sexta-feira, 18 de setembro de 2009
O cientista, o padre e a fúria de “O Globo”
O jornal O Globo dedicou um resuminho anêmico, na página de obituários, à morte do cientista Norman Borlaug, considerado um dos pais da chamada revolução verde. Era de se supor que o jornal conhecesse bem melhor o tema, pois, em 1970, ninguém festejou mais que o O Globo o Nobel da Paz dado a Borlaug. Naquele ano, o jornal amplificou a campanha torpe da ditadura para vilanizar o arcebispo de Olinda e Recife, padre (como pedia para ser chamado) Hélder Câmara, que também disputava o Nobel.
Argemiro Ferreira, para Carta Maior
A página de obituários do jornal O Globo registrou segunda-feira, no alto, a morte no sábado do cientista Norman Borlaug, aos 95 anos. Destaque obviamente merecido, dada a importância do personagem, a quem se atribui responsabilidade parcial pela chamada revolução verde, que provavelmente salvou milhões de pessoas da fome na segunda metade do século passado.
Mas os leitores só encontraram no jornal um resuminho anêmico. Tiveram de recorrer à internet para completá-lo. Era de se supor que O Globo - que já poderia ter dado a notícia no domingo, como fizeram os jornais de Londres, cujo horário está bem à frente do nosso - conhecesse bem melhor o tema. Pois em 1970 ninguém tinha festejado mais do que esse jornal o Nobel da Paz dado a Borlaug.
As razões de O Globo na época não eram os méritos de Borlaug - que os tinha. Naquele ano recorde de atrocidades praticadas pela ditadura militar no Brasil as organizações da família Marinho estavam ocupadíssimas na defesa dos torturadores e assassinos do regime, denunciados no mundo inteiro. Era o tempo do “Pra Frente Brasil” na Copa do México, da euforia da Bolsa, do “Brasil Grande” do ditador Médici.
Uma candidatura da Noruega?
Outro slogan patrioteiro do regime, o “ninguém segura este país”, nascera como manchete desse jornal na época. Como o Estadão, ele servia aos poderosos do dia e aos interesses corporativos de fora. E amplificava a campanha torpe da ditadura para vilanizar o arcebispo de Olinda e Recife, padre (como pedia para ser chamado) Hélder Câmara.
A história foi muito bem contada em um livro de Nelson Piletti e Walter Praxedes, "Dom Hélder Câmara, o profeta da paz", publicado pela editora Contexto e lançado neste ano de 2009 para coincidir com o centenário do biografado. A obsessão do regime era impedir sua premiação com o Nobel da Paz - afinal dado a Borlaug, americano de pais noruegueses.
O Itamaraty da ditadura mobilizara uma operação internacional, com respaldo explícito na mídia aliada do regime (em especial O Globo, mas com papel de destaque para Ruy Mesquita, do Estadão), além de voluntários sinistros como o empresário norueguês Henning Boilesen, radicado no Brasil (à frente do grupo Ultra) e freqüentador dos porões da tortura na OBAN de São Paulo.
Como os jornais lembraram agora, nos obituários do cientista, o próprio Borlaug custou a acreditar na notícia, ao recebê-la de sua mulher Margaret, no México. Foi tal a surpresa que chegou a suspeitar que não passava de brincadeira. Não achava que seria o escolhido em 1970 pelo comitê norueguês - que cabe ao Parlamento desse país selecionar, um procedimento diferente dos outros prêmios Nobel, decididos na Suécia.
Ciência, agricultura e paz mundial
Borlaug diria depois ter sido escolhido para “simbolizar o papel vital da agricultura e da produção de alimentos num mundo faminto tanto de pão como de paz”. No copy desk de O Globo, eu tinha acompanhado naqueles dias, com interesse especial, as notícias vindas da Europa sobre a tendência esmagadoramente favorável a dom Hélder e o papel indecente do jornal, que negava as torturas e proclamava haver democracia e plena liberdade de imprensa no país.
Numa campanha obsessiva, sonegando e manipulando notícias, O Globo acusava dom Hélder de difamar o Brasil no exterior. Quando a revista alemã Stern publicou entrevista dele após uma extensa reportagem sobre as torturas, a manchete do jornal foi: “Dom Hélder usa revista pornográfica para caluniar o Brasil”. Stern era uma boa revista - e continua a ser, creio, mesmo depois de atropelada em 1983 pelo escândalo dos diários falsos de Hitler.
Pouco tempo depois da entrevista de dom Hélder, numa visita em 1976 à redação de Stern em Hamburgo, posso ter dado uma idéia errada ao editor. Ainda incomodado pela campanha suja de O Globo (não muito diferente das atuais), escorreguei em observação impertinente, que talvez tenha soado como insólita cobrança puritana.
Ao ouvir-me estranhar o contraste entre o tom das matérias e a ilustração das capas, ele contra-atacou: “O que você tem contra mulher bonita na capa?” Mereci a patada. Stern pertence à Bertelsmann, um dos maiores impérios de mídia do mundo (talvez o 5º). Suas capas ajudam a explicar a circulação atual superior a 1 milhão de exemplares, que alcançam em média 7,8 milhões de leitores.
O papel dos lobbies e da mídia
A queixa no segundo parágrafo deste texto, de que prefiro encontrar nos jornais histórias completas, sem ter de ir à internet em busca de mais dados, é por causa dos textos-pílulas que nossa mídia aprendeu com o USA Today. Para mim as pílulas deviam ficar para os mervais e leitoas, reservando-se espaço maior para reportagens - desde que bem apuradas, sem o ranço das campanhas suspeitas.
A morte de Borlaug seria um momento oportuno para reflexões sobre a revolução verde - benefícios e efeitos negativos. À época do Nobel da Paz houve oba-oba em O Globo e no resto de nossa mídia pelas razões erradas. Nélson Rodrigues, criativo como ficcionista e teatrólogo, ignorava o tema mas adotou Borlaug prontamente como seu novo herói. Além de achar dom Hélder subversivo, nunca o perdoou por se negar a abençoar seu segundo casamento.
O crescimento fantástico da produção agrícola era a resposta maior do cientista às críticas e preocupações ambientais e sócio-econômicas (dependência da monocultura, práticas agrícolas não sustentáveis, efeitos na agricultura de subsistência, produtos químicos suspeitos de causar câncer) mas Borlaug tinha amplo apoio nas corporações interessadas, da Dupont à Monsanto.
Os lucros extraordinários do agronegócio e corporações de agroquímica, da indústria de fertilizantes e pesticidas, fizeram proliferar lobbies cada vez mais poderosos e influentes. Mesmo descartando a maior parte das críticas, o cientista reconhecia que as transformações da revolução verde não tornaram o mundo uma Utopia. Respeitava alguns ambientalistas, mas criticava outros como elitistas.
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