quinta-feira, 20 de novembro de 2008

GREVE JUSTA



Juremir Machado da Silva, para Correio do Povo

O magistério estadual gaúcho entrou em greve. Mas o governo achou-se incompreendido. Dado que uma lei federal estabeleceu piso salarial, como salário inicial, no valor de R$ 950,00, as autoridades do Rio Grande do Sul trataram de interpretar de outra forma o espírito dessa medida, contrariando o bom senso e a língua portuguesa, para defender os interesses dos nossos professores. Não entenderam? Acham que estou ficando louco? Explicarei. O governo gaúcho ficou preocupado com a possibilidade de os professores começarem a ganhar um pouco mais. Nem se trata de ganhar bem, muito bem ou suficientemente. É bem mais simples. Ganhar a partir de R$ 950,00 complica.
Esmiuçarei o que parece serem as razões profundas, embora jamais reveladas, dos nossos representantes e gestores. As razões superficiais são conhecidas: falta de recursos, sistema inchado e necessidade de não abalar o ajuste fiscal em curso. As razões que aqui chamo de profundas são mais interessantes. Se um professor em começo de carreira ganhar R$ 950,00, quanto receberá, acrescentando-se vantagens, um profissional com 20 anos de carreira? Pode, quem sabe, chegar a R$ 2 mil. Já imaginaram? Aí se tornaria perigoso. Professor com salário razoável pode começar a fazer coisas impensadas, tomar atitudes impulsivas, agir de modo precipitado.
Entre as ações perigosas que podem resultar de uma elevação substancial de salário encontram-se ir ao cinema com mais freqüência (ou simplesmente ir ao cinema), comprar música e, pasmem, adquirir braçadas de obras na Feira do Livro. Bem, braçadas mesmo, convenhamos, não daria, salvo em balaios, mas ainda assim haveria o risco de um aumento vertiginoso na aquisição de livros. É sabido que professores com muita leitura causam problemas. Ficam sabichões, até arrogantes, ensinam melhor e podem até fazer com que os alunos de escolas públicas se tornem verdadeiros concorrentes de alunos de escolas privadas em vestibulares ou outros gêneros de concursos. Ouvi dizer, embora sem confirmação, que já tinha professor pensando em viajar graças ao piso salarial (salário inicial). Não deve ser verdade. Livros e viagens já é demais!
Outro item contestado pelos nossos protetores diz respeito ao tempo necessário para atividades fora de sala de aula (preparação, correção de provas e outros passatempos levados para casa). Segundo o governo, isso exigiria contratar mais 27 mil professores. Não haveria dinheiro para isso. Sugere-se, então, que o magistério continue a praticar uma tradição de sacrifício, trabalhando de graça no aconchego do lar pelo bem público e pelo sacerdócio do ensino. Afinal, ser professor deve ser padecer na sala de aula e ainda levar trabalho para casa. Claro que os governantes não se reconhecerão nestas linhas. Mesmo assim, frios e estatísticos, pedirão como sempre cautela, pragmatismo e realismo a quem passa a vida esperando o famoso 'agora vai'. Aí, quando vai um pouquinho, inacreditavelmente, o governo não quer pagar.
A greve só podia ser justa. Mais do que isso, justíssima, legítima, além, claro, de ser legal. Em governo de intelectual, costuma ser assim: a educação fica em segundo lugar mesmo parecendo estar em primeiro. Foi assim com FHC. As universidades públicas foram abandonadas. No Rio Grande do Sul, educação e cultura só têm levado tranco. Quando não tem outro jeito, é preciso meter o pé na porta. Piso é salário inicial.

juremir@correiodopovo.com.br

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