sexta-feira, 25 de outubro de 2013
Há um trem cruzando o céu do Brasil, tudo bem?
Saul Leblon
Se faltava a cena final do filme a ser feito sobre o duplo desastre do colapso neoliberal, tratado com doses adicionais do próprio veneno, a Real Academia Sueca de Ciências cuidou de providenciá-lo.
Cinco anos após a explosão da bolha imobiliária nos EUA , ela concedeu o Nobel de economia a pesquisas que afrontam as evidências da desordem em curso.
Com graus variados de ênfase, os três economistas laureados –os americanos Eugene Fama e Lars Peter Hansen e Robert J.Shiller—filiam-se à escola dos mercados racionais.
Intrinsecamente racionais. E esse advérbio de modo tem consequências políticas.
Se há serenidade na loucura, como preconiza o trio, dispensa-se o manicômio das cautelas externas correspondentes.
Sobretudo, aquelas expressas em protocolos de regulação das finanças pelo Estado, em defesa do interesse público. E do desenvolvimento.
Há um trem cruzando o céu do mundo nesse momento.
Chegará a bom termo, asseguram os arautos das expectativas racionais.
Os passageiros tem todas as informações disponíveis; saberão fazer as melhores escolhas de pouso e decolagem.
Dispensa-se o anacrônico trilho estatal.
O comboio poderá rugir e urrar em alguns momentos, mas no longo prazo a lógica racional se impõe.
Cabe a ela ordenar com eficiência os preços dos ‘ativos’( ações, títulos, imóveis ou outros valores), fatiados e pasteurizados para a precificação diante de seu denominador comum: o juro.
A Real Academia bem que tentou se precaver das críticas temperando o prêmio com uma pitada de alerta para o perigo das ‘bolhas’.
Prevê-las é uma especialidade do laureado Robert Shiller, cujos modelos anteciparam o estouro da roleta imobiliária nos EUA.
O ponto, porém, é que o trio, com nuances de tonalidades, endossa a existência de uma dinâmica intrinsecamente racional que ordena os mercados financeiros. E deles se irradia para o restante da economia e da sociedade.
O 15 de setembro de 2008, com o colapso do Lehman Brothers; as falências em cadeia nos EUA e alhures; os US$ 3,8 trilhões em resgates públicos; os US$ 25 trilhões de perdas para os detentores de ações; os pilantras dos grandes bancos vendendo títulos podres aos próprios clientes, ademais do preço social cobrado, na forma de 30 milhões de desempregados na Europa, o ressurgimento da xenofobia e do fascismo, enfim, tudo isso e muito mais, fica debitado a fatores externos à roleta.
São pequenas refregas na sólida arbitragem diuturna da riqueza fictícia.
Nada que possa macular um organismo devidamente regenerado pela ‘purga’ de suas excrescências.
Caso dos viciados em jogatina, por exemplo. Como Bernard Madoff.
Ou os hipotecólatras.
Devidamente punidos com a perda da casa e, frequentemente, do emprego também.
Ademais das nações indolentes. Que se empanturraram do crédito incompatível com os seus fundamentos
Restituído agora em espécie, com o escalpo da velhice, a fuga dos jovens e o sacrifício do futuro de suas crianças.
É forçoso observar: se os mercados não fossem ‘racionais’, como asseguram os laureados pela academia sueca, como exercer a ferro e fogo a ‘purga’ em curso?
Como o Tea Party republicano poderia evocar ‘equilíbrio’ orçamentário, depois de uma dívida de US$ 18,6 trilhões, robustecida justamente no resgate dos ditos mercados... racionais?
Como Marina Silva pontificaria sua adesão religiosa ao ‘tripé’ e ao Banco Central ‘independente’?
O espinho na garganta da teoria é a danada da realidade.
Por exemplo. Entre 1959 e 2003, segundo o FMI, a solidez ‘racional’ dos mercados financeiros foi abalada por nada menos que 52 episódios de desmoronamentos prolongados de preços de ações.
Debacles recorrentes, extremas e espalhadas por duas dezenas de economias.
Como corroborar a ideia de uma racionalidade imanente a ordenar os preços de uma derrocada regular?
Os dados e a experiência vivida sugerem que se que se trata de um estelionato classificar as bolhas especulativas como aberrações externas às finanças desreguladas.
Elas são intrínsecas à volatilidade financeira e não há nisso juízo moral.
Trata-se de uma característica estrutural.
Estamos falando de um ambiente especulativo imantado de incerteza porque desprovido de qualquer fundamento real de valor que balize seus preços.
Exceto a luta de todos contra todos para maximizar resultados.
A lógica autopropelida gerou 1929. E explica 2008.
A prevalecer a teoria premiada pela academia sueca, não terá sido a última vez.
Os impulsos se mantém intactos.
Um ciclo de fastígio do crédito alavanca as compras de ativos. O valor da papelama traça espirais ascendentes.
Quando o alvoroço especulativo reduz a demanda por títulos abusivos e provoca o aumento do custo financeiro, quem precisar de crédito para continuar jogando sofre um cavalo de pau.
O resto é sabido.
Chega a hora da ‘purga’ , aquela que vai higienizar a ‘racionalidade’ de suas aberrações pontuais.
A economia mundial vive há cinco anos sob esse regime de lacto purga.
O processo denominado ‘deflação de ativos’ invade as economias em desenvolvimento pelo canal dos preços das commotidies. E ajusta seu torniquete elevando os custos de captação de recursos para financiar o crescimento.
É nesse quadro que a ex-senadora Marina Silva vem expor a sua adesão ao superávit fiscal ‘cheio’.
Lépida e indiferente à complexidade das obrigações de um Estado democrático, de resistir à internalização da ‘purga’ que excreta emprego , direitos sociais e ameaça a própria democracia.
Há aparência de loucura nisso?
Mas é pura luta de classes. Travada na esfera onde os detentores da riqueza cobram em juros seu avocado direito sobre um pedaço do Brasil real.
E o fazem sem trégua. Sobretudo vitaminados pelo ciclo eleitoral.
Diariamente a fatura é atualizada. E o valor de cada fatia é confrontado com o de outras possibilidades . Mais suculentas, materializáveis no presente ou no futuro; aqui ou alhures.
Volatilidade e turbulência são inescapáveis ao processo.
É nesses piquetes mutantes que as manadas cegas pela incerteza, o medo e a usura se escoiceiam a postular mais juros, superávit fiscal e ‘câmbio livre’ .
De um lado, querem garantia de ração gorda.
De outro, a porteira aberta para o cassino global e o caminho desimpedido à fuga, em caso de combustão do pasto nativo.
O Nobel laureou quem enxerga nessa maçaroca alvoroçada a manifestação superior de uma racionalidade autorregulável.
O figurino, visivelmente, não dá conta de vestir o mundo e a luta pelo desenvolvimento nos dias que correm.
Há um trem cruzando o céu do Brasil nesse momento... tudo bem?
‘Chegará a bom termo’, responde o econeoliberalismo. "Basta que respeitemos as suas asas".
Carta Maior
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