Por Pedro Dória, para canalmeio.com.br.
O discurso poderia ser de um nazista contra judeus — mas quem o faz
em nada parece com um nazista. O monge Wiseitta Biwuntha, mais conhecido
por Wirarthu, tem os olhos amendoados, a pele corada tão comum no
Sudeste Asiático e a cabeça completamente raspada. Sempre que está em
público, veste a roupa típica dos budistas teravada — dhonka e shemdap,
que juntos parecem um manto só dum vermelho escuro, quase vinho. Pela
aparência, não destoaria se estivesse ao lado o Dalai Lama. Mas não pelo
discurso. “Se você comprar de uma loja de muçulmano”, Wirarthu afirma,
“o dinheiro não para ali. Este dinheiro, ao fim, será gasto para
destruir nossa raça a religião. Esse dinheiro será usado para atrair
mulheres budistas e força-las a se converter ao Islã e, quando os
muçulmanos tiverem população maior, vão nos engolir, tomar o poder em
nosso país e transformá-lo numa nação demoníaca islâmica.” Em Myanmar,
mais de 90% da população se identifica como budista. Hoje aos 53, o
monge é o rosto mais conhecido do Movimento 969,
que defende que budistas devem se casar com budistas, comprar em
negócios budistas e trabalhar pela expulsão dos muçulmanos do país.
Wirarthu é um dos mais ávidos defensores da limpeza étnica em
Myanmar. É, também, um importante aliado político dos militares
nacionalistas.
O monge Wirarthu não está mais no Facebook. Foi expulso em 2018, após
o genocídio da minoria rohingya no ano anterior. Mas, até lá, a rede
foi a principal plataforma para seu discurso de ódio étnico. E não houve
nada de acidental. Em Myanmar, o Facebook foi propositalmente utilizado
como ferramenta para construção de um ambiente político instável que
levasse à violência. O surgimento da internet do país, um fenômeno
recente, coincidiu com a radicalização seguida de colapso da democracia,
no início deste ano.
Até 2011, Myanmar era uma ditadura militar, um dos regimes mais
fechados do mundo, que tinha como principal rosto Aung San Suu Kyi, a
política que venceu o Nobel da Paz, em 1991. Suu Kyi foi libertada no
momento em que o regime começou a abrir. Embora não tenha sido permitido
a ela concorrer às eleições no primeiro pleito, seu partido venceu 43
das 45 cadeiras do Parlamento e iniciou uma lenta liberalização do país.
Um dos marcos da democratização foi acesso à internet.
O preço de um cartão SIM para smartphones despencou, em 2012, de
milhares de dólares para centenas. Continuava muito caro, mas tornou-se
acessível para uma crosta da classe média alta. Em 2013 o monopólio
estatal sobre as telecomunicações caiu e duas operadoras estrangeiras
entraram — uma catari, a outra norueguesa. Em 2014, o SIM já custava um
dólar, as lojas se encheram de smartphones chineses baratos e o uso de
internet, principalmente em plataformas móveis, explodiu.
Como criar um ambiente de desinformação
A cultura digital que se desenvolveu no país a partir dali foi uma
centrada no Facebook — a adoção da rede social no país foi a mais
acelerada em qualquer nação já registrada pela empresa. Quase
instantaneamente, no arco de um ano, mais da metade da população abriu
uma conta na plataforma. O fenômeno não passou batido pelo monge
Wirarthu. Muito menos pelos militares.
Antes do golpe militar de fevereiro deste ano, Myanmar nunca chegou a
ser uma democracia plena. Os generais mantiveram, por toda década de
2010, o poder isolado de reformar a Constituição que havia sido
promulgada na ditadura anterior. E a Carta determinava que o poder civil
não poderia intervir nas Forças Armadas, que atuavam com orçamento
próprio e plena liberdade.
Em 2017, dois anos após a ampla adoção da internet no país, o Exército já tinha um setor com 700 militares
responsáveis por uma extensa campanha de desinformação no Face.
Controlavam milhares de contas e páginas na rede, dentre elas as de
celebridades, pop stars e até a popular Miss Myanmar, Shwe Eain Si,
conhecida como SES. A população buscava seus ídolos sem saber que os
influenciadores trabalhavam para o Exército, produzindo peças
publicitárias de nacionalismo extremo e horror étnico. Em um de seus
vídeos, narrado em inglês com legendas em birmanês, com a voz suave e um
filtro difusor, SES prega a paz enquanto mostra fotografias falsas,
gráficas de um verdadeiro terror, acusando os muçulmanos de ataques
bárbaros contra budistas. (Ainda é possível assistir a este vídeo — mas o alerta cabe. É forte. E as acusações nele feitas são comprovadamente falsas.)
Embora não trabalhasse para o Exército, o monge Wirarthu
passou a ter uma das páginas de Facebook mais visitadas no país. E ele
republicava todos os boatos de violência, pregava que os muçulmanos
secretamente controlavam o poder no novo governo, além de serem os donos
do dinheiro em Myanmar. Em janeiro de 2017, um dos maiores advogados do
país e conselheiro pessoal de Suu Kyi foi assassinado.
Era um dos muçulmanos de maior visibilidade. Entre agosto e setembro do
mesmo ano, pelo menos três mil pessoas da etnia rohingya foram
assassinadas em manobras militares e mais de 800 mil fugiram do país
para Bangladesh. Tentando ainda se manter no poder, Syy Kyi calou. Em
dezembro a ONU classificou a ação como uma de limpeza étnica. Ou genocídio.
O governo civil nunca se recuperou da crise política aberta ali e dos constantes ataques via Facebook. Em 1o de fevereiro deste ano, caiu perante um novo golpe militar.
Uma das primeiras ações do regime democrático em Myanmar foi ampliar
acesso à internet acreditando que, assim, abriria portas para o livre
debate na sociedade. Mas quando o Facebook foi adotado espontaneamente
como principal plataforma de diálogo, o elo quebrou.
Um estudo
da ong jornalística Global Witness mostra o processo. Os investigadores
criaram um perfil limpo, sem histórico passado, na rede de Myanmar.
Fizeram então uma busca por notícias relacionadas ao Exército — o que
qualquer um por lá inevitavelmente faz, tamanho o poder da instituição.
No momento em que o primeiro like numa página relacionada aos militares
foi dado, começaram a brotar recomendações de outras páginas. Em minutos
o perfil antes vazio havia sido completamente dominado por
desinformação racista, discurso de ódio e pró-golpe militar. Não é
preciso grande esforço, o próprio algoritmo leva qualquer um a este tipo
de conteúdo.
Durante a ditadura anterior, os militares acreditavam que se
liberassem a internet, perderiam o controle do país. No Face,
descobriram no curto período democrático que a internet poderia se
tornar sua principal aliada. Com a ajuda da rede conseguiram criar o
ambiente de incitação aogenocídio e tornar ao poder.
O monge Wirarthu foi expulso do Face em 2018, alguns meses após o
genocídio. Àquela altura, ele já era habitualmente tratado como o ‘bin
Laden budista’ pela imprensa internacional fazia muitos anos. Não era
uma figura obscura e a natureza de seu discurso tampouco era
desconhecida. O Facebook nunca explicou por que não havia tomado
qualquer ação nos anos anteriores. Também foram expulsos generais,
incluindo o comandante do Exército, num conjunto de 484 páginas, 157
contas e 17 grupos que “atuavam de forma coordenada em comportamento
inautêntico”.
Mas, quando um tribunal internacional cobrou do Facebook, em 2020, informações que pudessem ajudar a reconstruir o caminho
que o discurso do ódio online tomou para terminar em genocídio, a
empresa se negou a entregar. O pedido, de acordo com a empresa, era
“excessivamente amplo”. É também “intrusivo e oneroso”. Daria trabalho
demais.
O Facebook também não informa quantos funcionários compreendem birmanês e são capazes de avaliar o conteúdo publicado.
No país vizinho
Em agosto de 2020, mais ou menos quando o Face se negava a entregar à
Justiça dados que ajudassem a compreender o genocídio rohingya, outro
monge budista começou a agir não muito longe de Myanmar. Mas,
diferentemente de Wirarthu, Luon Sovath precisou fugir
de seu país. O Camboja. Conhecido em todo o país, um ávido defensor dos
direitos humanos, Luon Sovath foi vítima de uma campanha massiva de
desinformação — ele não ameaçava, era ameaçado. Dentre o material que
circulou no Facebook a seu respeito estava um vídeo muito pouco nítido
que sugeria relações sexuais suas com uma mãe e as três filhas. Não só
estaria violando o juramento de castidade como cometendo algo próximo do
incesto num país particularmente conservador. A ameaça se mostrou tão
relevante que ele teve de deixar o país.
O Camboja é uma ditadura e vem sendo governado, desde 1985, pelo
primeiro-ministro Hun Sen, um homem de 69 anos que atuou como soldado
durante o genocídio promovido pelo Khmer Vermelho durante a década de
1970. Assim como em Myanmar, por lá a internet é, em essência, o
Facebook. A plataforma que todos usam. E, assim como as Forças Armadas
de Myanmar, o governo tem um departamento dedicado a produzir conteúdo
falso para a rede.
No caso de um dos vídeos envolvendo o monge Luon Sovath, repórteres do New York Times descobriram indícios ligando o material a dois funcionários deste departamento de propaganda.
Advogados de políticos da oposição, nos EUA, tentam já há três anos
conseguir dados sobre a compra de publicidade no Facebook, para
divulgação de conteúdo pró-governo. Um conjunto de e-mails vazados em
2017 sugerem que, por dia, o Estado gastava US$ 15 mil por dia para atrair visitas para suas páginas. Num país com 15 milhões de habitantes, a página do premiê tem quase 14 milhões de seguidores. Em sua campanha mais recente online, Hun Sen vem promovendo uma campanha de ‘moralização’ das mulheres que usam roupas ‘reveladoras’ online.
Morte africana
O cantor pop Hachalu Hundessa dirigia seu carro, no dia 29 de junho
do ano passado, quando um homem se aproximou, disparou e o matou em um
bairro periférico de Addis Ababa, capital da Etiópia. Hundessa tinha 34
anos e, por toda vida, alternou a militância política com a carreira de
músico. Foi preso aos 17 por sua defesa de autonomia para o povo Oromo,
ao qual pertence, e permaneceu nas cadeias da ditadura etíope por cinco
anos. A carreira musical veio depois — “ele compôs a trilha sonora da
revolução Oromo”, explicou um professor da Universidade Keele, na
Inglaterra. “Um gênio lírico que incorporou as esperanças e aspirações do povo.”
Segundo a polícia, o assassino pertencia a sua etnia. O rapaz matou
Hundessa porque o cantor se aproximara do premiê Ahmed Abiy, também
Oromo, e que hipernacionalistas criticavam por contemporizar com outros
grupos. Imediatamente após o assassinato, o Facebook se incendiou
em acusações diversas, boatos e incitação. Nas horas seguintes, hordas
tomaram as ruas da capital etíope. Propriedades foram destruídas e
incendiadas. Houve uma série de linchamentos que terminaram com
decapitações públicas.
Apenas um ano antes, em 2019, o corredor etíope Haile Gebreselassie
tentou usar sua fama internacional para chamar atenção para outra
explosão de ódio na região de Oromia. Ela deixou 81 mortos após informações falsas
circularem no mesmo Facebook de que grupos rivais estavam sendo armados
para ataques. Gebreselassie, recordista mundial de maratonas em 2008,
foi ouvido na época por toda imprensa.
Em 2020, o Facebook dizia ter uma equipe de 100 pessoas responsáveis
pela moderação de conteúdo no continente africano. Não revelava quantos
compreendiam algum dos mais de 50 dialetos falados na Etiópia. Durante
as eleições que ocorreram em junho deste ano no país, a empresa diz ter
contratado falantes nativos
de oromo, amharic e somali, que de fato são os troncos linguísticos
mais importantes. Não afirmou quantos. Entre março e março, de 2020 a
21, o Face afirma ter retirado mais de 87 mil postagens de desinformação
no país. O arco cultural do continente africano abarca mais de duas mil
línguas.
O ponto
Com muita frequência, o que se publica a respeito de desinformação
nas redes sociais trata de Estados Unidos, Europa, ou alguns outros
países como o Brasil. O Brasil, noves fora a baixa autoestima local, é
um país rico e importante na geopolítica mundial. Por conta de Jair
Bolsonaro, tornou-se também um dos focos da imprensa internacional
atenta ao drama da recessão democrática que ocorre no mundo.
Myanmar, Camboja, Etiópia e tantos outros não são foco. Em países
como estes, as línguas faladas são pouco relevantes na economia mundial.
Ninguém as fala com exceção de quem as tem como línguas maternas.
Tensões étnicas não são novas em nenhum destes lugares. Ódio,
autoritarismo ou violência muito menos. A história é longa. A diferença é
a velocidade — de uma hora para a outra, pelas redes, boatos são
espalhados espontaneamente ou por meio de uma máquina organizada para
isto — e uma explosão se dá.
O Facebook já tem pelo menos um genocídio com seu nome.
A questão é simples: o algoritmo faz discurso de ódio circular com
facilidade. Ele, o algoritmo, desmontou como a internet funcionava.
Antes, pessoas precisavam buscar a informação que consumiriam. O
algoritmo leva informação a elas. A nós. E, invariavelmente, é o tipo de
material que atiça conflito. Assim como campanhas presidenciais como as
de Jair Bolsonaro e Donald Trump utilizaram a ferramenta para ampliar o
impacto de suas mensagens, outros movimentos autoritários no mundo já
dominaram a técnica.
E a usam livremente. Muitas vezes, sem os holofotes da imprensa.
Fonte da Imagem: The Phantoms of the Brain by richworks on DeviantArt