Estados Unidos e Reino Unido vivem um momento embaraçoso. Perguntas críticas recaíram sobre os dois países depois que documentos confidenciais encontrados na sede da Organização de Segurança Externa da Líbia evidenciaram uma extensa cooperação entre a CIA, Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos, o MI6, serviço de inteligência externa dos ingleses, e o serviço secreto do ex-ditador em fuga, Muammar Kadafi.
Os documentos, descobertos por membros do governo de transição na Líbia e pesquisadores do Human Rights Watch durante uma varredura nos prédios oficiais líbios, mostram que ambos os serviços ocidentais de inteligência desenvolveram relações bastante estreitas com Kadafi. Essa cooperação acontecia, inclusive, antes de o ex-líder líbio ser reabilitado junto à comunidade internacional em 2004, quando prometeu ajudar o Ocidente na guerra contra o terrorismo e renunciar às armas nucleares.
As informações também mostram que a CIA usava a Líbia como local de "rendições especiais" desde 2002. Essa política norte-americana de "rendição" consiste em enviar supostos terroristas a outros países para interrogatórios. Os arquivos indicam que os Estados Unidos não só enviaram suspeitos à Líbia para serem ouvidos pela polícia secreta de Kadafi, mas também mandaram as perguntas a serem feitas.
"Depois do 9 de Setembro, a CIA parece que se envolveu em vários países do Norte da África com treinamento de forças e fornecimento de pequenas armas com a desculpa de parar a Al Qaeda e o terrorismo", analisa Patrícia DeGennaro, professora de Segurança Internacional na Universidade de Nova York.
Segundo a pesquisadora, sabia-se da existência de campos de rendição em diversos países, inclusive no Marrocos. "Já que a Líbia estava isolada e despertava pouca atenção internacional, era fácil para a CIA usar essa localidade e não ser descoberta", adiciona DeGennaro. "Ninguém no cenário internacional levou Kadafi a sério, então era pouco provável que alguém o questionasse sobre esses locais de rendições."
A cooperação era tão profunda que o governo de George W. Bush considerou estabelecer "uma presença permanente" na Líbia, possivelmente uma prisão secreta administrada pela CIA ou um escritório clandestino da agência, onde suspeitos de terrorismo poderiam ficar presos e serem interrogados. Documentos mostram que essa "presença" foi especificada em 2004, depois do fim do isolamento diplomático de Kadafi.
Participação da CIA
Uma carta enviada pela CIA ao serviço de inteligência líbio, de 15 de abril de 2004, cita "o desenvolvimento de acordos recentes" entre os Estados Unidos e Líbia e pede aos líbios que "levem em consideração os requisitos norte-americanos para interrogatório" em relação a um suspeito terrorista não identificado. A correspondência também pede que os líbios "garantam que os direitos humanos do suspeito sejam protegidos" enquanto ele estiver detido.
Os documentos mostram que oito prisioneiros, no total, foram capturados e transportados em voos de "rendição" de volta para a Líbia entre 2004 e 2007, apesar de a cooperação entre Estados Unidos e Líbia ter continuado até 2009 – segundo informações vazadas pelo WikiLeaks. Ainda segundo as informações, senadores como John McCain e Joe Liebermann encontraram-se com Kadafi para assegurar ao ditador que os "Estados Unidos queriam fornecer à Líbia os equipamentos necessários para sua segurança."
"Os Estados Unidos abandonaram essa relação com Kadafi quando o presidente Barack Obama assumiu", diz DeGennaro."Naquela época, Obama era contra esse ideia de rendição e pretendia fechar Guantánamo e acabar com a reputação de país que fazia uso da tortura, adquirida por meio de prisões clandestinas e detenções ilegais."
Antes dessa mudança na administração, no entanto, a CIA consolidou sua presença e expandiu suas atividades na Líbia. Em outro documento de 2004, a agência norte-americana pede que o serviço de inteligência líbio permita que seus agentes questionem diversos cientistas iraquianos que viviam no país africano, numa tentativa de descobrir o destino das supostas armas de destruição em massa do Iraque. Outros dados mostram a crescente preocupação dos Estados Unidos com uma suposta célula "operacional" terrorista na Líbia, suspeita de manter contato com membros da Al Qaeda no Iraque.
O principal contato entre CIA e Líbia neste período de intensa cooperação parece ser Mussa Kussa, então chefe de inteligência e o principal suspeito de ter coordenado as atividades terroristas apoiadas pela Líbia nos anos de 1980.
Kussa, que deixou o governo de Kadafi em março último, aparece nos documentos como o principal aliado de Stephen Kappes, o segundo na hierarquia do serviço clandestino da CIA, e como negociador-chave do acordo nuclear de 2004 com a Líbia. Kussa também parece ter cultivado relações significativas com membros do serviço de inteligência britânico.
Acordo com MI5
Alguns documentos mostram que o serviço de segurança interno inglês, o MI5, negociou informações com cidadãos líbios opositores a Kadafi baseados no Reino Unido em troca de revelações feitas por terroristas suspeitos que estavam sendo questionados na Líbia sob a condição de "rendição extraordinária".
Os ingleses conheciam bem a reputação da Líbia de torturar seus prisioneiros, mas pareciam não se preocupar com as práticas usadas para extrair informações que eles recebiam, o que sugere cumplicidade do Reino Unido.
O MI6, serviço britânico de inteligência externa, segundo os documentos, trabalhou com a CIA na entrega de terroristas suspeitos à Líbia, incluindo o comandante de segurança dos rebeldes líbios em Trípoli, Abdul Hakim Belhaj. Ele era um membro dissidente de liderança no LIFG, grupo armado islâmico líbio, e considera processar os governos norte-americano e inglês pelo suposto tratamento brutal. A LIFG é uma organização listada como grupo terrorista pelos Estados Unidos que teria ligações com a Al Qaeda.
Um documento registra uma conversa entre um oficial sênior do MI6 e um homólogo líbio, na qual o agente inglês elogia a maneira como os espiões do serviço britânico informaram ao serviço de inteligência norte-americano e líbio sobre os disfarces de Belhaj, o que possibilitou sua prisão em Bangkok, em 6 de março de 2004.
Belhaj alega que foi torturado pela CIA e que recebeu injeções de soro da verdade antes de ser colocado no voo de volta a Trípoli para um interrogatório, onde ele diz que foi primeiro interrogado pelo MI6 e, depois, passou a ficar sob custódia da Líbia.
"O MI6 estava buscando acesso aos detentos associados ao movimento jihadista na Líbia, na tentativa de obter informações sobre, primeiramente, suspeitos terroristas líbios conhecidos e, em segundo lugar, suspeitos terroristas de outras nacionalidades com os quais os líbios pudessem ter tido contato no Sudão, Argélia ou Afeganistão", comenta Alia Brahimi, especialista em Oriente Médio e autor.
Em outra revelação embaraçosa para o Reino Unido, Saadi e Khamis Kadafi, filhos do ex-ditador, são convidados a visitar a sede do Serviço Aéreo Especial (SAS, do inglês), importante regimento das Forças Armadas inglesas, além do serviço homólogo da Marinha, SBS, em julho de 2006. Apesar do convite, a visita nunca aconteceu. Os dois filhos de Kadafi iriam se encontrar com oficiais do alto escalão britânico durante a visita e havia conversas agendadas com representantes dos maiores fabricantes ingleses de armas durante a passagem deles pelo Reino Unido.
Tortura
Os documentos reveladores vêm à tona num momento em que os serviços de segurança britânicos estão sob crescente escrutínio, diante de uma investigação sobre o papel do Reino Unido em rendições forçadas e o conhecimento dos serviços de segurança sobre a prática da tortura e maus tratos a suspeitos de terrorismo.
O chamado inquérito Gibson, criado pelo juiz inglês Peter Gibson, anunciou que irá "considerar como parte do trabalho acusações de envolvimento do Reino Unido em entregas de suspeitos à Líbia" e que tem o apoio do primeiro-ministro, David Cameron. O líder britânico congratulou uma investigação mais ampla sobre as denúncias "significativas" de que o MI6 e MI5 teriam "se aproximado demais" da Líbia.
"O que essas organizações de inteligência fizeram foi ilegal e desumano. David Cameron está certo de começar uma investigação, o governo Obama e o Congresso norte-americano não deveriam hesitar em seguir esse exemplo", comenta DeGennaro.
A especialista acredita que, "infelizmente, isso traria implicações para membros do Congresso e à antiga administração", no caso dos Estados Unidos. "Senadores poderosos como John McCain, que provavelmente sabiam muito bem o que estava acontecendo, nunca permitiriam que uma investigação do tipo fosse feita", conclui DeGennaro.
Autor: Nick Amies (np)
Revisão: Roselaine Wandscheer
Deutsche Welle
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