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sábado, 25 de setembro de 2021

PARTIDOS CADA VEZ MAIS PARTIDOS

 



Por Leonardo Pimentel, para Canal Meio (canalmeio.com.br)

Registrado na Justiça Eleitoral em 2015, o Partido Novo só entrou para valer no cenário nas eleições gerais de 2018, quando lançou João Amoêdo candidato à Presidência e elegeu oito deputados federais – fora um governador e 13 legisladores estaduais que não estão no foco aqui. Eis que, três anos depois, a legenda está em vias de perder seis desses oito parlamentares pelo descolamento entre eles e a executiva nacional. Enquanto a direção partidária se coloca em oposição ao presidente Jair Bolsonaro e defende seu impeachment, os deputados votam sistematicamente com o governo, embora não se reconheçam como bolsonaristas.

Mas essa situação não é exclusiva do partido cor de laranja. Após os atos de tom golpista em 7 de setembro, o presidente do PSDB, Bruno Araújo, convocou a executiva nacional para que o partido se declarasse em oposição e apoiasse o impeachment. A medida desagradou uma parcela expressiva da bancada tucana na Câmara, liderada informalmente por Aécio Neves (MG), também alinhada com o Planalto – a ponto de a maioria dos deputados do partido ignorar a orientação da direção e votar a favor do voto impresso, obsessão do presidente da República.

Parte da explicação para essa situação está no próprio fenômeno Bolsonaro. Assim como em 2002 Lula chegou à Presidência numa “onda vermelha”, o atual morador do Alvorada ali aportou liderando uma aluvião ultraconservadora. Quanto mais à direita o candidato se vendesse, melhores as chances de abiscoitar votos dos eleitores de Bolsonaro.

O Novo, por exemplo, ofereceu uma plataforma “liberal na economia e conservadora nos costumes” conhecida por vários nomes (thatcherismo, neoliberalismo etc.) e elegeu uma bancada conservadora, ponto. A direção percebeu que o liberalismo de Guedes tinha a mesma profundidade no governo que o lavajatismo de Sérgio Moro, mas os deputados estão mais alinhados com Bolsonaro que com Amoêdo.

No PSDB a coisa é mais complexa. O partido nasceu de uma rebelião no PMDB contra o fisiologismo de Orestes Quércia, então cacique paulista da legenda. Sua proposta era inédita: um partido social-democrata sem base sindical. Era uma agremiação de centro-esquerda, seus fundadores eram todos “autênticos” do MDB. Mas o acaso, esse destruidor dos mais bem elaborados planos, jogou para Fernando Henrique Cardoso a tarefa de conter a hiperinflação, privatizar, sanear o sistema bancário etc. O ideário social-democrata acabou implantado por Lula. Acontece.

O fato é que os tucanos foram empurrados para a direita pelo antagonismo com o PT e não tiveram coragem de expulsar Aécio Neves quando este foi alvo de denúncias sólidas de corrupção. Ele aglutinou em torno de si a bancada conservadora eleita na esteira do bolsonarismo e hoje busca sabotar todas as iniciativas do partido, tanto o projeto pessoal de João Doria quanto a tentativa dos fundadores de formar uma frente contra Bolsonaro.

Isso sem falar no PSL, um partido nanico elevado à condição de maior bancada no Congresso, empatada com o PT, por ter cedido seu número 17 a Jair Bolsonaro. O presidente e o partido estão brigados há tempos, mas a bancada ainda abriga luminares (num sentido muito figurado) do bolsonarismo, a começar pelo filho Zero Três, Eduardo, deputado por São Paulo.

Rachadura no pilar da democracia

Essa disfuncionalidade partidária é um dos muitos problemas do sistema político brasileiro. Talvez um dos mais graves, pois envolve um fundamento da democracia liberal. A ideia de grupos representando classes ou ideias vem desde a Grécia, passando por Roma. Em geral contrapunham a elite à plebe, embora Caio Júlio César, nobre de longa estirpe e supostamente descendente de Vênus, fosse um paladino do “partido popular”.

Essa também foi mais ou menos a lógica dos dois primeiros partidos políticos nos moldes do que conhecemos hoje, os Conservadores (Tories) e Liberais (Whigs), na Inglaterra do século 17. Com as revoluções burguesas/liberais do século 18 e o surgimento de novas linhas de pensamento político – comunismo, socialismo, anarquismo etc. – no século 19, o leque de partidos políticos se ampliou. E seguiu pelo século passado com as ideologias de extrema-direita e, mais tarde, os movimentos ecológicos.

Partidos podem mudar de ideologia? Claro. Durante a Guerra de Secessão (1861-1865), o Norte abolicionista era Republicano; o Sul escravocrata, Democrata. Na segunda metade do século 20, os democratas abraçaram o movimento dos Direitos Civis, conquistando a classe média progressista no Norte e o deixando órfãos os conservadores religiosos (e racistas) do Sul, que foram acolhidos pelos republicanos. O mesmo aconteceu com os partidos comunistas do Ocidente após a dissolução da União Soviética. O PCB se tornou PPS e hoje é Cidadania, sem qualquer resquício de comunismo em seu programa.

Nos regimes parlamentaristas, a necessidade de formar maiorias faz com que partidos políticos de diferentes matizes se unam, mas é jogo de “eu cedo, você cede” que acontece das agremiações para fora. Daí a expressão “strange bedfellows” (“estranhos parceiros de cama”, em tradução livre) melhor representada pela colcha de retalhos partidária que ora governa Israel.

Questão fechada

O sistema proporcional brasileiro valoriza os partidos. Mesmo quando votamos num candidato, o voto vai para a legenda, que pode eleger mais de um legislador com a votação de um candidato de forte apelo popular. Em outubro de 2007 o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) reforçou essa ideia ao determinar que um deputado federal ou estadual ou um vereador que mudasse de partido perderia o mandato, salvo com autorização da legenda ou em situações especiais. O entendimento foi confirmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e, para acomodar mudanças, foi criada uma janela de troca partidária no início do ano eleitoral.

Além disso, os partidos sempre tiveram o recurso do fechamento de questão. Uma vez que a direção se posiciona sobre o assunto, a bancada tem que seguir. Mas aparentemente isso só vale na esquerda. O episódio mais famoso aconteceu em janeiro de 1985. Airton Soares, Bete Mendes e José Eudes não eram apenas três dos oito deputados federais eleitos pelo PT em 1982. Estavam entre os mais expressivos nomes da legenda. Airton, de São Paulo, era o líder da bancada. Bete, uma atriz consagrada e com intensa atuação política, havia sido eleita pelo Rio de Janeiro, assim como Eudes, que vinha de dois mandatos no MDB. Eram, sem trocadilho, estrelas.

Com a derrota da Emenda Dante de Oliveira, o PT realizou uma convenção e decidiu que não participaria da eleição presidencial indireta no Colégio Eleitoral. Airton, Bete e Eudes avisaram que não obedeceriam e votaram em Tancredo Neves. Passaram a ser hostilizados no partido e o deixaram antes que um processo de expulsão fosse consumado.

O PSOL nasceu de um processo semelhante, também envolvendo o PT. Em 2004, quatro parlamentares do partido - Heloísa Helena, Babá, João Fontes e Luciana Genro – foram expulsos por votarem contra a reforma da Previdência proposta pelo governo Lula. Mais recentemente, Tabata Amaral (SP) contrariou a orientação do PDT e votou a favor da (última) reforma da Previdência. Foi tão hostilizada que o TSE a autorizou a deixar o partido. Está agora no PSB, que aliás, também havia fechado questão contra a reforma.

Valorização do baixo clero

Mas é injusto atribuir ao bolsonarismo a exclusividade na origem dessa disfunção política. Desde a redemocratização, uma parcela do Congresso trabalha fisiologicamente. Apoia o governo. Qualquer governo. Conhecemos como Centrão, mas assume diversas formas. Sarney, Collor (aos trancos e barrancos) e Fernando Henrique negociaram com sua cúpula. No governo Lula, o sistema montado em Minas pelo tucano Eduardo Azeredo foi levado para Brasília, onde acabou ganhando o nome de mensalão. Embora houvesse líderes envolvidos, a “negociação” era feita deputado a deputado. Em 2005, graças a uma brutal inabilidade da liderança petista, Severino Cavalcanti (PP-PE), a mais completa tradução do “baixo clero” foi eleito presidente da Câmara. Caiu pouco depois, exposto num esquema de corrupção quase punguista, mas mostrou à malta amorfa de deputados inexpressivos que talvez não precisassem de tantos líderes e caciques.

O que 2022 nos reserva?

Olhando assim, parece que devemos nos desesperar. Na verdade, não. Esta semana o Senado aprovou a PEC da minirreforma eleitoral podando tudo o que a Câmara havia incluído para beneficiar legendas nanicas, em particular a volta das coligações proporcionais. No ano que vem, os partidos terão de contar somente com a própria musculatura eleitoral. A regra já valeu no pleito municipal de 2020, promovendo uma saudável depuração, somada à cláusula de desempenho.

Paralelamente, o STF considerou inconstitucional a tese da “candidatura nata”, pela qual o ocupante de um cargo parlamentar tem automaticamente direito à vaga para disputar a reeleição sem o crivo da convenção partidária. Com a devida força na convenção, partidos podem deixar parlamentares rebeldes a verem navios, retomando uma saudável unidade ideológica.

Democracia, como tudo na vida, é prática. Mesmo com alguns soluços, vamos aprimorando a nossa.

 

Imagem: "O esfacelamento de Marsyas", Tiziano Vecellio (Titian). State Museum, Kromeriz, Czech Republic).