Ivan Lessa
Colunista da BBC Brasil
Fellini sabia das coisas. Em uma de suas muitas obras-primas, Roma, de 1972, um retrato da cidade, metade documentário, metade lembranças autobiográficas, o esplêndido cineasta italiano conseguiu encaixar uma sequência inteira surrealista, sempre com o acompanhamento musical de seu genial parceiro, Nino Rota, que, na época, além de gerar controvérsia, chegou a ser proibida em certos países, quase que juro.
Se eu fosse um poltrão, diria que a vida imita a arte. No que paro, penso e digito: a vida imita a arte. Se não, vejamos.
Na ilha vulcânica de Pantelleria, na mesmíssima Sicília machona que deu ao mundo a Máfia, teve lugar, nesta segunda-feira que passou, aquilo que muitos chamaram, há quatro décadas, de delírio felliniano. À beira do Mediterrâneo, realizou-se um exercício para o desfile de modas eclesiásticas, graças ao espírito de vanguarda do bispo Domenico Mogavero, de 64 anos, e à visão ímpar do estilista Giorgio Armani, que possui na ilha uma luxuosa residência digna de sua grife.
Domenico Mogavero |
Depreende-se, agora, que o lance de estilo acaba de ser reconhecido pela Igreja Católica como uma espécie de via crucis rumo às passarelas do mundo inteiro, objetivando, é de se supor, atingir todo o clero mundial. Uma espécie de Nike com sacristão, turíbulo, vela e todo o resto dos apetrechos católicos.
Um detalhe importante: a congregação siciliana, se não deu suspiros e gritinhos ou bateu palmas e tirou fotos com seus celulares, achou o máximo a vestimenta do bispo Mogavero, que há quatro anos exerce o sacerdócio para toda a região de Mazzara del Vallo.
O sacerdote modelo usou, para a ocasião mais que avant-garde, uma túnica de seda verde, decorada com os símbolos dos produtos que faziam (isso vai mudar) o nome da ilhota: vinhas, trigo, conchas e estrelas-do-mar. Tudo sob a sagaz orientação de Armani.
O bispo Mogavero declarou à paróquia e à imprensa que o fato, lato senso, não tinha nada a ver com uma tentativa de trazer grifes à Igreja ou aceder à prática da moda e seus estilistas. Segundo ele, a coisa era mais simples: “usar algo belo para louvar Deus”.
E, como se dando entrevista para uma revista do gênero que ele nega estar seguindo, prosseguiu: “as vestes são do melhor bom gosto possível, feitas de um tipo de seda das mais sóbrias e dão uma ideia da solenidade da ocasião.” A ocasião, no caso, era a inauguração de uma nova igreja local.
Giorgio Armani, menos acessível aos jornalistas do que o bispo Mogavero, nada teve a acrescentar a não ser lembrar que há 37 anos vinha passando temporadas anuais na região, tendo por isso lá decidido construir seu palacete, igualmente, tudo indica, do maior bom gosto possível.
Um jornal italiano lembrou o fato de que o bispo era um livre-pensador em matérias sacras e que, em ocasiões anteriores, conclamara o primeiro-ministro Silvio Berlusconi a renunciar diante de suas sucessivas incursões em escândalos sexuais e que admoestara os sicilianos no sentido de que deveriam mostrar mais tolerância para com seus irmãos imigrantes, em geral tunisianos, cujo berço, a Tunísia, fica logo ali adiante do outro lado do Mediterrâneo, bem mais perto da Sicília do que do continente italiano.
Carecem de fundamento os boatos de que, à maneira de Clóvis Bornay, Evandro de Castro Lima e outras lendárias figuras de nosso nada sacro Carnaval dos bons tempos, o bispo ou membros de sua congregação estejam pensando em batizar as novas vestimentas como “Catedral Submersa”, “Sinfonia Vulcânica” ou coisa parecida.
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