Por Pedro Doria, para Canal Meio (canalmeio.com.br)
No ano de 1901, explodiu como best-seller nas livrarias londrinas Kim,
um pequeno romance adolescente de Rudyard Kipling. A rainha Vitória
havia morrido fazia meses, o Império Britânico estava próximo do fim,
mas isso ainda não era óbvio. Como Mowgli, o menino lobo, seu personagem
anterior de sucesso equivalente, Kipling fez de Kim um rapaz esperto e
atento, capaz de livrar-se de toda sorte de desventuras, mas
fundamentalmente preso entre dois mundos. Não era, porém, entre o mundo
animal e o humano. Desta vez, era entre Oriente e Ocidente. Menino órfão
e muito pobre zanzando pelas ruas de Lahore, no atual Paquistão, Kim
era filho de pai irlandês e mãe inglesa, mas tão queimado de Sol e
falava a língua local com tanta fluência que ninguém o percebia como
branco. Parecia mais um dos patanes, uma das etnias comuns à região, e
esta sua ambiguidade étnica logo se mostraria útil à espionagem do
Império. Pois Kim, o romance, também popularizou entre os
britânicos uma nova expressão para aquilo que o Império jogava naquele
canto do mundo. O Great Game,
o Grande Jogo. A disputa militar e diplomática entre os dois impérios,
russo e britânico, por terras e espaço de atuação. Um choque que se dava
numa terra tão pobre quanto Kim, tão ambígua quanto o personagem. A
história se passa uns vinte anos antes da publicação, logo após o fim da
Segunda Guerra Afegã — uma guerra vencida pelos ingleses, que puseram
no Afeganistão um governo que lhe era fiel para criar um colchão entre o
território russo e a Índia britânica. O Império onde o Sol nunca se
põe, com domínios que iam do Canadá à China, ainda parecia que duraria
para sempre. Mas o Grande Jogo não havia terminado — ninguém nunca
conquista realmente o Afeganistão. Na Terceira Guerra Afegã, que começou
em 1919, os ingleses terminariam humilhados. O Grande Jogo terminou com
o Império derrotado não pela Rússia, que vivia uma revolução comunista,
e sim pelos afegãos.
Sempre foi assim. Como aprenderam os americanos esses dias, em sua
terra os patanes sempre vencem. Desde Alexandre, o Grande, incontáveis
impérios aprenderam a mesma lição. É sempre fácil derrota-los em batalha
aberta. E é sempre impossível derrota-los em definitivo. Nunca morrem,
estão sempre lá, nunca desistem. E sempre voltam.
Dois mundos
O hábito de estudar história com a Europa no centro dos
acontecimentos às vezes nos atrapalha a compreensão do mundo. Fica
parecendo que o Ocidente tem início onde a Europa começa. Chamamos,
assim, a terra ocupada por árabes, judeus e persas de Oriente Médio.
Mas, culturalmente, a divisão não é esta. Há, sim, uma profunda divisão
na maneira de compreender a existência entre Ocidente e Oriente ¬— mas a transição se dá na Índia.
Se fosse possível simplificar — e há exceções em ambos os lados —, a
divisão cultural se dá assim. Em sua maioria, as religiões ocidentais
são teístas. Têm um ou mais deuses que estão acima de nós humanos. A
escrita das línguas ocidentais é fonética — representamos os sons das
palavras quando as escrevemos. E, principalmente, compreendemos o tempo
como linear, uma contínua e lenta evolução, um caminhar para a frente. A
Índia, o Paquistão, o Afeganistão, estão no meio entre estes dois
mundos. A humanidade naquele canto da Terra tem características de
ambos. Mas, quando chegamos ao Oriente, as religiões em geral não têm
deuses, se concentram na compreensão da existência em conjunto com o
Universo. A escrita em geral representa as ideias por trás das palavras,
e não os sons. E o tempo, como a história, são compreendidos como
circulares. Ciclos que se abrem e se completam para novamente se abrir.
Há diferenças nítidas e, no entanto, tanto Oriente quanto Ocidente
sempre buscaram comércio entre si. Para que este comércio se desse, foi
sempre preciso passar pela terra dos patanes. É um canto do mundo onde
jamais nasceu uma grande civilização — não no sentido que costumamos dar
à palavra. Não há uma Mesopotâmia, uma Pérsia, uma China, uma Roma, uma
Índia, uma Grécia, um Egito. Mesmo as duas maiores cidades afegãs,
Kabul e Kandahar, só começaram a parecer mesmo cidades, da maneira como
compreendemos o que uma cidade é, com prédios de vários andares e ruas
que se cruzam, divididas em bairros, a partir do século 20. Antes, como a
maioria das cidades afegãs, pareciam essencialmente grandes fortalezas
perdidas num canto ermo e particularmente perigoso do mundo. Por isso
mesmo, para garantir a segurança das caravanas de comércio que
trafegavam com grandes valores, impérios cientes de seu grande poderio
militar sempre acharam conveniente conquistar o que hoje chamamos
Afeganistão. Se eram capazes de enfrentar outros impérios, não seria ali
que perderiam algo. Sempre perderam. Os persas perderam. Os mongóis perderam. Os soviéticos perderam.
Ou, talvez seja melhor dizer: pareceram dominar por um tempo, mas
nunca controlaram de fato as tribos da região e, num ambiente de
exaustão pelo conflito que nunca acabava, terminaram deixando exauridos a
terra dos patanes. Exatamente como, agora, fazem os EUA.
Há razões para isso — razões que começam pela inexistência de
cidades. Na Ásia Central, ao invés de cidades existem estruturas que
eles chamam de kuhandiz mas que o resto do mundo costuma se referir pelo
nome árabe. Qal’ah, muitas vezes transcrito como qalat. São
cidadelas, cidades muradas. Grandes paredões erguidos alto, não raro com
torres espaçadas. As casas, também construídas de forma sólida, grandes
paralepípedos, ficam tradicionalmente no interior dos muros. Há casas
também no lado de fora, mas a organização de cada vila como fortaleza já
mostra que se trata de uma cultura voltada para a guerra. A invasão de
uma qalat é sempre muito difícil.
Uma das bases utilizadas pelos americanos no Afeganistão, nesses últimos vinte anos, foi Ball Haizer. Seu apelido é Castelo de Alexandre,
por ter sido erguido quando o conquistador grego fazia seu caminho em
direção à Índia. Dois mil anos atrás. Uma qalat que, não à toa, fica na
cidade batizada há muito de Qalat. A preponderância da estrutura fez do
termo genérico um nome próprio.
Mas não é apenas que as pessoas se distribuíram por fortalezas no
Afeganistão. A geografia faz do lugar uma fortaleza natural, com imensas
cordilheiras formadas por montanhas particularmente escarpadas. Dois
terços é cortado pelo Hindu Kush.
É um relevo difícil para qualquer estrangeiro, mesmo com toda
tecnologia. Um relevo amplamente dominado por quem nasceu e sempre viveu
ali, mas que também dificulta a formação de grandes aglomerações
humanas. Este é um dos motivos de cidades terem demorado tanto a ganhar
forma. A geografia incentivou a tribalização do país. E, até hoje, a
principal fidelidade das pessoas é à sua tribo. Incontáveis afegãos,
desde sempre, passam a vida inteira sem nunca deixar a aldeia em que
nasceram. E, como qualquer terra cuja história é uma sequência milenar
de invasões estrangeiras, todos por natureza desconfiam das intenções de
quem vem de fora.
Mas uma lição a história deixou e o povo patane aprendeu. Eles vão
continuar ali. O estrangeiro uma hora não aguenta os constantes ataques
que vêm do nada, de pessoas protegidas e escondidas pelas escarpas do
Hindu Kush. E vai embora. O budismo já foi proeminente, faz alguns
séculos que sua religião é Ocidental. O Islã. Mas entendem o tempo à
Oriental — como ciclos. As invasões vêm, e sempre vão. Basta esperar. E
manter os ataques. Os americanos não demoraram dez anos para encontrar
Osama bin-Laden à toa. É possível desaparecer por muito tempo nas
montanhas afegãs. Bin-Laden foi encontrado ao se mudar para o Paquistão.
A tragédia afegã
A resiliência afegã representa força mas disfarça uma tragédia
humana. A história de invasões deixou marcas e cicatrizes de toda sorte.
Além dos patanes, que formam a maioria étnica, no país ainda convivem
outras três etnias. Tadjiques, uzbeques e hazaras. Este último povo
descende dos invasores mongóis, tem os olhos puxados e é uma constante
lembrança de que o país faz fronteira tanto com o Irã, a Oeste, quanto
com a China, ao Leste. Literalmente no meio do caminho entre dois
mundos. Mesmo. Outra marca é a língua mais falada — pashto, próxima do persa e particularmente próxima do persa antigo, dos homens que escreveram os textos zoroastristas.
Já as cicatrizes, principalmente as deixadas nos últimos 40 anos, são
duras. Na década de 1970, Kabul era uma cidade popular para estudantes
mochileiros europeus atraídos por um certo exotismo oriental. Tinha um
bom haxixe, se dizia. A universidade da capital recebia tanto alunos
homens quanto mulheres e minissaias
não eram raras. Embora algumas escolhessem usar burqas, que eram mais
comuns no interior, havia também mulheres que sequer usavam véus.
Isto mudou com a invasão soviética, em 1979. A URSS estava incomodada
com a crescente influência americana no Paquistão e, como segue o ciclo
histórico, achou por bem invadir a terra dos patanes. Como de hábito, a
conquista se consolidou após alguns meses. Quando os russos deixaram o
Afeganistão, dez anos depois, exasperados, não haviam conseguido
consolidar o poder no país. Mas o deixaram destruído.
Durante aquela década de 1980, os Estados Unidos viam com preocupação
dois avanços naquele canto do mundo. O do Irã após a Revolução Islâmica
xiita do aiatolá Ruhollah Khomeini e o da URSS sobre o vizinho
Afeganistão. Então recorreram a parceiros tradicionais — paquistaneses e
árabes sauditas. No jogo da geopolítica, consideraram que era boa
estratégia financiar e armar os mujahedins, guerrilheiros patanes, para
que lutassem contra o adversário comunista. Foi o tempo em que chegaram
as escolas religiosas wahabitas, a versão radicalizada do Islã sunita
que a Arábia Saudita espalha pelo mundo muçulmano.
A palavra talib, em pashto, quer dizer estudante. Era a
palavra usada para designar os guerrilheiros que estudavam nas escolas
patrocinadas pelos sauditas. No plural, Taliban.
O país que passou o século 20 se sofisticando foi fisicamente
destruído pelos soviéticos, mas ainda não havia sido condenado a uma
religião única e opressora. A saída do último invasor deu espaço a uma
guerra civil entre os diversos grupos étnicos só encerrada em 1996. Com a
vitória do Talibã. Que acolheu o grupo saudita que já fazia mais de
década o auxiliava — um grupo que atendia pelo nome al-Qaeda.
Tendo enfim erguido o primeiro país que considerava genuinamente
muçulmano no planeta, que seguia a única forma realmente pura do Islã,
seu líder, o saudita Osama bin-Laden, pôs os olhos no resto do mundo.
Entendeu que para expandir a religião que dividia com o Talibã,
precisava antes derrubar o governo que via como corrupto em seu próprio
país. Um governo cuja corrupção, a seu modo de ver, tinha por origem as
relações com os Estados Unidos da América.
Bin-Laden começou, então, a planejar.
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário