O legado do renunciante no Brasil
O evento mais midiático da visita do papa Bento XVI ao Brasil em 2007 foi a beatificação de um franciscano que enfrentou o poder secular na defesa de um soldado negro condenado à forca. E o de menor interesse público foi a assinatura do acordo para que o Estado brasileiro e a Santa Sé formulassem o estatuto jurídico da igreja católica no país.
Bento XVI havia sido sagrado dois anos antes e, nesse pequeno extrato de seu papado, foi capaz de traduzir a missão política
de que se investira.
Com
a beatificação de Frei Galvão dispunha-se a mostrar que a "opção
preferencial pelos pobres" não poderia ser reinvindicada
exclusivamente pela banda do clero, em baixa no Vaticano, que, anos
atrás, havia se irmanado com movimentos sociais para o surgimento do PT
do presidente da República.
Igreja protegeu bens contra ações trabalhistas
Mas se a beatificação conferiu simbolismo à visita política de um teólogo, o capítulo mais substancioso de sua passagem
foi a assinatura do acordo negociado por 17 anos entre os dois Estados.
O
acordo, que acabaria virando estatuto ao final do segundo mandato Luiz
Inácio Lula da Silva, não vai além do que a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação prevê para o ensino religioso nem
inibe a possibilidade de, um dia, o Estado descriminalizar o aborto.
A
maior vitória da igreja com o texto foi a inclusão de um artigo que
prevê o trabalho voluntário, sem vínculo empregatício,
de leigos, padres e freiras que trabalham em instituições católicas. É
nas ordens religiosas e não nas paróquias que está a maior fonte de
renda da igreja. São os hospitais, escolas e imóveis dessas ordens que
se viram crescentemente ameaçados pelas reclamações
trabalhistas tanto de leigos quanto de padres e freiras que abandonam o
hábito.
Além
de um gesto de boa vontade com a Santa Sé, o governo petista agradava o
comando da CNBB, de hegemonia conservadora
à época e com a qual comungavam bispos como o então cardeal do Rio, d.
Eusébio Scheidt, responsável pela desastrada definição do presidente:
"Lula não é católico, é caótico".
Oito
meses depois de promulgado o estatuto e três dias antes do segundo
turno da tumultuada sucessão presidencial de
2010 o papa recebeu uma comitiva de bispos brasileiros que saíram do
Vaticano com um recado para os eleitores. Não deveriam votar em
candidatos que defendessem o aborto, mesma pregação do postulante do
PSDB à Presidência, José Serra.
Além de ter tido fôlego curto na garantia de boas relações entre o petismo e a Santa Sé, o acordo indispôs um governo
de extrato trabalhista com os movimentos sociais que abastecem de mão de obra as pastorais sociais da igreja.
Colaborou
ainda para o azedume das relações entre o governo brasileiro e a cúpula
eclesiástica a prosperidade dos negócios
pentecostais sob o governo petista. A questão que mais parece pôr em
xeque o papel da igreja na conjuntura, no entanto, é a perda de
audiência católica em entre aqueles que passaram a consumir mais, seja
pela ampliação do emprego e dos programas sociais, seja
pela disputa com denominações mais identificadas com o ideário da
prosperidade.
Se
essa perda de fieis ainda não ameaça a condição de maior país católico
do mundo tampouco colabora para aumentar o
peso do episcopado brasileiro nos rumos de um papado voltado para a
reevangelização do catolicismo europeu que Bento XVI sempre creu
superior.
Pela
frequência com que tem se pronunciado desde que anunciou sua renúncia,
Bento XVI chegará a 28 de fevereiro, dia
em que descalcará seus múleos vermelhos, como um cabo eleitoral de seu
sucessor mais poderoso do que se exercesse o cargo vitalício até o fim,
tolhido que parecia estar pelas intrigas da Cúria relatadas pelos mais
eminentes especialistas em Vaticano.
Na
homilia que deu início à quaresma pediu o fim das divisões do corpo
eclesial. Como se quisesse deixar claro que o
fim dessas divisões não deveria significar a prevalência de tendências
mais modernizantes do catolicismo, reuniu os padres de Roma ontem e
reafirmou suas críticas a leituras do Concílio Vaticano II, que
"banalizaram a liturgia em nome da soberania popular".
Essas leituras criticadas pelo papa viram no concílio o início de uma maior abertura da igreja ao ecumenismo, ao diálogo
com a ciência e à solidariedade com o mundo subdesenvolvido.
A maioria dos 117 cardeais que votarão no próximo conclave foi escolhida por Bento XVI e por João Paulo II, cujo papado
foi fortemente influenciado pelo então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que o sucederia.
Não
se deve esperar deste conclave, portanto, uma guinada teológica. Mas a
renúncia expôs as disputas mais terrenas que
pressionarão o cardinalato a sinalizar punições a crimes de sexo e
dinheiro. Na homilia da quaresma Bento XVI fez uma menção sutil ao
condenar a "hipocrisia religiosa, o comportamento dos que querem
aparentar, as atitudes que buscam os aplausos e a aprovação".
A resistência dos últimos oito anos de papado em punir bispos omissos em relação aos crimes sexuais cometidos pelos padres
de suas paróquias não recebeu, de fato, aplausos nem aprovação.
A
rede de sobreviventes de abusos de padres, uma ativa organização
sediada nos Estados Unidos, já listou três cardeais
indesejáveis - de Nova York, Tegucigalpa e Cidade do México - por serem
os maiores críticos à cobertura da imprensa sobre o tema.
Na
outra frente de problemas, de punição ainda mais escassa, a corrupção
no Instituto para as Obras do Vaticano revela
um papa imobilizado pelas intrigas da Cúria e refém de interesses que
passam pela lavagem de dinheiro da máfia, de políticos e construtoras,
como denunciou seu último dirigente ao demitir-se no ano passado.
Não são problemas novos mas que, nos últimos oito anos, apenas se agravaram, pondo em xeque o legado da superioridade
moral da igreja católica, tão caro ao papa que se vai.
Maria Cristina Fernandes é editora de Política.
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