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quinta-feira, 26 de julho de 2012

A MALDIÇÃO DA ABUNDÂNCIA

Fonte desta imagem AQUI.

Boaventura de Sousa Santos

A “maldição da abundância” é uma expressão usada para caracterizar os riscos que correm os países pobres onde se descobrem recursos naturais objeto de cobiça internacional. A promessa de abundância decorrente do imenso valor comercial dos recursos e dos investimentos necessários para o concretizar é tão convincente que passa a condicionar o padrão de desenvolvimento económico, social, político e cultural.

Os riscos desse condicionamento são, entre outros: crescimento do PIB em vez de desenvolvimento social; corrupção generalizada da classe política que, para defender os seus interesses privados, se torna crescentemente autoritária para se poder manter no poder, agora visto como fonte de acumulação primitiva de capital; aumento em vez de redução da pobreza; polarização crescente entre uma pequena minoria super-rica e uma imensa maioria de indigentes; destruição ambiental e sacrifícios incontáveis às populações onde se encontram os recursos em nome de um “progresso” que estas nunca conhecerão; criação de uma cultura consumista que é praticada apenas por uma pequena minoria urbana mas imposta como ideologia a toda a sociedade; supressão do pensamento e das práticas dissidentes da sociedade civil sob o pretexto de serem obstáculos ao desenvolvimento e profetas da desgraça. Em suma, os riscos são que, no final do ciclo da orgia dos recursos, o país esteja mais pobre econômica, social, política e culturalmente do que no seu início. Nisto consiste a maldição da abundância.

Depois das investigações que conduzi em Moçambique entre 1997 e 2003 visitei o país várias vezes. Da visita que acabo de fazer colho uma dupla impressão que a minha solidariedade com o povo moçambicano transforma em dupla inquietação. A primeira tem precisamente a ver com a orgia dos recursos naturais. As sucessivas descobertas (algumas antigas) de carvão (Moçambique é já o sexto maior produtor de carvão a nível mundial), gás natural, ferro, níquel, talvez petróleo anunciam um El Dorado de rendas extrativistas que podem ter um impacto no país semelhante ao que teve a independência. Fala-se numa segunda independência. Estarão os moçambicanos preparados para fugir à maldição da abundância? Duvido.

As grandes multinacionais, algumas bem conhecidas dos latino-americanos, como a Rio Tinto e a brasileira Vale do Rio Doce (Vale Moçambique) exercem as suas atividades com muito pouca regulação estatal, celebram contratos que lhe permitem o saque das riquezas moçambicanas com mínimas contribuições para o orçamento de estado (em 2010 a contribuição foi de 0,04%), violam impunemente os direitos humanos das populações onde existem recursos, procedendo ao seu reassentamento (por vezes mais de um num prazo de poucos anos) em condições indignas, com o desrespeito dos lugares sagrados, dos cemitérios, dos ecossistemas que têm organizado a sua vida desde há dezenas ou centenas de anos.

Sempre que as populações protestam são brutalmente reprimidas pelas forças policiais e militares. A Vale é hoje um alvo central das organizações ecológicas e de direitos humanos pela sua arrogância neo-colonial e pelas cumplicidades que estabeleceu com o governo. Tais cumplicidades assentam por vezes em perigosos conflitos de interesses, entre os interesses do país governado pelo Presidente Guebuza e os interesses das empresas do empresário Guebuza donde podem resultar graves violações dos direitos humanos como quando o ativista ambiental Jeremias Vunjane, que levava consigo para a Conferência da ONU, Rio+20, denúncias dos atropelos da Vale, foi arbitrariamente impedido de entrar no Brasil e deportado (e só regressou depois de muita pressão internacional), ou quando, às organizações sociais é pedida uma autorização do governo para visitar as populações reassentadas como se estas vivessem sob a alçada de um agente soberano estrangeiro.

São muitos os indícios de que as promessas dos recursos começam a corromper a classe política de alto a baixo e os conflitos no seio desta são entre os que “já comeram “ e os que “querem também comer”. Não é de esperar que nestas condições, os moçambicanos no seu conjunto beneficiem dos recursos. Pelo contrário, pode estar em curso a angolanização de Moçambique. Não será um processo linear porque Moçambique é muito diferente de Angola: a liberdade de imprensa é incomparavelmente superior; a sociedade civil está mais organizada; os novos-ricos têm medo da ostentação porque ela zurzida semanalmente na imprensa e também pelo medo dos sequestros; o sistema judicial, apesar de tudo, é mais independente para atuar; há uma massa crítica de acadêmicos moçambicanos credenciados internacionalmente capazes de fazer análises sérias que mostram que “o rei vai nu”.

A segunda impressão/inquietação, relacionada com a anterior, consiste em verificar que o impulso para a transição democrática que observara em estadias anteriores parece estancado ou estagnado. A legitimidade revolucionária da Frelimo sobrepõe-se cada vez mais à sua legitimidade democrática (que tem vindo a diminuir em recentes atos eleitorais) com a agravante de estar agora a ser usada para fins bem pouco revolucionários; a partidarização do aparelho de estado aumenta em vez de diminuir; a vigilância sobre a sociedade civil aperta-se sempre que nela se suspeita dissidência; a célula do partido continua a interferir com a liberdade acadêmica do ensino e investigação universitários; mesmo dentro da Frelimo, e, portanto, num contexto controlado, a discussão política é vista como distração ou obstáculo ante os benefícios indiscutidos e indiscutíveis do “desenvolvimento”. Um autoritarismo insidioso disfarçado de empreendorismo e de aversão à política (“não te metas em problemas”) germina na sociedade como erva daninha.

Ao partir de Moçambique, uma frase do grande escritor moçambicano Eduardo White cravou-se em mim e em mim ficou: “nós que não mudamos de medo por termos medo de o mudar” (Savana, 20-7-2012). Uma frase talvez tão válida para a sociedade moçambicana como para a sociedade portuguesa e para tantas outras acorrentadas às regras de um capitalismo global sem regras.

Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Moçambique: EUA e Inglaterra sabiam que avião de Samora Machel foi sabotado


Maputo, 15 Ago (Lusa) - O antigo ministro da Segurança de Moçambique, Sérgio Vieira, disse quinta-feira em Maputo que a Inglaterra e os Estados Unidos sabiam que o avião em que morreu o ex-Presidente moçambicano Samora Machel foi sabotado e não caiu por acidente.

Samora Machel, chefe de Estado moçambicano desde a proclamação da independência do país, em 1975, até à sua morte a 19 de Outubro de 1986, perdeu a vida quando o avião em que viajava caiu na localidade sul-africana de Mbuzini.

Uma comissão de inquérito composta por peritos de Moçambique, África do Sul e da ex-União Soviética chegou a resultados divergentes, com os especialistas moçambicanos e soviéticos a apontarem a sabotagem do aparelho como causa do acidente e a África do Sul a indicar erros de pilotagem.

Na altura, Moçambique e o Governo sul-africano, dirigido pelo regime racista do "apartheid", viviam num ambiente de permanente hostilidade, com Maputo a acusar Pretória de apoiar a guerrilha da RENAMO, hoje o maior partido da oposição moçambicana.

As autoridades sul-africanas de então acusavam, por seu lado, Maputo de albergar militantes do Congresso Nacional Africano (ANC), que lutava contra a política de discriminação na África do Sul, e hoje partido no poder neste país.

Em entrevista quinta-feira ao principal canal privado de televisão em Moçambique, a STV, Sérgio Vieira, que ocupava a pasta de Segurança no ano em que Machel morreu, reiterou a posição de que o ex-chefe de Estado moçambicano foi "assassinado" e não vítima de acidente de viação, sublinhando ainda que "os Estados Unidos e a Inglaterra sabiam do que aconteceu".

"Nas vésperas do funeral do Presidente Samora Machel, o embaixador inglês telefonou-me a informar que tinha recebido instruções de Downing Street [gabinete do Primeiro-Ministro inglês], para comunicar que a Inglaterra não faria parte de qualquer comissão de inquérito, encarregue de investigar a morte do Presidente Samora Machel. Instantes depois, o embaixador dos Estados Unidos também me telefonou a comunicar o mesmo facto", disse Sérgio Vieira.

Para Vieira, os governos norte-americanos e inglês tomaram essa posição porque sabiam que os seus peritos chegariam à conclusão de que o Tupolev em que viajava Samora Machel tinha sido sabotado e não tinha caído devido a erros de pilotagem.

"Os Estados Unidos e a Inglaterra sabiam que os seus peritos nunca aceitariam uma aldrabice, e chegariam a uma conclusão politicamente inconveniente", a de que a queda do avião tinha sido provocada pelo regime do "apartheid", que apesar de estar sob sanções internacionais, era tolerado pelo Ocidente.

Os Estados Unidos e a Inglaterra consideravam a África do Sul do tempo do "apartheid" uma espécie de tampão contra o expansionismo do comunismo da ex-União Soviética, que tinha sob sua órbita a generalidade dos países africanos, incluindo Moçambique.

Sérgio Vieira, que chefiou a missão enviada pelas autoridades moçambicanas, para trazer os corpos das vítimas do acidente a Moçambique, achou igualmente estranho que tenha sido sugerido o envolvimento da Inglaterra e dos Estados Unidos na comissão de inquérito, contra as regras da Associação Internacional do Transporte Aéreo (IATA), que "prevêem na comissão de inquérito a participação do produtor da aeronave, do país do acidente e do país das vítimas".

"O ministro [dos Negócios Estrangeiros da África do Sul] Roelof 'Pik' Botha disse-me que os Estados Unidos e a Inglaterra participariam na comissão de inquérito, e eu achei isso estranho, porque é contra as regras da IATA. Dias depois, são os embaixadores dos dois países que negam essa participação, sem que Moçambique a tenha pedido alguma vez", enfatizou Sérgio Vieira.

Sem acusar directamente o Governo sul-africano desse tempo, o ex-ministro moçambicano da Segurança recordou que o então ministro da Defesa da África do Sul, Magnus Malan, ameaçou directamente Samora Machel, nas vésperas do acidente, pelo alegado apoio deste a actos de guerrilha protagonizados no interior da África do Sul por militantes do ANC.

Sérgio Vieira considerou sem sentido a posição sul-africana de que os pilotos russos do avião do Presidente moçambicano eram inexperientes e tripulavam ébrios, como concluiu a parte sul-africana da comissão mista do inquérito.

"Os únicos vestígios de álcool encontrados nos corpos são os que resultam da decomposição após a morte e não de algum consumo (...), quanto à experiência dos pilotos, eram aquilo que em gíria de pilotagem se diz milionários do ar, com mais de 10 mil horas de voo. O único com menos horas tinha oito mil horas, e não exercia funções no 'cockpit'", sublinhou Vieira.

Segundo Sérgio Vieira, é suspeito que as autoridades sul-africanas tenham declarado o local do despenhamento do avião zona militar, nas vésperas da queda do aparelho, para depois retirarem os militares da zona, deixando alguns polícias, no momento em que a missão enviada pelo Governo moçambicano chegou à área.

Vieira acusou ainda as autoridades sul-africanas de não terem prestado socorro aos feridos, preocupando-se apenas em reconhecer o Presidente Samora Machel, que "teve morte instantânea e apresentava o crâneo amarrotado", e em recolher documentos.

"Um dos sobreviventes contou-me que os membros do exército sul-africano que estavam no local do acidente só se preocuparam em recolher documentos e em reconhecer o Presidente Samora Machel", disse na entrevista o antigo ministro moçambicano da Segurança.

Sobre uma alegada "mão interna" de membros do Governo moçambicano na conspiração com as autoridades sul-africanas para provocar a queda do aparelho, justificada pelo facto de nenhum dos principais quadros do partido no poder em Moçambique, FRELIMO, não ter integrado a comitiva presidencial que sofreu o acidente, Sérgio Vieira considerou-a "especulação", justificando depois a sua própria ausência da viagem em que acabou morrendo Samora Machel.

"O próprio Samora disse-me a mim para não viajar, porque acabava de perder a minha primeira mulher e tinha chegado havia pouco tempo de uma missão do Botsuana. Joaquim Chissano [que depois sucedeu a Samora Machel na chefia do Estado moçambicano] estava fora do país também em missão de serviço", sublinhou Sérgio Vieira, lembrando ainda que Machel desrespeitou recomendações da sua equipa de segurança para não viajar à noite de avião, devido à situação de guerra que se vivia na África Austral.

"Samora Machel tinha virtudes, mas era teimoso, atropelou várias vezes regras protocolares, incluindo recomendações para não viajar à noite de avião. Tive várias vezes ataques cardíacos, devido à sua teimosia", acrescentou Sérgio Vieira.

PMA.

Lusa/Fim