para não reforçar a “pedagogia
do terror”, associando sexualidade somente à doença ou à gravidez
indesejada. Destacamos a importância do cuidado com o corpo,
associando-o à promoção da saúde e à vivência prazerosa e
responsável da sexualidade. P. Como você insere esse episódio no contexto mais amplo do país? R. Não há como negar que uma onda conservadora vem
assolando nosso país. E isto tem provocado repercussão e embates
travados tanto no campo das ideias quanto das ações e até das políticas
públicas. No campo educacional não é diferente. Tentativas de censura e
cerceamento de práticas docentes e uso de materiais didáticos têm sido
recorrentes e até apoiadas por representantes políticos que se dizem
“defensores da moral e bons costumes” das famílias brasileiras. A
retirada dos termos “gênero e orientação sexual” da última versão do
texto da Base Nacional Comum Curricular entregue ao Conselho Nacional de
Educação não será inócua. Embora o MEC insista que as escolas terão
autonomia para construir seus currículos, a não explicitação do termo
esvazia sua legitimidade e importância. Currículo é um território de
poder e de embates. Esta omissão no documento norteador deixa autores de
livros didáticos e docentes sem respaldo legal para abordar o tema. E
pode simplesmente impedir a discussão sobre diversidade sexual,
estereótipos de gênero e atitudes homofóbicas
nas escolas. Iniciativas como a tentativa de censura ao nosso livro de
Ciências, a livros de Geografia que incluem famílias homoafetivas, a
periódica conclamação em redes sociais a famílias para que induzam seus
filhos a filmarem episódios de “doutrinação” nas escolas, assim como um
vereador querendo “fiscalizar” as aulas e vários projetos de lei em
andamento são elementos de um cenário que causa extrema preocupação com a
liberdade de expressão dos educadores em geral. A propagada
neutralidade religiosa, sexual e política não tem nada de neutra.
Reflete as visões e crenças de um grupo conservador na sociedade. P. Como você interpreta a manifestação destes pais? O que, afinal, eles temem, a ponto de querer proibir o livro? R. Acho que há vários aspectos envolvidos. Um deles é
o que envolve o desejo e a crença de controle total sobre os filhos
(incluindo seus corpos, sexualidade, formas de pensar e ver o mundo). E
sei que este desejo não é mal intencionado. Um outro se refere ao fato
de cada pai e mãe como pessoa ter seu conjunto de crenças e referências
culturais influenciado por experiências pessoais, familiares, religiosas
e outras. E embora a escola pública seja para todos, alguns pretendem
impor sua forma de ver o mundo como verdade absoluta. Então o racista
não quer ver o racismo discutido, o homofóbico não quer que se aborde
gênero e preconceito, o misógino acha desnecessário falar sobre feminismo
e por aí vai. Paradoxalmente, constato que enquanto em várias escolas e
livros de Ciências a questão da sexualidade é ignorada ou abordada
superficialmente, no dia-a-dia é crescente a erotização da infância e
da adolescência. A realidade é bem diferente do que muitos pais querem
admitir. Adolescentes procuram informações onde podem. E a escola pode
trazer esta informação de modo adequado. Sabemos que não basta informar,
é preciso debater, problematizar, levá-los a refletir, a construir
projetos de vida. Enquanto os pais acham que seus filhos com 13-15 anos
ainda não devem discutir sexualidade e ver imagens de pênis, o
Ministério da Saúde reduziu a idade mínima para a vacinação contra HPV
para 9 anos para garantir imunização antes do início da vida sexual.
Soma-se a isso o alarmante número de grávidas adolescentes, o
crescimento do HIV entre jovens, o suicídio e homicídio de jovens
homossexuais... P. E como você avalia a relação entre escola e comunidade? R. Ainda existe falta de diálogo entre muitas
escolas e as famílias dos alunos. Uma maior aproximação, buscando
esclarecer a proposta pedagógica, a realização de projetos envolvendo a
comunidade e trabalhos intersetoriais (com o posto de saúde local, por
exemplo) são estratégias que reforçam a parceria e trazem sinergia ao
processo educativo. Nosso livro propõe várias atividades envolvendo a
comunidade por reconhecer a importância desta interação. A sexualidade
envolve pessoas e, consequentemente, sentimentos, que precisam ser
percebidos e respeitados. Envolve também crenças e valores, assim como
ocorre em um determinado contexto sociocultural e histórico, o que tem
papel determinante nos comportamentos. Nada disso pode ser ignorado
quando se debate a sexualidade com os jovens. O papel de problematizador
e orientador do debate, que cabe ao educador, é essencial para que os
adolescentes aprendam a refletir e a tomar decisões coerentes com seus
valores, no que diz respeito à sua própria sexualidade, ao outro e ao
coletivo, conscientes de sua inserção em uma sociedade que incorpora a
diversidade. Consideramos que silenciar – nos discursos e práticas – no
âmbito das questões relativas à sexualidade humana tem implicações
gravíssimas na formação de nossas crianças e jovens. P. Como você nomearia o que está acontecendo? E como um professor pode enfrentar essa conjuntura? R. Como autora, professora, mãe e cidadã, reforço e
valorizo a necessidade de um movimento de resistência organizado e
coletivo – e portanto com mais impacto e eficiência – por parte dos
educadores, frente às recentes e sistemáticas ações que buscam tirar a
autonomia docente e isolar a sala de aula e a escola da vida real,
alijando os alunos do debate acerca de questões contemporâneas cada vez
mais relevantes. A busca por uma sociedade pautada na solidariedade, na
alteridade, na justiça social, no respeito e na convivência pacífica
passa pelo reconhecimento da diversidade como positiva. Questionar as
muitas formas de preconceito
e de exclusão social é papel de uma escola que pretende ajudar a
construir um Brasil menos sexista, menos racista e menos homofóbico – e
isso deve começar na Educação Infantil.
7) Por que a ONU se manifestou?
Apenas nas últimas semanas, vários golpes articulados acentuaram a
crise educacional e ética do país. E colaboraram para aumentar a
violência e ampliar a ignorância no âmbito da escola pública. Tanto que,
em 13 de abril, a ONU fez um comunicado
manifestando sua preocupação com ameaças ao direito à educação e à
liberdade de expressão no Brasil e pedindo que o governo brasileiro se
manifeste em 60 dias.
No documento, os relatores das Nações Unidas apontam o projeto
“Escola Sem Partido” e as “visitas-surpresa” a escolas municipais feitas
pelo vereador de São Paulo Fernando Holiday
(DEM) como motivos de apreensão. O vereador entrou nas escolas para
“analisar se há doutrinação no conteúdo que está sendo dado nas salas de
aula”. No vídeo divulgado por ele se anuncia: “Escola Sem Partido.
Holiday faz visitas supresas em escolas de SP e quer que você denuncie
casos de doutrinação”.
Segundo a Folha de S. Paulo, o episódio provocado pelo vereador quase causou a demissão do secretário de Educação de São Paulo, Alexandre Schneider.
O secretário, respeitado na área educacional, repudiou com veemência a
tentativa de intimidação dos professores, citando a Constituição. Em
seguida, foi vítima de uma campanha de desqualificação promovida por grupos articulados na internet. Segundo o jornal, o secretário não teria se sentido apoiado pelo prefeito João Doria
(PSDB). O prefeito pode ter preferido manter o apoio das milícias de
ódio na internet, que o inflam nas redes como o grande “gestor”.
No comunicado, os relatores da ONU afirmam que, se os projetos de lei
baseados no Escola Sem Partido forem aprovados, isso pode significar
restrição indevida ao direito de liberdade de expressão de alunos e
professores no Brasil, com impacto no ensino do país em diversos temas.
Alertam ainda que o Escola Sem Partido pode representar “censura
significativa” e restringir o direito do aluno a receber informação. O documento
manifesta ainda a preocupação com o impacto destas ideias sobre as
políticas públicas, como a retirada da expressão “orientação sexual” da
Base Nacional Comum Curricular do país, que define as competências e os
objetivos do aprendizado dos estudantes em cada etapa da vida escolar.
Os relatores afirmam também que a mudança contraria a recomendação da
ONU para que o país reforce os programas de combate à homofobia.
Escola Sem Partido é um projeto idealizado pelo advogado Miguel Nagib
em 2004, nos últimos anos adotado como bandeira pelas milícias de ódio
na internet e por algumas das vozes mais atrasadas do Legislativo. A
escolha do nome é esperta. Ela sugere uma finalidade legítima: a de
impedir que professores façam proselitismo político-partidário em sala
de aula ou o que tem sido difundido como “doutrinação ideológica”. Na
prática, o Escola Sem Partido propõe exatamente o que afirma combater:
doutrinação ideológica e proselitismo. Mas para isso é preciso
capacidade de interpretar texto e de “ler” a realidade, justamente o que
a Escola deveria promover, mas tem fracassado por todos os motivos
conhecidos.
O nome do projeto, que já era esperto quando foi concebido, tornou-se
ainda mais eficiente num momento em que os principais partidos
políticos do país estão atolados na lama exposta pela Operação Lava Jato
e parte da classe política virou caso de polícia. Assim, em vez do
“político”, estes grupos lançam a figura do “gestor”, aquele que
supostamente está “limpo” porque não foi enlameado pela política,
reduzida por eles a palavrão.
Se há dificuldade de interpretar textos, como esperar que exista
interpretação de subtextos e de entrelinhas? Quantos vão perceber que
negar a política, uma das criações mais potentes do pensamento humano,
responsável por alguns dos maiores avanços da humanidade, é um ato
político? E que se autodenominar “gestor” é uma esperteza política de um
político esperto?
De novo estamos de volta à tragédia da educação. E agora ela ecoa
para muito além dos muros das escolas. A ignorância não é apenas uma
tragédia, mas um instrumento. E, no Brasil, este instrumento nunca foi
usado de forma tão articulada como hoje.
8) Quem silencia?
Como a história ensina, para quem teve a chance de aprender, a
opressão se instala devagar. É um acontecimento aqui, outro lá,
aparentemente sem conexão. E assim ela vai se infiltrando primeiro nas
franjas do cotidiano, nas periferias dos debates. E depois vai avançando
para a área central até tornar-se o próprio centro. A cada novo
linchamento, a cada nova fogueira, e elas são ateadas pela direita, mas
também pela esquerda, muitos têm se calado. Há gente demais se
esquecendo de sua responsabilidade pública e soprando as brasas para
longe de si. Muitos que têm espaço para falar e ressonância para ser
escutado têm silenciado, na esperança de que a vítima mais recente da
inquisição promovida nas redes sociais e em certa mídia se incinere
sozinho na fogueira da sua reputação e que nenhuma brasa caia no seu
quintal. Lamento dizer, mas vai cair. E aí, talvez, seja tarde demais
para reagir.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook:@brumelianebrum
Certa
vez, aconteceu um incêndio num bosque onde se encontravam alguns
porcos. Estes foram assados pelo incêndio. Os homens, acostumados a
comer carne crua, experimentaram os porcos assados e acharam deliciosos.
Logo, toda vez que queriam comer carne assada incendiavam o bosque...
O
sistema foi desenvolvido e aperfeiçoado. Mas nem sempre as coisas iam
bem: às vezes os animais ficavam queimados ou parcialmente crus; outras,
de tal maneira queimados que era impossível utilizá-los. Como era um
procedimento montado em grande escala, isso preocupava muito a todos,
porque, se o Sistema falhava, as perdas ocasionadas eram igualmente
grandes. Milhões de pessoas alimentavam-se só de carne assada e também
muitos eram os que tinham ocupação nessa tarefa. Portanto, o Sistema
simplesmente não devia falhar. Mas, curiosamente, à medida que se fazia
em maiores escalas, mais parecia falhar e maiores perdas parecia causar.
Em
razão das deficiências, aumentavam as queixas. Já era um clamor geral a
necessidade de se reformar profundamente o Sistema. Tanto assim que,
todos os anos, realizavam-se congressos, seminários, conferências e
jornadas para achar a solução. Mas parece que não acertavam o
melhoramento do mecanismo, porque no ano seguinte repetiam-se os
congressos, os seminários, as conferências e as jornadas. E assim
sempre.
A
causa do fracasso do Sistema, segundo os especialistas, podiam ser
atribuídas ou à indisciplina dos porcos, que não permaneciam onde
deviam, ou à inconstante natureza do fogo, difícil de controlar, ou às
árvores excessivamente verdes, ou à umidade da terra, ou ao serviço de
informações meteorológicas que não acertava o lugar, o momento e a
quantidade de chuva, ou...
Como
se vê, as causas eram difíceis de determinar, porque na verdade, o
Sistema para assar os porcos era muito complexo. Fora montado uma grande
estrutura; uma enorme maquinaria com inúmeras variáveis tinha sido
institucionalizada. Havia indivíduos dedicados a acender – os
incendiadores – que, ao mesmo tempo, eram especialistas de setores.
Havia incendiadores da Zona Norte, da Zona Oeste, etc., incendiadores
noturnos, diurnos, com especialização matutina e vespertina,
incendiadores de verão, inverno, com disputas jurídicas sobre o outono e
a primavera. Havia especialista em vento, os anemotécnicos, um Diretor
Geral de Assamento e Alimentação Assada, um Diretor de Técnicas Ígneas (
com seu conselho geral de assessores), um Administrador Geral de
Florestação Incendiável, uma Comissão Nacional de Treinamento
Profissional em Porcologia, um Instituto Superior de Cultura e Técnicas
Alimentícias (ISCUTA) e o BODRIO (Bureau Orientador de Reformas
Ígneo-Operativas).
O
BODRIO era tão grande, que tinha um inspetor de reformas para cada
7.000 porcos, aproximadamente. E era precisamente o BODRIO que
propiciava anualmente os congressos, os seminários, as conferências e as
jornadas. Mas isto só parecia servir para incrementar o BODRIO em
burocracia. Tinha se projetado e encontrava-se em pleno crescimento a
formação de novos bosques e selvas, seguindo as últimas indicações
técnicas, em regiões escolhidas segundo determinada orientação, onde os
ventos não soprassem mais de 3 horas seguidas e houvesse reduzida
porcentagem de umidade. Havia milhões de pessoas trabalhando na
preparação dos bosques a serem incendiados. Alguns especialistas eram
enviados para a Europa e os EUA, com a missão de estudar a importação
das melhores madeiras, árvores, sementes, fogos melhores e mais
potentes, além de pesquisar idéias operativas, por exemplo, como fazer
buracos para que neles caíssem os porcos. Havia também grandes
instalações para manter os porcos antes do incêndio, mecanismos para
deixá-los sair no momento oportuno, técnicos em sua alimentação, etc.
Havia construções de estábulos para porcos, professores formadores de
especialistas na construção de estábulos para porcos, universidades que
preparavam os professores formadores dos especialistas na construção dos
estábulos para porcos, fundações que apoiavam os investigadores que
davam o fruto do seu trabalho às universidades que preparavam os
professores formadores na construção de estábulo para porcos, etc.
As
soluções que os congressos sugeriam eram, por exemplo, aplicar
triangularmente o fogo após Va -1 pela velocidade do vento sul, soltar
os porcos 15 minutos antes que o fogo-promédio da floresta alcançasse
47°; outros diziam que era necessário instalar grandes ventiladores que
serviriam para orientar a direção do fogo e assim por diante. Poucos
especialistas estavam de acordo entre si e cada um tinha investigações e
dados para provar suas afirmações.
Um
dia, um investigador da categoria SO/DM/VCH , chamado João Bonsenso
falou que o problema era muito fácil de se resolver. Tudo consistia,
segundo ele, primeiramente, em matar o porco escolhido, limpando e
cortando adequadamente o animal e colocando-o, posteriormente, numa
jaula metálica ou armação sobre brasas, até que o efeito do calor e não
das chamas, o assasse ao ponto.
Ciente,
o Diretor Geral de Assamento mandou chamá-lo e perguntou que coisa
esquisita ele andava falando por ali. Depois de ouvi-lo, disse-lhe:
-
O que o senhor fala está bem, somente na teoria. Não vai dar certo na
prática. Pior ainda, é impraticável. Vamos ver: o que o senhor faria com
os anemotécnicos , no caso de se adotar o que está sugerindo?
- Não sei, respondeu João.
- Onde vai por os acendedores das diversas especialidades?
- Não sei.
-
E os indivíduos que foram ao estrangeiro para se especializar durante
anos e cuja formação custou tanto ao país? Vou pô-los para limpar
porquinhos?
- Não sei.
-
E os que têm se especializado todos esses anos em participar dos
congressos, seminários e jornadas para a Reforma e Melhoramentos do
Sistema? Se o que você fala resolve tudo, que faço com eles?
- Não sei.
-
O senhor percebe agora que a sua solução não é aquela de que todos nós
necessitamos? O senhor acredita que, se tudo fosse tão simples, os
nossos especialistas não teriam achado a solução antes? Veja só! Que
autores falam isso? Que autoridade há para avaliar sua sugestão? O
senhor, por certo, imagina que eu posso dizer aos engenheiros em
anemotécnica que é questão de por brasinhas sem chamas! O que eu faço
com os bosques já preparados, no ponto de serem queimados, que somente
possuem madeira apta para fogo-em-conjunto, cujas árvores não produzem
frutos, cuja falta de folhas faz com que não prestem para dar sombras? O
que faço? Diga-me !!!
- Não sei.
-
O que faço com a Comissão Redatora de Programas Assados, com seus
Departamentos de Classificação e Seleção de Porcos, com a Arquitetura
Funcional de Estábulos, estatística, população, etc. ?
- Não sei.
- Diga-me: o Engenheiro em Porcopirotecnia, o Sr. J.C da Figuração, não é uma extraordinária personalidade científica?
- Sim, parece que sim.
-
Bem, o simples fato de possuir valiosos e extraordinários engenheiros
em Porcopirotecnia indica que o Sistema é bom. E que faço com indivíduos
tão valiosos?
- Não sei.
-
Viu? O senhor tem é que trazer solução para certos problemas: como
fazer melhores anemotécnicos , como conseguir mais rápido acendedores do
Oeste (que é a nossa maior dificuldade), como fazer estábulos de oito
andares ou mais, em lugar de somente sete, como até agora. Tem que
melhorar o que temos e não mudá-lo. Traga-me uma proposta para que
nossos bolsistas na Europa custem menos, ou mostre-me como fazer uma boa
revista para análise profunda do problema da Reforma do Assamento. É
disso que necessitamos. É disso que o país necessita. Ao senhor falta
sensatez, senso comum ! Diga-me, por exemplo, o que faço com meu bom
amigo (e parente), o Presidente da Comissão para o Estudo de
Aproveitamento Integral dos Resíduos dos Ex-Bosques?
- Realmente, estou perplexo! - falou João.
-
Bem, agora que conhece bem o problema, não diga por aí que o senhor
conserta tudo. Agora, o senhor vê que o problema é mais sério e não tão
simples como o senhor imaginava. Tanto os de baixo como os de fora
dizem: “Eu conserto tudo”. Mas tem que estar dentro para conhecer os
problemas e saber das dificuldades. Agora, cá entre nós, recomendo-lhe
que não insista com sua idéia, porque isso poderia trazer problemas para
o senhor no seu cargo. Não por mim! Eu falo pelo seu próprio bem,
porque eu o compreendo, entendo seu posicionamento, mas o senhor sabe
que pode encontrar outro superior menos compreensivo. O senhor sabe como
são, às vezes, não é?
João
Bonsenso, coitado, não falou um “A”. Sem despedir-se, meio assustado e
meio atordoado com a sensação de estar caminhando de cabeça para baixo,
saiu e nunca mais ninguém o viu. Não se sabe para onde foi. Por isso é
que, até hoje é costume dizer que, na tarefa de reforma e melhoria do
Sistema, falta o bom senso."
Artigo originalmente publicado em: Juicio de la Escuela, CIRIGLIANO, F. T.. Editorial Humanitas, Buenos Aires, 1976.
“A classe dominante não tem interesse em mudar a educação”
O peso de seus argumentos em programas de televisão, a
clareza de suas intervenções diante das autoridades que dobram sua idade
e a capacidade inata de aglutinar as massas, converteram-a na líder
mais visível deste movimento que já derrubou um ministro e jogou o
governo de Sebastián Piñera nas cordas. Usando um jeans surrado, um
lenço artesanal no pescoço, um piercing no nariz e esse olhar que
esconde uma das mentes políticas mais brilhantes que apareceram no Chile
nos últimos anos, Camila Vallejo concedeu uma entrevista exclusiva a
Christian Palma, correspondente da Carta Maior em Santiago do Chile.
Christian Palma - Correspondente da Carta Maior em Santiago - @chripalma
Há três meses, Camila Vallejo, a carismática
presidenta da Federação de Estudantes da Universidade do Chile (Fech),
podia tomar um metrô tranquilamente e caminhar sem chamar a atenção mais
do que qualquer outra mulher bonita chilena. Nesse tempo, os estudantes
universitários e secundaristas iniciavam um movimento sem precedentes
que inclui até hoje ocupações e greves nas escolas do país e diversas
marchas pelas principais cidades chilenas pedindo fundamentalmente o fim
do lucro no sistema educacional, mais qualidade nos conteúdos
ministrados nas salas de aula e gratuidade completa na educação pública.
Ela, com paciência, visitava os colégios explicando ponto por
ponto as razões das reivindicações estudantis e parava para conversar
com os jornalistas com calma. Foi em um desses eventos que a conheci.
Usando um jeans surrado, um lenço artesanal no pescoço, um piercing no
nariz e esse olhar que esconde uma das mentes políticas mais brilhantes
que apareceram no Chile nos últimos anos, trocamos algumas palavras.
A
revolução estudantil se incendiou, os argumentos dos estudantes foram
entendidos e valorizados pela cidadania e Camila Vallejo demonstrou que é
muito mais do que um rosto bonito. O peso de seus argumentos em
programas de televisão, a clareza de suas intervenções diante das
autoridades que dobram e triplicam a idade e a capacidade inata de
aglutinar as massas, converteram-a na líder mais visível deste movimento
que já derrubou um ministro e obrigou o governo de direita de Sebastián
Piñera a oferecer três alternativas para destravar o conflito. Mas
nenhuma delas satisfez os estudantes.
Tamanha foi a pressão sobre
o governo, que o próprio Piñera chamou os jovens para uma conversa
neste sábado no palácio de La Moneda. Um dia antes deste convite que
pode marcar o início do fim da crise, Camila Vallejo, achou um espaço em
sua agenda e concedeu esta entrevista exclusiva à Carta Maior, recém
chegada de Brasília, onde se reuniu com seus pares brasileiros. Ela
reconhece que tem tempo apenas para comer.
Considerando as
dezenas de pedidos de entrevistas solicitadas por meios de comunicação
chilenos e estrangeiros, interessados nesta jovem mulher, alguns minutos
com ela são um luxo.
Estrela das redes sociais – como boa parte
de sua geração – convocou milhares por meio do Facebook e do Twitter,
mas também foi ameaçada de morte ou insultada covardemente pela web.
Tranquila, diz que está consciente dos riscos que isso significa, mas,
mais importante ainda, sabe a tremenda responsabilidade que passa a ter
com apenas 23 anos.
Senhoras e senhores, com vocês Camila
Antonia Amaranta Vallejo Dowling, a menina que jogou o governo de
direita de Sebastian Piñera nas cordas. Saiba por que.
-
Você diz que as demandas estudantis não são um assunto de direita ou
esquerda, mas sim de toda a sociedade chilena. Acredita que a cidadania
entendeu isso?
Este movimento alcançou uma massividade e
uma transversalidade que nunca tinham sido vistas desde o retorno à
democracia (1990). Uma enorme parcela daqueles que, em um determinado
momento, apoiaram Piñera, hoje se dá conta de que este não é um ataque
direto à sua posição, mas sim a um modelo de educação que concebe a
educação como um bem de mercado e não como um direito, e também a um
sistema democrático que hoje, se reconhece , é muito estreito.
O
questionamento à conduta do governo, inclusive de cidadãos que pertencem
a setores que, em um determinado momento, apoiaram o atual presidente,
deixa evidente que existe o entendimento de que a luta que hoje travamos
é pelo direito à educação e por uma mudança de sistema que beneficie
toda a sociedade e o desenvolvimento do Chile. Ela não se limita a
buscar benefícios para um setor político particular.
O movimento se polarizou entre direita e esquerda. Isso é prejudicial?
Para
entender esse conflito é preciso analisá-lo a partir de duas
perspectivas. Por um lado, é preciso considerar que, junto à população, a
problemática educacional se transversalizou de uma forma nunca vista, o
que tem gerado um apoio massivo ao movimento vindo de diversos setores e
atores ligados à educação. Por outro lado, temos um setor muito mais
minoritário e ideológico representado pelas classes dominantes, que não
estão interessadas em uma mudança na educação, tanto porque o atual
sistema beneficia diretamente seus bolsos, como porque ele os mantêm em
sua posição de privilegiados frente a uma população com fraca educação. A
polarização de duas grandes alternativas educacionais é produto da
postura intransigente desse setor. Ou seja, a polarização não se
encontra no interior do movimento estudantil – que tem sabido priorizar a
unidade atuando de forma conjunta -, mas sim representa uma enorme
contradição entre as mudanças que a cidadania está exigindo hoje frente
uma minoria conservadora cujos interesses são representados pelo
Executivo.
Qual a consistência deste movimento para resistir às artimanhas urdidas no espectro político da direita e também do governo?
Hoje
o movimento conta com uma série de fortalezas, tais como a amplitude
que ultrapassa o meramente estudantil e o transforma em um movimento
social; a unidade dos diferentes atores ligados ao mundo educacional,
que após um longo processo conseguiram conjugar esforços em torno de
pautas unificadas; a representatividade dos anseios da cidadania, na
medida em que tem ocorrido processos democráticos por meio dos quais se
definem as melhores estratégias a utilizar; e, finalmente, conta com a
experiência histórica dos diferentes movimentos que nos precederam como o
foi o movimento estudantil dos “pinguins” (estudantes secundaristas) de
2006.
O movimento se vale de todas essas ferramentas para fazer
frente às diferentes artimanhas que podem surgir tanto da articulação
da direita como do governo, as quais, até aqui, temos sabido enfrentar.
Atuação do governo
Para
entender um pouco mais o sistema educacional chileno e por que a
direita não quer transformá-lo é preciso ter em mente que há três tipos
de escolas de educação superior herdados da ditadura de Pinochet. Há os
centros de formação técnica, os institutos profissionais e as
universidades que se dividem em tradicionais, com aportes do Estado, e
privadas. O ingresso nelas passa por uma prova de conhecimentos e, para
os que não têm dinheiro, há um sistema de créditos outorgados pelo setor
privado quase sem nenhuma regulação e com juros altíssimos. Em 2006, a
presidenta Michelle Bachelet se complicou com a “Revolução dos Pinguins”
que mobilizou só os estudantes secundaristas. Eles receberam promessas
que não foram cumpridas e agora, com 80% da cidadania aprovando as
mobilizações, o governo de Piñera recebeu os protestos na sua porta.
Qual
sua avaliação sobre a atuação do governo no tema? Não deu resposta às
suas demandas, faz declarações infelizes saindo da boca do próprio
presidente (“não há nada grátis na vida”, “as pedras nos levaram à
ruptura da democracia”) e tenta dar um perfil violento às marchas (com
infiltração de policiais).
O governo não está escutando a
cidadania, o que mostra que está disposto a seguir defendendo
intransigentemente seu modelo educativo, inclusive assumindo o custo de
omitir o que o povo tem demandado massivamente durante mais de três
meses.
Não contente com isso, tem explorado ao máximo as
ferramentas com as quais conta o governo e a direita chilena – meios de
comunicação, força policial e militar, respaldo dos grandes grupos
econômicos – para deslegitimar o movimento, baseando-se na mentira por
trás de estratégias populistas.
A pressão social que este
movimento conseguiu acumular obrigou Piñera a mostrar do que é feito
este governo, quais são os limites democráticos que ele está disposto a
cruzar e quem representa realmente, o que constitui um enorme
desprestígio e desaprovação de sua gestão, o que já foi expresso nas
últimas pesquisas que, historicamente, eles mesmos têm validado.
O
questionamento à incapacidade de manejar a demanda social por uma
educação pública gratuita e de qualidade para todos alcança novos níveis
na medida em que o grau de repressão ultrapassou qualquer limite de
tolerância de um Estado de Direito. Durante esses meses de protesto,
temos sido testemunhas de aberrantes abusos por parte do corpo policial,
sob ordens do Executivo, através do Ministro do Interior e Segurança
Pública, Rodrigo Hinzpeter, o que atingiu seu ápice com a morte de um
estudante na semana passada.
Qual sua opinião sobre o papel da Concertação (oposição) em tudo isso?
A Concertação desemprenhou um papel bastante oportunista tentando obter
ganhos políticos com o que ocorre hoje no país. Neste sentido vemos
hoje representantes dessa coletividade criticando o modelo educacional,
como, por exemplo, o ex-presidente Ricardo Lagos que diz “que o modelo
não já não aguenta mais”, esquecendo-se que foram eles mesmos que
administraram e aprofundaram a mercantilização da educação e que, por
outro lado, um importante setor dessa organização é formado por
proprietários de colégios, por investidores no negócio da educação
superior.
Apesar disso, dado o nível de participação que a
Concertação tem no Parlamento, corresponde a eles agora responder a
altura de suas declarações em favor do movimento. Ou seja, devem
assegurar que os projetos de lei que surgiram dessas mobilizações
representem integralmente o que as demandas sociais estabeleceram e, por
motivo nenhum, devem voltar a negociar pelas costas do movimento, como
terminou ocorrendo com o processo da Revolução dos Pinguins de 2006.
Com a foice e o martelo no coração
Camila
Vallejo é filha de ex-militantes allendistas e referência das
Juventudes Comunistas. Na atualidade, foi obrigada a congelar a tese
para se formar em geografia. Ela não reconhece abertamente, mas tampouco
descarta seguir uma carreira política.
Já pensou em seguir sendo dirigente no futuro, ainda mais em um país carente de líderes jovens?
Sobre
o meu futuro, tenho dito que tenho um projeto pessoal de caráter
acadêmico, ou seja, gostaria de terminar meu curso e seguir neste
caminho. No entanto, concebo os cargos de representação como uma
responsabilidade e de modo algum como um privilégio, pelo que, a priori,
não posso dizer que não continuarei tendo cargos de representação
popular.
Alguns dirigentes estudantis internacionais olham
com especial atenção para o Chile, depositam esperança neste movimento e
estão atentos para que as conquistas não sejam perdidas. Como avalia
essa tremenda responsabilidade?
Creio que a esperança de
que as conquistas desse movimento não sejam perdidas, assim como a
responsabilidade por elas é compartilhada pela totalidade dos
envolvidos. Se é verdade que, às vezes, minha pessoa é transformada em
ícone do movimento, temos claro que a sua construção é uma conquista que
pertence a todos. Confio que temos feito as coisas corretamente, o que é
demonstrado pelo incrível apoio cidadão que nos acompanha três meses
depois de iniciada essa mobilização. Sob estas condições, se o governo
não tiver suas demandas satisfeitas, isso será responsabilidade da
intransigência do governo e da traição da cidadania por parte da direita
chilena, o que não estamos dispostos a tolerar.
O que te
parece o modelo educacional de Lula (ProUni) que estabelece um mecanismo
de bolsas de estudo para estudantes de universidades privadas com
finalidade lucrativa, mas que está dirigido especialmente para
estudantes de baixa renda e é financiado com isenções fiscais para esses
estabelecimentos?
Para além do detalhe técnico das
propostas, o que hoje estamos defendendo no Chile são ideias políticas
muito concretas. E o fim do lucro na educação é uma das consignas que
teve maior adesão da cidadania. A própria lei chilena de Educação criada
na ditadura proíbe o fim do lucro em todas as universidades. O
cumprimento dessa lei é um dever que esse governo descumpriu
grosseiramente e que, após essa mobilização, não nos contentaremos com a
continuidade dessa situação. É preciso avançar na direção da proibição
do lucro em todo o sistema educacional, desde o pré-escolar a todos os
setores de educação superior, assegurando sanções para aqueles que
descumprirem esta lei e para aqueles que fizeram isso durante os últimos
30 anos.
Qual sua impressão sobre o apoio dos
trabalhadores às mobilizações estudantis e sobre a convocação de outra
mobilização massiva para 8 de setembro?
O fato de os
trabalhadores apoiarem as mobilizações é algo fundamental para cada
processo histórico revolucionário, pois como sujeito histórico o
trabalhador que hoje se encontra diretamente explorado pelo processo
produtivo sobre o qual se sustenta nossa sociedade capitalista
neoliberal.
Se nós, jovens estudantes, somos chamados a gerar e
fomentar as mudanças, temos que ter claro que estes devem se realizar
junto aos trabalhadores, pois são eles, finalmente, o real motor da
história.
Você sofreu críticas e ataques, sem sentido,
maliciosos. Você disse que eles fazem parte do jogo, mas alguns
ultrapassam todos os limites, como o de que é manipulada pelo Partido
Comunista. O que diz sobre isso?
Efetivamente, eu sou
militante das Juventudes Comunistas do Chile e isso é algo que nunca
escondi, muito pelo contrário, é algo do que sinto muito orgulho, pois é
uma grande escola que me permitiu crescer e desenvolver-me
politicamente.
Além disso, é de se esperar que, na atual
situação, aqueles que não estão à altura do conflito busquem argumentos
como estes para atacar, não somente a mim, mas também ao resto dos
dirigentes. Mas o certo é que hoje eu represento não só os estudantes da
Universidade do Chile, cuja Federação presido, mas também me toca ser a
voz de todos os estudantes do Chile, enquanto porta-voz da Confederação
de Estudantes do Chile (Confech) e a legitimidade que tanto os
estudantes como a cidadania concederam a meu desempenho evidencia que
essas acusações não passam de sujas estratégias desesperadas de quem,
como disse anteriormente, não tem sido capaz de ganhar o debate.