quarta-feira, 6 de março de 2013
O esgotamento da monarquia papal
"Conceder novamente todo o seu lugar à colegialidade, tão sonhada pelo Vaticano II, seja talvez, hoje, a única maneira de reconstruir a unidade da Igreja romana e de refundar a primazia do bispo de Roma como garante da comunhão das igrejas locais. Requer, como pré-requisito, que o Papa deixe de ser o único bispo na Igreja”, escreve Danièle Hervieu-Léger.*
A maioria dos analistas trata a renúncia de Bento XVI como de uma “guinada histórica” para a Igreja romana. Segundo o ponto de vista tomado, destaca-se a “dessacralização” da função papal que levou à decisão muito humana que consiste, para um Papa, em renunciar. Ou, ao contrário, acentua-se a sabedoria de um Pontífice suficientemente humilde e responsável para reconhecer que não tem mais as energias necessárias para arcar com os compromissos relativos ao cargo. Para além dessas avaliações contraditórias, não há nenhuma dúvida de que a inesperada decisão de Bento XVI colocou à Igreja Católica, sem escapatória possível, a questão da sua governabilidade.
Atualmente, a pergunta surge em plena luz do dia, mas seria redutor limitar o escopo da questão exclusivamente à decisão de um papa idoso, cansado e oprimido pelas perturbações que marcaram seu reinado. Origina-se, de fato, a partir do momento em que a Igreja, rompendo com o fechamento intransigente para o qual a levou sua rejeição definitiva do novo mundo da Revolução Francesa, escolheu entrar em diálogo com um mundo para o qual ela queria dirigir uma mensagem de sentido. Este ponto de viragem, operado no Concílio Vaticano II, não significava a aceitação dos ideais da modernidade. Mas implicava uma consideração positiva das aspirações e expectativas de uma sociedade que a instituição romana sabia não mais ser capaz de reunir sob sua tutela espiritual direta.
O sonho intransigente da reconquista católica do mundo, liderado por uma Igreja pensada como um exército reunido atrás de seu chefe, governou, durante um século, a visão que a instituição romana tinha de si mesma. Substituindo este sonho ideal de um testemunho evangélico fixado por uma Igreja definida como “Povo de Deus”, o Concílio reabilitou, ao mesmo tempo, as fontes colegial e sinodal da autoridade na Igreja. Neste novo modelo de eclesialidade, cada Igreja local, cada comunidade, foi chamada a encontrar os meios para este testemunho nas condições concretas da sua inserção social, sob a responsabilidade de seu bispo, no seio de uma comunhão da que o bispo de Roma foi e deve continuar a ser o garante.
A furiosa polarização que jogou um contra o outro o campo daqueles que se comprometem com entusiasmo neste novo caminho e o daqueles que queriam impor o modelo hierárquico e exclusivamente pessoal do poder suposto conforme a “Igreja eterna”, matou em germe a colocação em prática a intuição central do Concílio relativa à gestão da autoridade. Paulo VI – que condenou com o mesmo rigor a deriva integrista e as experiências das comunidades de base inspiradas na Teologia da Libertação – usou seu pontificado para tentar evitar a desagregação da instituição, sem chegar a dar ao modelo conciliar a base organizacional que poderia ter dado corpo ao ideal renovado de uma comunhão eclesial compatível com o reconhecimento do pluralismo da instituição.
A inércia das estruturas romanas foi, provavelmente, tão pesada quanto o foram as pusilanimidades teológicas no desajustamento crescente entre o aparelho eclesial, as expectativas diversas e contraditórias das comunidades e a realidade de um mundo arrastado, em grande velocidade, pela espiral de mudanças que, em todas as frentes, questiona a Igreja, seu discurso, suas normas, sua organização e suas práticas da autoridade.
A figura de um papa monarca governante e no topo de um corpo eclesial supostamente homogêneo foi arrastada por este mesmo movimento. Tornou-se impossível, desde a cúpula romana, manter todos os filhos de uma Igreja confrontada ao mesmo tempo com o secularismo crescente no mundo ocidental, com a crescente disparidade de situações das igrejas nacionais e com o choque da concorrência religiosa em escala global. Tornou-se cada vez menos plausível compensar, com uma centralização ideológica e disciplinar reforçada, a disseminação de comunidades livres da armadura de uma civilização paroquial definitivamente moribunda.
As redistribuições da divisão do trabalho religioso, motivadas pela diminuição do corpo clerical e pela autonomização dos indivíduos crentes levados a fazer prevalecer sua preocupação com a autenticidade pessoal sobre as exigências institucionais da conformidade, fizeram o resto. A morte do Papa João Paulo I, esmagado pela carga após algumas semanas de pontificado, pode ser lida, deste ponto de vista, como uma espécie de parábola. “A Igreja, escreveu Michel de Certeau, era um corpo, mas tornou-se um corpus”.
Os dois últimos papas, cada um à sua maneira, empenharam-se em afastar o risco das desfiliações que mina o corpo eclesial. Mas eles o fizeram, um e outro, trabalhando em prol da legitimação da centralidade papal, fora da qual nenhum dos dois era capaz de pensar a unidade da Igreja.
João Paulo II, dotado de uma personalidade flamejante e de uma história pessoal fora do comum, exerceu sem freios o lado carismático da sua função. Ele fortaleceu, através de viagens e grandes concentrações, uma Igreja reunida pela adesão emocional dos fiéis à pessoa de um guia capaz de converter a marginalização cultural do discurso católico em audácia profética.
Dos apelos para abandonar qualquer medo, que marcaram o início de sua pregação, até o testemunho mudo do abandono no final da sua vida, o Papa polonês apoiou a mobilização emocional de uma Igreja atormentada pela dúvida, ao mesmo tempo que pavimentava, no campo doutrinal e disciplinar, as bases das certezas que ele se encarregou de defender contra a crescente onda de “relativismo” considerado deletério.
O endosso do sentimento de pertença trouxe, indiscutivelmente, frutos para as fileiras dos fiéis católicos trabalhados pelas incertezas do tempo. Ele não conquistou ou reconquistou para a Igreja aqueles que já se encontravam aí. E ela, silenciosamente, afastou todos aqueles que aspiravam a fazer valer, no interior mesmo desse mundo de incertezas, não a última palavra de uma resposta católica, mas a fragilidade de um questionamento cristão.
Com o risco de uma comparação pouco favorável para ele, com a força do arrebatamento e do brio midiático de seu predecessor, Bento XVI consagrou seus esforços, não sem grandeza, à reabilitação racional do discurso cristão na cultura contemporânea. Falou-se muito sobre o seu investimento teológico como de um indicador de sua dificuldade de endossar a função papal. Podemos pensar, ao contrário, que ele não procurou menos que João Paulo II reforçá-la. Mas ele o faz no terreno que era o seu: o do ensino. Um terreno que, in fine, o deixou sozinho.
A lógica comum às duas trajetórias esclarece o fim diferente que cada um conheceu. Ir até o final das suas forças foi, para o papa carismático emudecido, uma maneira de se referir à desproporção humana da tarefa que lhe foi atribuída. Optar por renunciar é, para o papa-doutor, a expressão racional da constatação de um fracasso. Diante dos desafios do pluralismo interno e externo que desqualifica o sistema centralizado e monárquico do poder romano, nenhuma ajuda vinda do alto pode reconstruir a Igreja como um corpo.
Conceder novamente todo o seu lugar à colegialidade, tão sonhada pelo Vaticano II, seja talvez, hoje, a única maneira de reconstruir a unidade da Igreja romana e de refundar a primazia do bispo de Roma como garante da comunhão das igrejas locais. Requer, como pré-requisito, que o Papa deixe de ser o único bispo na Igreja.
Danièle Hervieu-Léger, Le Monde, 28-02-2013.
*Danièle Hervieu-Léger é socióloga, Diretora de estudos da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS), dirigiu, de 1993 a 2004, o Centro de Estudos Interdisciplinares dos Fatos Religiosos (CNRS/EHESS). Presidiu o EHESS de 2004 a 2009. É autora de vasta obra.
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