segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

O PAPA NÃO É MAIS POP

O legado do renunciante no Brasil

O evento mais midiático da visita do papa Bento XVI ao Brasil em 2007 foi a beatificação de um franciscano que enfrentou o poder secular na defesa de um soldado negro condenado à forca. E o de menor interesse público foi a assinatura do acordo para que o Estado brasileiro e a Santa Sé formulassem o estatuto jurídico da igreja católica no país.

 

Bento XVI havia sido sagrado dois anos antes e, nesse pequeno extrato de seu papado, foi capaz de traduzir a missão política de que se investira.
Com a beatificação de Frei Galvão dispunha-se a mostrar que a "opção preferencial pelos pobres" não poderia ser reinvindicada exclusivamente pela banda do clero, em baixa no Vaticano, que, anos atrás, havia se irmanado com movimentos sociais para o surgimento do PT do presidente da República.
Igreja protegeu bens contra ações trabalhistas
Mas se a beatificação conferiu simbolismo à visita política de um teólogo, o capítulo mais substancioso de sua passagem foi a assinatura do acordo negociado por 17 anos entre os dois Estados.
O acordo, que acabaria virando estatuto ao final do segundo mandato Luiz Inácio Lula da Silva, não vai além do que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação prevê para o ensino religioso nem inibe a possibilidade de, um dia, o Estado descriminalizar o aborto.
A maior vitória da igreja com o texto foi a inclusão de um artigo que prevê o trabalho voluntário, sem vínculo empregatício, de leigos, padres e freiras que trabalham em instituições católicas. É nas ordens religiosas e não nas paróquias que está a maior fonte de renda da igreja. São os hospitais, escolas e imóveis dessas ordens que se viram crescentemente ameaçados pelas reclamações trabalhistas tanto de leigos quanto de padres e freiras que abandonam o hábito.
Além de um gesto de boa vontade com a Santa Sé, o governo petista agradava o comando da CNBB, de hegemonia conservadora à época e com a qual comungavam bispos como o então cardeal do Rio, d. Eusébio Scheidt, responsável pela desastrada definição do presidente: "Lula não é católico, é caótico".
Oito meses depois de promulgado o estatuto e três dias antes do segundo turno da tumultuada sucessão presidencial de 2010 o papa recebeu uma comitiva de bispos brasileiros que saíram do Vaticano com um recado para os eleitores. Não deveriam votar em candidatos que defendessem o aborto, mesma pregação do postulante do PSDB à Presidência, José Serra.
Além de ter tido fôlego curto na garantia de boas relações entre o petismo e a Santa Sé, o acordo indispôs um governo de extrato trabalhista com os movimentos sociais que abastecem de mão de obra as pastorais sociais da igreja.
Colaborou ainda para o azedume das relações entre o governo brasileiro e a cúpula eclesiástica a prosperidade dos negócios pentecostais sob o governo petista. A questão que mais parece pôr em xeque o papel da igreja na conjuntura, no entanto, é a perda de audiência católica em entre aqueles que passaram a consumir mais, seja pela ampliação do emprego e dos programas sociais, seja pela disputa com denominações mais identificadas com o ideário da prosperidade.
Se essa perda de fieis ainda não ameaça a condição de maior país católico do mundo tampouco colabora para aumentar o peso do episcopado brasileiro nos rumos de um papado voltado para a reevangelização do catolicismo europeu que Bento XVI sempre creu superior.
Pela frequência com que tem se pronunciado desde que anunciou sua renúncia, Bento XVI chegará a 28 de fevereiro, dia em que descalcará seus múleos vermelhos, como um cabo eleitoral de seu sucessor mais poderoso do que se exercesse o cargo vitalício até o fim, tolhido que parecia estar pelas intrigas da Cúria relatadas pelos mais eminentes especialistas em Vaticano.
Na homilia que deu início à quaresma pediu o fim das divisões do corpo eclesial. Como se quisesse deixar claro que o fim dessas divisões não deveria significar a prevalência de tendências mais modernizantes do catolicismo, reuniu os padres de Roma ontem e reafirmou suas críticas a leituras do Concílio Vaticano II, que "banalizaram a liturgia em nome da soberania popular".
Essas leituras criticadas pelo papa viram no concílio o início de uma maior abertura da igreja ao ecumenismo, ao diálogo com a ciência e à solidariedade com o mundo subdesenvolvido.
A maioria dos 117 cardeais que votarão no próximo conclave foi escolhida por Bento XVI e por João Paulo II, cujo papado foi fortemente influenciado pelo então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que o sucederia.
Não se deve esperar deste conclave, portanto, uma guinada teológica. Mas a renúncia expôs as disputas mais terrenas que pressionarão o cardinalato a sinalizar punições a crimes de sexo e dinheiro. Na homilia da quaresma Bento XVI fez uma menção sutil ao condenar a "hipocrisia religiosa, o comportamento dos que querem aparentar, as atitudes que buscam os aplausos e a aprovação".
A resistência dos últimos oito anos de papado em punir bispos omissos em relação aos crimes sexuais cometidos pelos padres de suas paróquias não recebeu, de fato, aplausos nem aprovação.
A rede de sobreviventes de abusos de padres, uma ativa organização sediada nos Estados Unidos, já listou três cardeais indesejáveis - de Nova York, Tegucigalpa e Cidade do México - por serem os maiores críticos à cobertura da imprensa sobre o tema.
Na outra frente de problemas, de punição ainda mais escassa, a corrupção no Instituto para as Obras do Vaticano revela um papa imobilizado pelas intrigas da Cúria e refém de interesses que passam pela lavagem de dinheiro da máfia, de políticos e construtoras, como denunciou seu último dirigente ao demitir-se no ano passado.
Não são problemas novos mas que, nos últimos oito anos, apenas se agravaram, pondo em xeque o legado da superioridade moral da igreja católica, tão caro ao papa que se vai.
Maria Cristina Fernandes é editora de Política.

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