quinta-feira, 26 de junho de 2008

Cidadania, favela e milícia: as lições de Rio das Pedras


Marcelo Burgos

Entre 2000 e 2002, realizamos um amplo levantamento quantitativo e qualitativo sobre a favela de Rio das Pedras, que se destacava naquela época como um caso singular de grande favela – grande em território e em população (tinha cerca de 40 mil moradores) – sem tráfico. Qual era o segredo de RDP, e em que medida seu modelo podia ser copiado, eram indagações recorrentes naquele momento. Não raro, o caso de RDP era apresentado como uma espécie de caso feliz de organização comunitária, que tinha permitido mantê-la a salvo das gangues de traficantes.

Naquele momento, tínhamos que lidar com duas abordagens polares e superficiais: de um lado, aquela apresentada de forma naturalizada por lideranças da favela, parte dos moradores e mesmo por uma opinião corrente na cidade, de que a razão principal para a singularidade de RDP era a de que se tratava de uma favela majoritariamente nordestina (de fato, 60% de sua população tinha nascido em estados do Nordeste, e outros 30% eram filhos de primeira geração de casais nordestinos), e que a cultura nordestina seria avessa ao tipo de subordinação arbitrária e violenta promovida pelas gangues de traficantes; no outro pólo, especialmente na universidade, a experiência de RDP era vista com muita desconfiança, encarada como uma nova versão dos grupos de extermínio, conhecidos como “polícia mineira”, e que tinham sido organizados em vários pontos da região metropolitana do Rio de Janeiro entre os anos de 1960 e 70, em geral para atender interesses de comerciantes e empresários. Segundo essa abordagem, assim como na “polícia mineira”, a ‘segurança’ em RDP também seria feita por policiais, que atuavam a serviço de comerciantes e empresários locais.

Na pesquisa, mais tarde publicada no livro Utopia da Comunidade: Rio das Pedras, uma favela carioca (Editora Puc-Rio/Loyola, 2002), procuramos desvendar as razões da singularidade daquele microsistema, sustentando que estávamos diante de uma nova forma de organização local, que articulava de forma original a vida associativa a um aparato coercitivo, em um arranjo que, ao mesmo tempo em que protegia os moradores da favela da agonia da submissão ao poderio do tráfico, impunha um regime potencialmente totalitário na gestão do território.

Pouco depois da publicação do referido livro, observou-se que o modelo de RDP se convertera em uma forma social, que seria copiada e difundida em outros lugares, logo sendo descoberta e rotulada pela grande imprensa como ´milícia’.

Com base em uma breve releitura dos principais pontos encontrados naquela pesquisa, a contribuição que pretendo oferecer neste artigo é a de utilizar o caso de RDP para refletir sobre as condições ecológicas que fomentaram o desenvolvimento da milícia como forma social, demonstrando o quanto ela surge como expressão da profunda segregação urbana a que são submetidas as favelas da cidade. Da perspectiva proposta neste artigo, portanto, a questão da milícia vai muito além do problema da corrupção da polícia, como freqüentemente faz crer a abordagem formulada pela grande mídia, com o que reitera a estéril idéia da polarização entre a banda podre e a banda boa da polícia. Para tanto, importa reconhecer que a discussão sobre a milícia transcende os limites da questão da segurança pública, aparecendo antes como um item fundamental para uma reflexão sobre a ainda frágil democratização do acesso à cidade.

É nesse sentido que a compreensão do caso de RDP pode contribuir para fazer do debate sobre as milícias um bom pretexto para uma discussão mais ampla envolvendo o tipo de relação com a favela que a cidade construiu e tem reproduzido sistematicamente, pois a forma social adquirida pela milícia em RDP jamais teria se tornado um paradigma perseguido por tantas favelas não fosse a crônica incapacidade da sociedade civil e do Estado da metrópole do Rio de Janeiro para elaborar uma política de segurança que inclua a população de suas favelas no mundo dos direitos. Afinal, foi essa percepção de impotência em face a dinâmica perversa dos conflitos entre as próprias facções de traficantes e entre traficantes e policiais, com todo o seu rastro de sangue, que animou e acabou tornando legítimo e desejável para boa parte dos moradores de RDP – não raro invejados por moradores de outras favelas – o arranjo institucional nela construído. E neste arranjo prevalecia uma espécie de pacto hobbesiano, no qual a segurança e a integridade física são definidos como o bem supremo, em nome do qual se aliena todos os demais direitos e prerrogativas em favor do Leviatã local, encarnado na associação de moradores.

Apesar da “solução RDP” ser arbitrária e excludente, era comum ouvir de seus moradores frases como essa: “É Rio das Pedras, não tem outro lugar igual a este aqui para você morar em paz, soltar seu filho...”; “Aqui você pode criar seu filho, pode soltar na rua, não tem problema de droga, tráfico, você não precisa ficar preocupado, não tem ladrão, não tem pessoa que invade”. E o mercado imobiliário das favelas da cidade não deixava dúvidas: RDP era uma favela muito valorizada, ‘vendida’ por seus empreendedores como uma espécie de cidadela dos pobres.

Para nós pesquisadores, o custo cívico dessa solução era evidente: morar em RDP significava abrir mão do bem mais supremo de um cidadão, que é a sua liberdade civil e política. Mas, em uma metrópole na qual a sinalização para o mundo popular é a de que o acesso à cidade e, portanto, ao mundo dos direitos, é muito restrito, o individualismo – de tipo de negativo – transforma-se em tônica. E no caso da vida em favelas, onde o tráfico e a polícia vêm historicamente se confundindo no trabalho de humilhação de sua população - distinguindo-se apenas pelas cores, como revela Marcos Alvito em seu achado etnográfico, descrito em As Cores de Acari (FGV, 2001) – não é de admirar que a pauta da cidadania se veja ainda mais amesquinhada, freqüentemente reduzida à afirmação do mais primário dos direitos que é o direito à integridade física. Assim é que nossa pesquisa levava à conclusão de que a solução hobbesiana de RDP apresentava-se como uma resposta meramente adaptativa a uma cidade que relegava seus moradores pobres a um mundo sem regulação estatal e sem ordem pública, a começar pelo acesso ao solo urbano, à habitação e ao transporte local, estruturados em mercados, cujo arbítrio somente encontra limite na lei do mais forte vigente nos territórios.

Para compreender o modelo de RDP é preciso considerar o processo de construção do território da favela, comandado com mão de ferro pela associação de moradores, com o apoio explícito do poder público. De fato, RDP não teria o tamanho que possui hoje, não fosse o poder público ter desapropriado em favor da associação local – no final dos anos de 1980 - uma enorme área para fins de habitação. Além disso, o poder público também contribuiria para aterrar e consolidar parte da área da favela antes alagadiça, aliando-se à associação local na construção da favela. O que nos levou a afirmar que RDP seria um exemplo típico de uma favela planejada, fruto de uma política habitacional.

Mas, além de contribuir para a formação da favela, o poder público também permitiu que um grupo de policiais – composto de moradores e amigos - se afirmasse como xerifes do território, deixando sob sua autoridade o controle social local. Neste caso, o maior ou menor respeito ao limite da lei ficava entregue ao estilo dos xerifes e à sua apreciação acerca de cada situação.

A articulação entre esse tipo de controle social e o trabalho político e administrativo da associação de moradores local, permitiu um tipo de controle sobre a vida da favela que talvez não encontre paralelo no Rio de Janeiro. O poder militar ‘autorizado’ pelo Estado empresta à associação uma impressionante capacidade de enforcement sobre a vida local; em contrapartida, a associação – fortalecida pela forma como o poder público lhe delegou a gestão do território – empresta ao poder militar uma legitimidade que ele dificilmente encontraria sem ela. Cria-se uma dinâmica institucional até certo ponto sofisticada, na qual uma força regula e impõe limites à outra, acabando por conferir ao ‘rito jurídico’ local mais transparência e estabilidade do que o encontrado nas favelas dominadas pelo tráfico. Como nos disse um morador à época da pesquisa: “aqui em Rio das Pedras, só quem faz besteira some”.

A partir desse arranjo institucional, organiza-se uma espécie de política tributária e social, que passa pelo controle sobre o pujante comércio de varejo da favela, sobre seu aquecido mercado imobiliário, e sobre serviços como o do transporte através de vans, de clínicas e creches, de casas de show, etc. E tudo isso converge no sentido de potencializar o papel da associação de moradores: além de se posicionar como única porta-voz de cerca de 40 mil moradores, constitui-se como verdadeira autoridade local, aliando seu papel de responsável pelo controle social ao de prestadora de diversos serviços assistenciais, cartoriais, jurídicos e urbanísticos. Uma clara evidência do êxito desse modelo de RDP seria a eleição para vereador, em 2004 – como o 5º mais bem votado do Rio de Janeiro –, do presidente de sua associação de moradores.

Mas esse arranjo institucional, que permitiu à associação de moradores fazer as vezes de um poder público, inclusive internalizando o monopólio sobre a violência no território, não teria sido possível sem a ação/omissão calculada e intencional do Estado, em nível estadual e municipal. Levando ao limite o argumento, pode-se afirmar que foi o Estado que entregou a população de RDP à autoridade e ao arbítrio da associação de moradores, delegando-lhe poderes extraordinários que somente se pode compreender quando se considera o padrão de relacionamento assimétrico que a cidade estabelece com a favela.

Conectada ao boom imobiliário da Barra da Tijuca e de Jacarepaguá - na favela mora boa parte dos operários da construção civil, e do comércio e serviços desses bairros -, o caso de RDP é, na verdade, um exemplo bem sucedido do eficiente mecanismo de controle social e de pacificação política de uma população que, de outro modo, logo descobriria que a cidade é antes de mais nada um lugar de luta por direitos. Nesse sentido, mais do que proteger a população do tráfico, a milícia protege a cidade da favela. Atua como grupo pára-estatal para realizar uma ação que o Estado não pode exercer abertamente, a não ser onde existe o tráfico para justificar sua ação ostensiva através da polícia.

A alternativa a esse caminho bizarro de preservação das fronteiras da cidade passaria necessariamente pela reorganização política da cidade, a partir de uma participação ampliada dos moradores das favelas no seu destino. Como sustentei em artigo publicado em 2005 (Dados, vol.48, No 1), essa agenda reformista passaria pela abertura de novos espaços de debate, de novos foruns comunicando os moradores das favelas entre si, e deles com os demais habitantes da cidade.

A favor dessa agenda política conspira a própria história de cidades que, como o Rio de Janeiro, não exauriram completamente suas fontes de solidariedade. Nelas ainda reside, se bem que em repouso, um capital social acumulado em suas associações profissionais e de moradores, em suas escolas e universidades, em suas igrejas e associações religiosas, e em suas instituições de cultura, esporte e lazer, como os clubes sociais e as escolas de samba, e que se renova em sua capacidade de mediação com o mundo popular através dos jovens universitários e de intelectuais ligados ao terceiro setor. Desse capital social se poderá extrair a energia necessária para o desenvolvimento de uma nova solidariedade, capaz de sustentar uma cidade de cidadãos, onde a milícia e o tráfico se vejam constrangidos por um ambiente hostil ao arbítrio e a práticas a margem do Direito.


Texto produzido pela parceria Comunidade Segura e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (www.comunidadesegura.org)

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