Por CARLOS ÁGUEDO PAIVA*
Eu fui um duro crítico do PT durante 13 anos. Muito duro. Não perdi um único emprego por isso. Minhas críticas à Lava Jato e a Bolsonaro já me tiraram três empregos. Reinaldo de Azevedo em entrevista com o Presidente Lula.
Introdução
Eu sou um sujeito viciado em vícios. Nem gosto que me apresentem
novos, pois me apego com muita facilidade. Os tenho às pencas. Mas creio
que o meu vício maior é o da curiosidade. Minha curiosidade é meio sem
limite; para mim, o sentido da vida encontra-se em aprender sempre mais e
entender o máximo possível sobre o mundo. Leio e escrevo
compulsivamente, converso demais (até exaurir os amigos), e sempre que
me deparo com um tema instigante, busco ir o mais fundo possível na sua
compreensão.
Ora, os temas são infinitos e meu tempo é limitado. E tive que achar
atalhos para dar conta de atender minimamente minha curiosidade
compulsiva. E encontrei três atalhos extraordinariamente úteis e funcionais.
Em primeiro lugar, eu aboli a divisão entre “lugar para ler e estudar” e
“outros lugares”. Eu leio na fila do banco, no restaurante, na mesa de
bar, no ônibus, no avião, na sala de espera, no elevador e até
caminhando na rua (a gente só tropeça no início; depois, aprendemos a
manter um olho no livro e outro no caminho). O segundo atalho foram as
viagens. Tu podes ler 50 livros sobre a China. Se forem livros
efetivamente relevantes e minimamente complexos, isto te demandará dois
anos de trabalho. Mas se passares um único mês viajando pela China, conversando com as pessoas nas ruas, visitando as Universidades, lendo jornais (há muitos em inglês, don’t worry)
e livros que estão “bombando por lá” (há excelentes livrarias),
observando as estruturas urbanas, os padrões de interação entre as
pessoas, visitando os centros das principais cidades (sem esquecer das
periferias), dando a devida atenção às dinâmicas de trabalho, de
produção, de comércio e de oração (visitar templos é
básico!), tu vais voltar com um conhecimento maior do que tu alcançarias
lendo diversos livros no Brasil. Em geral, os livros te oferecem
leituras contraditórias sobre o país. Sem que tu saibas qual delas é a
mais confiável. Ou melhor: sem que tu contes com a base experiencial
para entender as determinações das divergências e tentar articular uma
síntese das oposições.
Mas, creio eu, o atalho mais importante para se chegar o mais
perto possível do impossível – Entender o mundo! – é o atalho que nos
foi ensinado por Apolo em Delfos: Conhece-te a ti mesmo! Por
quê? Porque os dois primeiros atalhos – ler e estudar em lugares
“inusuais” e viajar pelo mundo – só podem trazer conhecimento se
pudermos confiar na interpretação que fazemos dos textos lidos e dos
registros e interpretações que damos aos eventos observados em outros
mundos. … E como podemos nos asseverar de que estamos vendo “o que é” e
não o que “queremos ver?”. A resposta é complexa, claro. Mas ela conta
com um excelente ponto de partida: o que é que tu queres ver? Se souberes onde está o teu desejo, fica bem mais fácil de identificar se o que vês corresponde – ou não! – ao que tu queres ver. Se estiveres vendo o que não queres ver, há uma grande probabilidade de estares vendo (parte de) aquilo que é. Quando vês o que não queres ver, o princípio da realidade está se impondo sobre o princípio do prazer.
São inúmeros os “cortes epistemológicos” que vivi ao longo de quase
quatro décadas de psicanálise. Mas há um momento que tem tudo a ver com o
artigo de hoje. Eu vinha enfrentando (só para variar!) alguns problemas
no trabalho. Como de praxe, colegas, chefias e avaliadores dos meus
artigos tentavam me explicar que meus trabalhos não eram publicados
porque eu escrevia demais, não respeitava normas acadêmicas,
tergiversava, tratava de assuntos em excesso, usava de ironias e
metáforas, enfim, não tinha uma redação científica. Como meus textos
eram impublicáveis, minha produção era baixa. E como minha produção era
baixa, eu era um péssimo funcionário, com produtividade muito abaixo da
“média”. E que eu tinha que me esforçar mais para entrar na “média”.
Meu astral não andava nada bom. E este era o tema das sessões. Lá pelas tantas o analista me perguntou: O que tu sentes por estes arautos da “média”? E eu respondi: Pena! Ele redarguiu: Não sentes raiva? E eu retornei: Eu não sinto raiva de ninguém. Muito menos de gente pequena! E o analista me saiu com essa: Para quem faz análise há tantos anos tu te conheces muito pouco, não te parece?
Gol do Bangu. A verdade é que eu era um poço de raiva. E não conseguia reconhecer! Chorei.
Muito. De tristeza e de alegria. Na verdade, “de epifania”. Me
(re)descobri pequeno, passional, comum. Me (re)descobri alguém da
“média”. Me (re)descobri humano, demasiado humano. Nas sessões
seguintes, o tema passou a ser minha contribuição particular para o
conflito no ambiente de trabalho. E descobri que minha tentativa de
colocar uma máscara de “pena” na minha raiva aprofundava a distância e a
incompreensão recíproca. Mudei. Pelo menos, tentei mudar. Adiantou de
algo? Um pouco. Mas muito pouco. E essa foi outra grande epifania: o
fato de nos descobrirmos neuróticos e corresponsáveis pelos conflitos
torna o fardo da vida um pouco mais leve. Mas – tal como nas relações
afetivas – as relações conflitivas envolvem pelo menos duas pessoas. E a
neurose dos outros são dos outros. Não temos o poder de mudá-las.
A Globo precisa urgentemente de um divã!
Na segunda-feira, dia 9 de dezembro de 2024, Lula deu entrada no
Hospital Sírio Libanês (HSL) para uma cirurgia de urgência com vistas a
retirar uma hemorragia intracraniana que havia se formado em função da
queda que sofreu em outubro desse ano. Seis dias depois, no dia 15 de
dezembro, Lula teve alta e participou da entrevista concedida pela
equipe médica com vistas a agradecer àqueles que o haviam atendido e
àqueles que haviam orado por ele. Na sequência, ainda no HSL, Lula concedeu uma entrevista exclusiva para a repórter Sônia Bridi,
da Rede Globo de Televisão, que viria a ser veiculada no Fantástico,
programa de variedades da emissora no domingo. O que, nem Lula, nem
ninguém poderia esperar era que, na segunda metade da entrevista (minuto
13: 50), a Globo fizesse duas inserções criticando e negando afirmações do Presidente.
Exatamente quando Lula manifestava seu desejo de que todos os acusados
de intentarem um golpe contra a sua pessoa e que, de acordo com o
inquérito da Polícia Federal, envolvia o planejamento de seu
assassinato, contassem com a presunção de inocência com a qual ele não
havia contado. A equipe de reportagem do Fantástico faz, então uma pausa
na entrevista, e busca demonstrar que Lula contou com todos os direitos
e garantias constitucionais, e que, em momento algum, seu direito de
defesa foi contestado.
Vou me dar ao direito de cometer mais um dos tantos
sincericídios que tanto me caracterizam. Eu não sei o que mais me
assusta nessa história. Se é a psicopatia do veículo e de sua equipe de
jornalismo, ou a psicopatia do público que, como regra geral, tomou o intermezzo correcional – em que se informava que o Presidente era um MENTIROSO – como algo normal. Do
meu ponto de vista, isso é tão assustador que sequer podemos ir ao
ponto central com muita pressa. São muitas as camadas da loucura. O
melhor é começar pelas beiradas; tal como recomendava o Engenheiro
Leonel: mingau quente demais não se ataca pelo centro, pois queima a
língua.
Comecemos com um exercício de distanciamento. Vamos tomar uma outra
entrevista, de um outro veículo, com uma pessoa pública que cometeu
algumas “malandragens” em sua história de vida para termos uma
referência de “postura respeitosa”. No dia 12 de dezembro de 2024, a Carta Capital entrevistou o Ministro Gilmar
Mendes do Supremo Tribunal Federal (STF). Havia dois temas centrais: as
relações algo conflituosas dos três poderes da República e a Lava-Jato.
Mendes fez uma série de críticas aos abusos cometidos pela falecida
“República de Curitiba”, à politização do processo penal e à
transformação do mesmo em espetáculo midiático explorado com gosto e
gozo pela grande imprensa. E fez a defesa do STF como garantidor das
instituições e agente de recuperação da isenção do Judiciário. Mais: com
sua proverbial e reconhecida imodéstia, Mendes afirmou ter sido um dos
primeiros (senão o primeiro) a perceber que “havia algo de errado” nos
procedimentos de Curitiba. E acrescentou que sua sensibilidade para
desvios nos devidos processos jurídicos lhe angariou o apelido de
“Profeta”.
Logo após a entrevista de Mendes à Carta Capital, vieram à luz
diversos artigos com críticas à ação do STF durante o período de
vigência da Lava-Jato. Veja-se, por exemplo, o excelente artigo do amigo
Benedito Tadeu César publicado na RED. O que unifica todas as críticas é a sinalização da irretorquível conivência
do STF com os procedimentos da “Quadrilha de Curitiba”, desde a
instauração da Lava-Jato, no primeiro mandato de Dilma, até o final do
primeiro ano do mandato de Bolsonaro, quando Lula é solto.
Desde logo, o STF ignorou o fato do Fórum de Curitiba não ser a
alçada pertinente para o julgamento das duas maiores improbidades de
Lula: haver visitado um apartamento no Guarujá e se hospedar com alguma
frequência no sítio de um amigo em Atibaia.
Para piorar, o STF – mais exatamente, o Ministro Gilmar Mendes –
ignorou a cautelar interposta pela Advocacia Geral da União com vistas a
acelerar o julgamento do “direito” da Presidente Dilma a indicar o
ex-Presidente Lula como Chefe da Casa Civil em seu segundo mandato, após
Eduardo Cunha haver dado autorização para o início do processo de impeachment
em 2016. Gilmar Mendes pediu vistas e “sentou-se” em cima do processo,
como que aguardando o escândalo adequado para negar o direito de Dilma
indicar quem bem entendesse para o seu Ministério. E o escândalo
aconteceu. Moro gravou uma conversa da Presidenta com o ex-Presidente
após o término do período autorizado para a realização de grampos e a
divulgou em rede nacional. Não era preciso ser “Profeta” de nada para
entender que essa decisão era politicamente orientada, ilegal e
inconstitucional. Mas, ao invés de punir Moro e de retirar de Curitiba –
que nunca foi o Fórum adequado de julgamento do Presidente Lula por
suas visitas a Guarujá e a Atibaia – o STF aplaudiu a farsa e impediu
Lula de assumir a Casa Civil.
Como se isso não bastasse, o STF fez “vista grossa” para a
inconstitucionalidade da “Lei da Ficha Limpa”, votada no Congresso com
vistas a “combater a corrupção (do PT)”. Só realizou o devido julgamento
da constitucionalidade da referida lei após o término das eleições de
2018, com a vitória da “vítima do atentado de Juiz de Fora” (sic, argh,
cof, bah!).
O STF também pretendeu desconhecer algo que todos os jurisconsultos
do país dos Tupis sabiam perfeitamente: que a “República de Curitiba”
tinha alta ascendência sobre os impolutos Desembargadores do TRF-4 (a
segunda instância pertinente para julgar Lula) em função da filmagem de
uma festinha íntima (que ficou conhecida como a “festa da cueca”) onde
alguns dos nossos mais aristocráticos e circunspectos tribunos mostravam
todos os seus atributos. A imprensa sabia de algo à época? … Acredito
que sim; pois os nudes circulavam amplamente nas redes sociais
jurisconsúlticas. Mas, após as denúncias de Tony Garcia em 2023, ninguém mais pode pretender desconhecimento do fato. Anyway,
a mim sempre pareceu muito estranho que, já em 2018, NINGUÉM das
instâncias superiores do Judiciário (ou da imprensa) questionasse a
extraordinária diligência dos desembargadores do TRF-4, que colocaram o
processo de Lula à frente de todos os demais, conseguissem julgá-lo em
tempo ínfimo e ampliassem a sentença de Moro por unanimidade. Garantindo
o período necessário para que, apesar de réu primário, Lula não pudesse
cumprir a pena em liberdade no ano das eleições para a Presidência.
SANTA COINCIDÊNCIA, BATMAN, BATGIRL E BATDOG!
Por fim, o STF ignorou a decisão da Corte de Direitos Humanos da ONU –
onde Lula foi representado pelo Conselheiro da Rainha Elisabeth II,
Geoffrey Robertson, que: 1) considerou o julgamento de Lula marcado por
parcialidades e falta de isenção dos juízes da primeira e da segunda
instância; 2) determinava que fosse garantida a liberdade de Lula até o
trânsito em julgado; e 3) que ele tivesse seus direitos políticos
preservados, incluindo-se o direito de ser candidato à Presidente no
pleito de 2018. O STF não se contentou em ignorar as resoluções da Corte
da ONU (a despeito do Brasil, por opção, haver reconhecido a soberania
do órgão). Influenciado por postagens vindas do alto oficialato do
Exército em defesa da luta contra a “corrupção”, o STF manteve a prisão
de Lula e foi mais longe: o impediu de dar entrevistas no ano eleitoral.
Nem é preciso esclarecer que os dois casos – entrevista de Gilmar
Mendes e entrevista do Presidente Lula no HSL – estão intimamente
associadas. Mas o que importa resgatar aqui e agora é a alegação feita
por Mendes. A alegação de que, tão logo o STF tomou consciência
do fato de que a Lava-Jato extrapolava os limites do livre direito de
defesa, foram impostos freios aos desatinos da dobradinha Sergio Moro –
Deltan Dalagnol. Isso é uma mentira grotesca e aviltante. …. Não
obstante, a Carta Capital não abriu um intermezzo na entrevista feita
com Gilmar Mendes para “corrigir” as informações do Ministro. Por quê?
Porque isso seria ainda mais grotesco e aviltante.
Quando se convida alguém para dar uma entrevista, está pressuposto o
interesse naquilo que o entrevistado tem a dizer. Não importa se
concordamos inteiramente com suas informações. Não importa se ele traz
elementos que vão na contramão do que pensamos. Ou, antes: importa.
Pois esse “outro lado” é exatamente o que se busca: a informação que
não temos, a leitura que não temos. … É absolutamente cabível e
pertinente fazer, a posteriori, uma análise crítica das informações recebidas. Mas esse é um outro
momento. Quando interferimos e alteramos a dinâmica do diálogo,
introduzindo no meio do mesmo, uma leitura distinta, que o agente
dialogante não pode contestar, estamos impondo uma relação discursiva
desigual, estamos traindo o princípio do direito de resposta.
Vale fazer uma pequena observação lateral. Há alguns anos, a Carta
Capital fez uma matéria sobre os negócios e vínculos empresariais do Ministro Gilmar Mendes. O Ministro entrou com um processo por calúnia e difamação.
Perdeu nas instâncias iniciais. Mas venceu no Supremo Tribunal de
Justiça; justamente aquele onde – de acordo com a revista – Mendes teria
maior influência, em função de suas atividades empresariais no
Instituto Brasileiro de Direito Público, cujos cursos e palestras contam
com a colaboração (muito bem paga) da “nata” dos jurisconsultos tupis.
Na entrevista concedida por Mendes ao site da revista, é fácil perceber
uma certa “tensão”. O Ministro evita olhar para a câmera, gagueja,
tergiversa, mede as palavras. Após tantos anos de análise, ouso
pretender que o seu “corpo fala”. E o que ele diz é: – Isso, por acaso, é uma armadilha, uma pegadinha?
Não. Não era. Mino Carta é um gentleman, é um lord, seu nome é elegância. Mino Carta tem princípios.
A Rede Globo entrevistava o Presidente da República. Ele estava
saindo do hospital, após uma cirurgia extremamente delicada. Os médicos
recomendaram descanso. Pediram que a entrevista fosse concedida noutro
dia. Lula achou por bem mostrar ao Brasil que ele estava bem de saúde e
que a cirurgia havia sido um sucesso. E se dispôs a realizar este
trabalho. Ao contrário de Gilmar, Lula olhou para a entrevistadora e
para a câmera todo o tempo. Falou de forma tranquila, segura, do jeito
simples que lhe caracteriza. E manifestou seu desejo de que o Judiciário
tratasse os acusados da tentativa de golpe com mais isenção e respeito
do que ele mesmo fora tratado. E a Rede Globo resolveu cortar a
entrevista ao meio para dizer que o Presidente mentia. Que ele fora
tratado com isenção e de acordo com os princípios legais vigentes ao
longo do período.
Mesmo que, após a prisão de Lula, mesmo que antes de sua eleição, não
tivesse ocorrido a VAZA-JATO, mesmo que não tivessem vindo a público as
denúncias de Tacla Duran ou de Tony Garcia, a intervenção da Globo, no
meio da reprodução da entrevista, produzida ex-post, sem direito de
resposta do entrevistado, já seria nojenta, calhorda, doentia. Mas tudo
isso já rolou. E todos os jornalistas conhecem as resoluções do STF
sobre a parcialidade de Moro, sabem que ele foi Ministro de Bolsonaro e
cabo eleitoral do capitão em 2018 e 2022. Provavelmente, já viram os
nudes da festa da cueca de Curitiba. Com certeza leram – senão todas,
pelo menos parte de – as trocas de mensagem dos procuradores com o juiz
Sergio Moro. Sabem que houve combinação. Conhecem a história das
“prisões preventivas” de Marcelo Odebrecht e Leo Pinheiro. Sabem que
suas “delações premiadas” foram conquistadas a preço de Lula. Mas
insistem em dizer que o Presidente – que foi convidado para uma
entrevista – mente. Em horário nobre. Para toda a família brasileira
reunida. Se isso não é doença, se isso não é (mais que neurose)
psicopatia, eu não sei o que seja.
Um país doente
Muito se tem falado sobre a crise do ocidente. Ela é evidente. A começar pelos indicadores econômicos. De acordo com o portal de estatísticas do FMI,
a China já é a maior economia do mundo quando seu PIB é avaliado por
PPP (paridade do poder de compra; por oposição ao câmbio nominal). Os
EUA estão em segundo lugar, seguidos por Índia (em terceiro), Rússia (em
quarto), Japão (quinto), Alemanha (sexto), Brasil (sétimo), Indonésia
(oitavo), França (nono) e Reino-Unido (décimo). Em suma: os Brics são
muito maiores do que o G-7. E isso incomoda. Muito. Envelhecer e perder a
força e a capacidade de se impor sobre os outros não é muito bom.
Especialmente quando (narcísica e neuroticamente) acreditávamos que
nossa força, potência e poder era um desdobramento de nossas virtudes e
dos defeitos alheios. Quando um outro valor mais alto se alevanta, ao
contrário do que pretende Camões, o “normal-neurótico” não é nos
calarmos. Mas pretender que os novos líderes, os novos hegêmonas, os
jovens titãs, estão mancomunados com o diabo. E lá vai satanização de
Putin, Xi, Modi, Lula, dentre outros.
Não se trata de pretender que o quarteto em si e por si dos BRICS
sejam santos ou anjos. Trata-se apenas de reconhecer que anjos e santos –
com a graça dos bons deuses, das boas deusas e d@s excelent@s deus@s –
estão pra lá de escassos no mundo atual. Que o digam Trump, Bolsonaro,
Von der Leyen, Zelensky, Starmer, Biden, Netanyahu e seus inúmeros
amigos. Todos eles adeptos da tese de que “uma guerrinha não dói”.
O problema que nos interessa aqui, contudo, não diz respeito
diretamente à dinâmica econômica dos países emergentes e decadentes.
Mas, isto sim, à forma como a intelligentsia em geral – e a
mídia, em particular – analisa, interpreta e difunde uma certa leitura
deste processo de revolução na hierarquia das nações. Como regra geral,
os países do ocidente em processo de decadência acusam os países
emergentes de “práticas econômicas perversas e desumanas”. Toda a mídia
europeia e norte-americana produz catilinárias contra os “oligarcas
russos”, a superexploração do trabalho na China, a estrutura de castas
da Índia, o machismo e a subordinação das mulheres nos países
muçulmanos, o terrorismo islâmico, a ausência de liberdade de expressão
nas novas potências econômicas internacionais. Escorre sangue e lágrima
das páginas dos jornais ocidentais, chocados com a barbárie dos hunos,
mongóis, árabes e turcos que assediam o bom, probo, iluminista e cristão
ocidente.
A reação da periferia é clara. E busca demonstrar – o que, aliás, não
é nada difícil – que a mídia ocidental é uma grande farsa. A matéria do
New York Times sobre os estupros em massa das mulheres no 7 de outubro é
uma vergonha. O tratamento dado pelos jornais ocidentais à Guerra da
Ucrânia só não é de chorar, porque é ridículo. A seletividade com que é
tratada a condição feminina no Irã (xiita e terrorista, aliado do Hamas e
do Hezbollah) e na Arábia Saudita (aliada dos EUA e complacente com
Israel) é de gargalhar. E a imprensa periférica denuncia e se revolta. E
conquista, cada vez mais, corações e mentes no Ocidente. A ponto de
preocupar – e muito – veículos como a BBC.
Menos no Brasil. Em nossa terra, não há só palmeiras e sabiás. Somos a
terra da jabuticaba. Onde a imprensa incensa o entreguismo, a
subserviência e a derrota e desfaz de toda e qualquer conquista. É NÓIS!
Não me perguntem o santo, pliss, não me lembro e não vou pesquisar.
Conto apenas o milagre. De uma certa feita, um cronista e jornalista
brasileiro resolveu investigar por que um país com uma literatura tão
vasta e tão expressiva – de Machado de Assis a Guimarães Rosa, passando
por Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Ferreira Gullar, Manuel Bandeira,
Clarisse Lispector, Carlos Drumond de Andrade, Luiz Fernando Carvalho,
Chico Buarque (lembrem-se de Bob Dylan!)) dentre outros – nunca
conquistou um Nobel em Literatura. A resposta obtida a partir de
entrevistas a um grande número de literatos que participaram da eleição
dos nobelizados em distintos anos é muito esclarecedora: porque
cada vez que emerge um nome brasileiro para a nominata, emergem duzentos
críticos brasileiros que se contrapõem à premiação “demonstrando” que o
indicado não é merecedor de prêmio algum. É NÓIS! A gente não semu
movidu apenas a carnaval e cordialidade. A gente também semu movidu por
ódio e inveja!
Não se trata de um ódio universal. Não. De forma alguma. É óbvio que
Fernando Pessoa, Honoré du Balzac, James Joyce, Marcel Proust e Gore
Vidal são magníficos. Afinal, são estrangeiros. O ódio e a inveja são
concentrados e direcionados ao conterrâneo, ao vizinho. Especialmente se
ele vem de baixo. Se ele invadiu a praia errada. Lula invadiu a praia
errada. Não importa se ele é incensado mundo afora pelos maiores líderes
políticos e estadistas do planeta. Não importa se Biden e Putin, Xi e
Von der Leyen, Sholz e Macron o têm em grande conta. Para a intelligentsia nacional,
ele saiu de Garanhuns. Mas Garanhuns nunca saiu dele. Ele não tem o
refinamento e o berço necessário para ser presidente. De forma que, não
interessa se ele é o Presidente em exercício, não interessa se ele acaba
de sair de uma cirurgia, não interessa se a economia brasileira cresceu
3,3% em 2023 e deve crescer 3,5% em 2024, não interessa se a taxa de
desemprego atual é a mais baixa da série histórica com informações
comparáveis. O que importa é que ele só cursou até a quinta série
primária, não tem um dos dedos da mão, comete erros de concordância, foi
operário e chegou aonde não deveria ter chegado e onde não deveria
estar. E uma pessoa dessa “qualidade” tem que ser monitorada em tudo o
que diz e fala. A Globo, ao fazer a intervenção que fez em sua fala,
durante sua entrevista, não faz mais do que proteger a boa formação e
informação popular. O que ele diz tem que ser avaliado, o tempo todo, e
criticado, o tempo todo, por aqueles que sabem, os que nasceram no lugar
certo: na Casa Grande.
Há uma velha piada. Com certeza, todos conhecem. Mas me dou ao
direito de contá-la novamente. Reza a lenda que, quando Deus fez o
mundo, ele distribui as benesses e intempéries igualmente. Onde havia
abundância de recursos minerais, ele também criava desertos, tundras,
geleiras, escarpas e vulcões. Onde havia abundância de alimentos, ele
colocava feras, víboras, animais peçonhentos. Onde havia abundância de
recursos hídricos, ele colocava terremotos, maremotos e tsunamis. Menos
num local: aquele que viria a ser o Brasil. Aqui não haveria terremotos
ou vulcões. Não haveria feras terríveis. As terras seriam férteis. Não
haveria desertos, geleiras, tsunamis, maremotos ou vulcões. Preocupados
com a desigualdade na distribuição de benesses e recursos, os anjos
perguntaram: Mas porque tantos privilégios para um lugar só. E Deus respondeu: Quando vocês virem a gentinha que eu vou colocar lá, vocês vão entender. Pois é. Parece que o criador cumpriu a ameaça. Essa é a nossa sina.
*Carlos Águedo Paiva é Economista, Doutor em Economia e Diretor da Paradoxo Consultoria Econômica.
Leia na FONTE: https://red.org.br/noticia/espelho-espelho-meu-a-rede-globo-e-mais-doente-do-que-eu/
Imagem: Deviant Art https://www.deviantart.com/lizardladyfla/art/Mirror-Image-Of-A-Troubled-Soul-1121282995