quinta-feira, 17 de setembro de 2009
O mercado é uma guerra?
No final da Segunda Guerra Mundial, o governo americano fez aprovar uma lei que dava aos ex-combatentes o direito de ingressar gratuitamente no ensino superior. Muitos deles optaram pelas faculdades de administração. Oficiais graduados, com experiência multinacional, visão de mundo, experiência de logística, capacidade de comando e foco em objetivos, habituados a tratar o outro lado como um inimigo a ser vencido, chegaram às grandes empresas e galgaram rapidamente a hierarquia organizacional. Muitos se deixaram ficar na Universidade, e influenciaram as bases do pensamento gerencial.
A mesma lei foi estendida aos veteranos da guerra da Coréia, em 1953, e depois da guerra do Vietnã, em 1966. Os números impressionam: 6 milhões de combatentes da Segunda Guerra ingressaram na universidade (em 1947, os veteranos representavam 49% de todas as matrículas no ensino superior americano); 1,2 milhões de veteranos da Coréia; e 6,8 milhões do Vietnã.
Mas a Segunda Guerra Mundial e a guerra do Vietnã foram diferentes na essência.
A luta na Europa e no Pacífico tinha uma justificativa heróica: a defesa contra a agressão nazista para proteger o mundo livre da perspectiva de uma ditadura cruel, e terminou em vitória, com imenso apoio popular. Os militares que dela saíram para uma carreira gerencial ou acadêmica foram os veículos da expansão americana, campeões da ideologia democrática, conquistadores de mercados estrangeiros e não mais de territórios inimigos. Sua vida executiva coincidiu com uma era de euforia, crescimento, bem-estar e aumento inédito da qualidade de vida. Os sucessos conseguidos funcionaram como validação de seus métodos.
Os egressos do Vietnã têm outra história para contar. Ressentidos, agressivos, reprovados por grande parte da população, retornaram derrotados de uma guerra suja e sem sentido. Nela, os americanos eram os agressores, contra um exército maltrapilho, invisível e guerrilheiro de um pequeno país perdido no mapa. Ao contrário dos campos da Europa e dos mares do Pacífico, os combates eram travados em selvas fechadas, em meio a monções e lamaçais.
E sua chegada ao “mercado” coincidiu com os instantes mais agudos da competição global. A década de 1970, que viu a derrota americana no Vietnã, assistiu também à invasão japonesa aos mercados mundiais. Impossível desprezar o significado simbólico desse fato: os japoneses, adversários vencidos da Segunda Guerra, “invadiram” os Estados Unidos com seus produtos eletrônicos e seus automóveis, compraram alguns dos prédios mais sofisticados de Manhattan – numa versão capitalista do ataque ao World Trade Center – e jogaram os Estados Unidos numa das piores recessões de sua história econômica.
A prática e a doutrina gerencial nascidas desses oficiais que, saídos do Vietnã, optaram pela vida acadêmica e executiva têm uma ferocidade nunca vista no mundo dos negócios.
E praticamente todas as grandes empresas americanas, nos mais diversos setores de mercado, tiveram militares oriundos do Vietnã como presidentes, membros de suas diretorias, ou consultores. Todas, sem exceção, continuam tendo seus executivos formados em teorias que ainda trazem essa marca, através das grandes faculdades de administração.
A guerra é o sintoma mais evidente do esgotamento de um ciclo, uma situação limítrofe onde a normalidade se esvai. Cessa o diálogo. Suspendem-se direitos humanos. Aceita-se a morte. Pratica-se a tortura. Mente-se. Controlam-se os meios de comunicação. Restringem-se as liberdades individuais. Não há adversários, apenas inimigos. Inimigos merecem ódio, e devem ser aniquilados.
A guerra prolongada gera cansaço, produz consumo irracional pela falta de perspectivas de futuro, degrada os valores humanos. O estado de guerra ininterrupta é, por definição, insustentável. Não há sociedade na história que tenha conseguido sobreviver assim. E portanto, cedo ou tarde, as guerras acabam.
Porém, ao contrário da guerra verdadeira, que termina com a vitória, a “guerra” do mercado não tem fim, não existe vitória definitiva, não existe sossego. Vencer significa tão-somente produzir um ganho maior para os acionistas a cada trimestre, sabendo que qualquer passo em falso pode significar o fim da empresa, o fim dos bônus, o fim do emprego, o fim do status. A derrota. Mesmo onde não há acionistas anônimos, esse modo de pensar foi incorporado à vida das organizações.
Daí a hipercompetição, a paranóia, o medo permanente. Os executivos passaram a viver sob a perspectiva de um ataque iminente por parte de competidores ou predadores corporativos que aplicam as suas mesmas técnicas de marketing de guerra e de guerrilha.
Mas se tudo isso é tão tipicamente americano, por que então o fenômeno não ficou limitado aos EUA?
As explicações são muitas, dentre elas:
• As estratégias de guerra foram mais um vetor do predomínio americano na economia global.
• Seu sucesso fez com que fossem emuladas inclusive pelas principais escolas de administração da Europa – que podem ter suas idiossincrasias, porém, na essência, formam o mesmo executivo “global”.
• A maioria esmagadora dos livros de negócios tem origem nos Estados Unidos.
• Os Estados Unidos lideraram a primeira onda da globalização, com as grandes empresas multinacionais, e também a segunda onda, apoiada nos fluxos financeiros em tempo real e na integração das cadeias de valor.
• É principalmente americana a inovação em tecnologia da informação que impulsiona esse movimento.
• O PIB americano, em 2008, respondia sozinho por 20% do PIB global, o que denota o predomínio das empresas americanas no cenário mundial.
Tão forte é esse apelo que até sociedades menos afeitas à agressividade, como os países orientais, vêm se dobrando progressivamente aos mesmos comportamentos. Países que até há pouco tempo eram comunistas abraçaram a “economia de mercado”. E as nações em desenvolvimento olham para os Estados Unidos com um misto de revolta e inveja.
Seria ingênuo imaginar que essas práticas e conceitos possam ser modificados com facilidade. Porém é urgente entender que o modelo militar aplicado aos mercados se tornou economicamente, empresarialmente, socialmente, ecologicamente e psicologicamente insustentável.
"As metáforas militares nos induzem a pensar e a ver tudo em termos de luta, conflito, guerra. Essa perspectiva limita nossa imaginação quando consideramos as alternativas nas situações que gostaríamos de compreender ou mudar.” Autora: Deborah Tannen.
Por Fernando Barcellos Ximenes (criador do projeto "A Empresa Necessária", cuja finalidade é discutir, sem ingenuidade nem preconceitos, a viabilidade de novos princípios de gestão. Website: www.fernandoximenes.com.br)
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário