segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013
Os estranhos visitantes do Dops
O que um representante da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) faria em um centro de torturas da ditadura civil-militar (1964-1985) durante madrugadas? O que levaria um cônsul dos Estados Unidos a esse mesmo lugar repetidas vezes, por longas horas?
É sobre essas questões se que se debruçam atualmente os membros da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. Por meio de investigações, a Comissão apurou que pessoas ligadas à Fiesp e ao Consulado eram presença constante durante os dias e as noites do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Dops), um dos órgãos repressores criados pelo regime.
Para tentar esclarecer esses fatos, a Comissão Estadual da Verdade realizará uma audiência pública na próxima segunda-feira (18), às 14h, na Assembleia Legislativa (Alesp), onde apresentará os documentos que embasaram as investigações.
Visitas frequentes
A chave para a descoberta foi uma pesquisa no “Coincidência”? Cônsul estadunidense entra no Dops cinco minutos depois do capitão Ênio Pimentel Silveira, um dos torturadores mais famosos do período - Foto: Documentos do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Ao checar os livros de registro de entrada e saída do prédio do Dops, localizado no centro da capital paulista, integrantes da Comissão Estadual da Verdade perceberam a frequência de dois nomes, que não faziam parte das equipes policiais: “Dr. Geraldo Rezende de Matos”, que se apresentava no formulário como “Fiesp”, e “Dr. Halliwell”, que assinava como “Consulado Americano”.
Além da assiduidade, despertaram atenção os horários em que os representantes da Fiesp e do consulado estadunidense se dirigiam ao prédio do Dops e as longas horas em que permaneciam ali.
Somente nos meses de abril a setembro de 1971 (os livros com os outros meses deste ano desapareceram), Geraldo Rezende de Matos, da Fiesp, dirigiuse ao local 40 vezes. Em uma dessas visitas, sua entrada ocorreu às 17h30min, mas não consta horário de saída. Como os funcionários da portaria trabalhavam apenas até 22h, os movimentos feitos depois deste horário não eram anotados. Significa, então, que Matos teria ficado além das 22h.
Já em outro registro, de 24 de abril de 1972, o representante da Fiesp entra no prédio às 18h20 e sai às 12h35 do dia seguinte, 25 de abril. Foram cerca de 18 horas no local.
“O que o cara da Fiesp ia fazer lá? Essa é a pergunta que fazemos”, explica o coordenador da Comissão Estadual da Verdade, Ivan Seixas.
Seixas, que também é ex-preso político e membro da Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos, conta que a Comissão já pediu esclarecimentos à Fiesp sobre o assunto. A federação, por sua vez, alega não ter registros de Geraldo Rezende de Matos.
De acordo com investigações da Comissão, Matos era um empresário ligado aos ramos de metalurgia, além de possuir uma empresa de seguros e reparação que atendia militares.
“A Fiesp tem que explicar isso, não estamos inventando nada”, destaca o presidente da Comissão Estadual da Verdade, o deputado Adriano Diogo (PT-SP). “Queremos saber por que uma pessoa que ia ao Dops, [onde] permanecia horas e madrugadas, assinava como representante da Fiesp”, completa.
A Fiesp foi convidada para prestar esclarecimentos sobre o caso na audiência pública do dia 18. A reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa da federação, que não soube informar se a instituição estará representada.
Empresariado
Os vínculos do empresariado com os agentes da ditadura são assunto antigo de pesquisas e estudos. O tema é a base do documentário Cidadão Boilesen (2009), dirigido por Chaim Litewski. O filme, que resgata a vida do empresário dinamarquês Henning Boilesen, desvela não apenas as contribuições financeiras do protagonista (então presidente do grupo Ultra) ao aparato militar, mas de diversas figuras ligadas a organizações multinacionais e instituições, incluindo a Fiesp.
Em novembro, o coordenador da Comissão da Verdade, Cláudio Fonteles, divulgou um texto em que relaciona a Fiesp à produção de armas para os militares que derrubaram João Goulart da presidência em 1964. No documento, Fonteles cita um relatório confi dencial produzido pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), hoje sob guarda do Arquivo Nacional, que descreve a criação do Grupo Permanente de Mobilização Industrial (GPMI) em 31 de março de 1964, data do golpe. De acordo com o documento, o órgão teve a função de fornecer “armas e equipamentos militares aos revolucionários paulistas”.
O caso de Geraldo Rezende de Matos, no entanto, desperta na Comissão outra suspeita. Para Seixas, é provável que as idas de Matos ao Dops visassem a troca de informações entre empresários, a polícia e o Exército. “Vem à cabeça de todo mundo, quando se fala em empresários e repressão, o financiamento. Mas nós não estamos trabalhando com essa hipótese. Para nós, a Fiesp ia lá entregar nomes de operários para serem reprimidos”, esclarece Seixas.
Consulado
Já o “Dr. Halliwell” dos livros de registros era Claris Rowley Halliwell (19182006), cônsul estadunidense no Brasil entre 1971 e 1974. Junto à Universidade de San Diego, na Califórnia, a Comissão apurou que Halliwell teria integrado o serviço secreto dos Estados Unidos, a CIA.
Assim como Geraldo Rezende de Matos, ele também comparecia com frequência aoDops, sobretudo à noite, on-de permanecia durante toda a madrugada. De abril a setembro de 1971, Halliwell esteve no local 31 vezes, de acordo com os registros.
Em uma das idas, em 5 de abril de 1971, seu ingresso no prédio ocorreu às 12h40min da tarde, cinco minutos depois da entrada do capitão Ênio Pimentel Silveira, torturador que fi cou conhecido como “Dr. Ney”. Ambos permaneceram no prédio além das 22h.
As “coincidências” não param por aí. Nesse mesmo dia, pela manhã, havia si-do preso e levado para o Dops Devanir José de Carvalho, dirigente do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT). Depois de uma série de torturas, Carvalho faleceu em 7 de abril.
Para Ivan Seixas, não há como negar o envolvimento do cônsul com os crimes. “Nos prédios do Dops e da Oban [Operação Bandeirante], quando se torturava não era segredo. O prédio inteiro ouvia, a vizinhança também. O mínimo que se pode dizer era que o ‘cara’ [cônsul] era conivente, mas eu acho que [ele] era participante”, diz Seixas. Depois de sair do Brasil, Halliwell foi cônsul estadunidense no Chile – onde, um ano antes, um golpe de Estado havia tirado do poder Salvador Allende.
“A gente acha que essas coisas são de filme de ficção científica, que ‘na minha terra não tem isso’. O ‘cara’ não estava levando os passaportes para a Disneylândia, era um agente da CIA”, ressalta o deputado Adriano Diogo, que integrou a militância estudantil durante o regime.
Para o deputado, a revelação desses registros ajudará a contar a história des-se período e a revelar quem praticou e engendrou os crimes.“Os documentos evidenciam a existência de uma enorme organização criminosa que se reunia nas dependências do Dops para torturar as pessoas, matar e planejar sequestros”, pontua.
Patrícia Benvenuti
Brasil de Fato
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