segunda-feira, 20 de março de 2023

A NOITE QUE NÃO TERMINOU (*)



Uma pequena rua com nome histórico: Travessa Lanceiros Negros. Em um bairro de classe média alta, esta denominação não tinha nada a ver. Muito diferente também do nome da rua onde acabava por desembocar: Nova Iorque.


Nenhum negro no bar apinhado de gente jovem. Em plena pandemia, todos ignoram a exigência de máscaras, a não ser as próprias, que usam para disfarçar seus sentimentos.


Meia-noite: música alta, metálica, misturada às vozes e ao cheiro de cerveja, espumante, vodca e batata frita. De repente, o céu é rasgado por uma sucessão de relâmpagos e a escuridão toma conta de tudo. É quando surgem e estacionam em frente ao bar quatro viaturas da Força Nacional Patriota. O esponsável pela operação, protegido por outros sete policiais, desce com um megafone na mão:

– Não se mexam, fiquem calmos. Repito! Fiquem calmos! Foi decretado Estado de Sítio. Estamos sob lei marcial federal. Saiam do bar de forma lenta e ordenada e nada acontecerá. Mostrem seus documentos de identificação aos agentes da Força Nacional. Estamos atrás de um perigoso subversivo! Ele será levado e nada acontecerá aos demais. 

As pessoas, mesmo não sabendo o que significa Estado de Sítio, entendem que a situação é grave. Reclamam, urram, mas o primeiro tiro de fuzil para o alto extingue a confusão.


Após mostrarem suas identidades, todos são liberados, com exceção de um. A turba tenta chamar motoristas de aplicativo, mas o 4G não funciona, os celulares não têm sinal, o Whatsapp está congelado, o Facebook e o Instagram estão bloqueados. Isso ocorre com todos na cidade: a capital, Porto Alegre, está às escuras; o Rio Grande do Sul está às escuras; o país está às escuras. As comunicações foram interrompidas. As rádios e emissoras de televisão estão fora do ar. Os canais dos radioamadores rugem somente estática.


O caos espalha-se com rapidez. Famílias tentam fugir da cidade, mas a Polícia do Exército está nas rodovias, nas gares e nas estações de metrô. Ninguém pode sair dos seus municípios ou deixar o país. Os militares, fortemente armados, mandam as pessoas voltarem para suas casas e permanecerem tranquilas. Caças cruzam a noite, espalhando terror na população.


Não há nenhuma explicação, só angústia e espera.


Depois da noite que não terminou, às doze horas do dia seguinte, todas as emissoras de TV e rádios voltam a operar em rede única para transmitir o seguinte comunicado:

Informações de inteligência dão conta de que a Argentina movimentou todas as suas forças bélicas, com o apoio externo de uma grande nação comunista, no objetivo de invadir o Brasil e implantar esse famigerado regime, sanguinário e ditatorial. Graças ao preparo e expertise das gloriosas Forças Armadas, aliado ao alto poder de negociação da nossa competente cúpula diplomática, e com a ajuda de Deus, conseguimos repelir essa ameaça externa. Em troca da proteção e apoio dos Estados Unidos da América, entregaremos somente as reservas do Aquífero Guarani e a metade norte da Amazônia, onde não se está plantando soja. O momento é grave e único na nossa História; assim, é imprescindível a confiança e o apoio de todos os patriotas para vergarmos a lâmina que paira sobre nossas cabeças. Mantenham a calma e confiem no seu Presidente.


Após o comunicado, é divulgada uma lista das medidas tomadas pelo gabinete de crise para o bem da coletividade: fechamento do Congresso Nacional e dos demais poderes legislativos, do Poder Judiciário, de sindicatos, federações e confederações, da UNE, da OAB e Conselhos de Fiscalização de Classe. Governadores e Prefeitos são destituídos, e novos serão nomeados. São determinadas a flexibilização dos direitos fundamentais, proibição de reuniões, supervisão das comunicações e da mídia, relativização do sigilo de dados e da correspondência, possibilidade de invasão de domicílio, busca e apreensão e prisão, por ordem de Autoridade.


Para finalizar, transforma-se o presidencialismo em monarquia: o Presidente vira Rei; sua esposa, Rainha; seus filhos, Príncipes. Ao menos, até que a ameaça externa seja contida.

É criado o Conselho de Segurança do Brasil, órgão de assessoramento direto do Presidente-Rei. Milhares de cidadãos, suspeitos de serem agitadores ou comunistas, antes monitorados nas redes sociais, são cassados, aposentados compulsoriamente, demitidos ou deportados do país por meio de inquéritos militares sumaríssimos: jornalistas, juízes, promotores, sindicalistas, médicos, advogados, intelectuais, artistas, escritores, poetas e principalmente letristas de músicas subversivas, além de políticos dos partidos de centro e esquerda. Quase todos foram presos na noite que não terminou, e levados para a Venezuela e Cuba. São recebidos no exílio mediante a doação de milhares de toneladas de soja, milho, algodão, cana-de-açúcar, frangos, suínos e bovinos. Na mesma semana, ocorre uma situação inusitada.


O Fundador da Associação Nacional da Classe Média – ANACLAME, completamente embriagado, após sair de uma festa em comemoração à decretação do Estado de Sítio, invade o zoológico de Brasília e, em um arroubo de lascívia e bestialismo, estupra uma anta.
Após onze meses, nasce no zoo um animal metade anta, metade homem. O fato viraliza, torna-se notícia mundial. O Estado de Sítio já foi amenizado para Estado de Defesa, sendo sucessivamente prorrogado por quatro anos. O Presidente-Rei tem uma ideia. Por decreto, o animal é alçado ao status de Guru Supremo. Ele será o responsável pela edição de novas leis, já que todas, inclusive a Constituição, foram revogadas durante o Estado de Sítio.
Como o animal só sabe assobiar, três filósofos do Planalto são designados intérpretes da sua vontade.


A rotina se repete: a anta dorme durante o dia, é alimentada ao final da tarde com o melhor feno transgênico e, à noite, começa a assobiar. No dia seguinte, as novas leis e diretrizes obrigatórias da sociedade são impressas e divulgadas, uma por dia, trezentos e sessenta e cinco vezes ao ano:


São extintos os Poderes Legislativo e Judiciário, o Ministério Público e os Tribunais de Contas.


A meritocracia é valor supremo e central do Estado, preponderando sobre quaisquer outros  fundamentos ou princípios.


É admitida apenas a religião oficial neste território.


O Estado subvencionará a compra de armas para todos os cidadãos de bem.


Não existe pena de morte no Brasil, exceto em razão de fuga, perseguição ou flagrante delito de indivíduo negro ou pardo suspeito, e por decisão exclusiva da Autoridade.


A partir de hoje, todos colaboradores passam a ser sócios efetivos das empresas, no percentual máximo de 0,000000000000000000017%, com a respectiva supressão dos direitos a um terço de férias, décimo terceiro salário, adicional noturno, horas-extras, auxílio-doença, dentre outros, em contrapartida a tornarem-se empreendedores.


A propriedade e a desigualdade são direito de todos, e compete à Autoridade zelar para que se cumpra essa determinação.


Com a volta da extrema direita ao poder nos Estados Unidos, o país passa a ser um protetorado norte-americano bilíngue. Não gasta mais com políticos, urnas eletrônicas e eleições. O dólar está  subvalorizado, permitindo à classe média viajar duas vezes por ano para Orlando e Miami.

Os combustíveis foram depreciados em trinta por cento.


Brasileiros, com determinada renda ou patrimônio, podem emigrar para os Estados Unidos sem uso de passaporte.


A pequena rua com nome histórico, Travessa Lanceiros Negros, está novamente repleta de jovens brancos bebendo suas cervejas e ouvindo músicas metálicas, indiferentes a tudo.
Com a morte do Rei, o Príncipe primogênito, depois de mandar prender os irmãos, assume para um mandato vitalício.

O povo está feliz.


Rodrigo Valdez 


(*) Esse é um dos contos do livro Berkut, cuja capa está acima publicada. O texto foi cedido para publicação neste bloguinho pelo gentil autor do livro, Rodrigo, do qual tenho o privilégio de ter relação de amizade. Recomendo fortemente o livro.

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