Vênus Adormecida, de Giorgione |
As
mulheres estão se tornando maioria nas redes interativas; a vaidade e a
necessidade de afirmação da identidade podem explicar o interesse
feminino por esse recurso tecnológico
por Isabelle Anchieta
As mulheres gastam mais do que o dobro do tempo dos homens no Facebook: três horas por dia, enquanto eles gastam uma hora, em média. Entrar na rede social é a primeira ação diária de muitas delas, antes mesmo de irem ao banheiro ou escovarem os dentes. Uma atividade cumprida como um ritual todos os dias – e noites. Em um estudo, 21% admitiram que se levantam durante a noite para verificar se receberam mensagens. Dependência? Cerca de 40% delas já se declaram, sim, dependentes da rede. Elas são a maioria não só no Facebook (onde representam 57% dos usuários); também têm mais contas do que os homens em 84% dos 19 principais sites de relacionamentos.
Essas são algumas revelações da pesquisa feita pelas empresas Oxygen Media e Lightspeed Research, que analisou os hábitos on-line de 1.605 adultos ao longo de 2010. Mas cabe ainda perguntar: que motivos levam as mulheres a ficar tanto tempo na frente do computador? Vaidade? Necessidade de reconhecimento? Seria esse fenômeno uma nova forma de autoafirmação? Uma maneira de desenvolver sua individualidade aliada ao reconhecimento do outro? Será essa uma nova forma de buscar sociabilização?
Mais do que procurar uma resposta fácil, cabe, antes, compreender por que a auto-representação é mais importante para as mulheres que para os homens. Historicamente as representações femininas foram fabricadas por motivações sociais diversas: míticas, religiosas, políticas, patriarcais, estéticas, sexuais e econômicas. E, há mais de vinte séculos, essa fabricação esteve sob o poder masculino. As mulheres não produziam suas próprias imagens, eram retratadas.
Em obras de arte célebres vemos inúmeras Vênus adormecidas, (como as de Giorgione, 1509; Ticiano, 1538 e Manet, 1863); Madonas castas (nas imagens religiosas das catedrais católicas como as pintadas por Giotto, no século13, e Botticelli, no 15) ou mulheres burguesas no espaço doméstico cuidando da cozinha e da educação dos filhos (como as pintadas por Rapin e Backer no século 19). Eram cenas “pedagógicas”, que ensinavam o valor da maternidade, da castidade, da beleza e da passividade.
O pano de fundo dessas produções artísticas era uma tentativa masculina de “gerenciar” o imaginário feminino, transmitindo sugestões sobre a conduta social desejada até uma estética sexual e familiar. Como enfatiza a historiadora Anna Higonnet “os arquétipos femininos eram muito mais do que o reflexo dos ideais de beleza; eles constituíam modelos de comportamento”. Sua capacidade de persuasão era ativada pelo contexto cultural. Um exemplo pontual, mas significativo, pode ilustrar essa hipótese. O nu é quase sinônimo do “nu feminino”. Do Império Romano, passando pelo Renascimento, pela Modernidade e até os dias de hoje, o corpo da mulher reflete os ideais estéticos predominantes.
A historiadora francesa Michelle Perrot chegou a afirmar que “a mulher é, antes de tudo, uma imagem”. Aqui sua ênfase é irônica. Refere-se a uma forma de retratar que associava os cuidados com o corpo, os adornos, as vestimentas e a beleza em geral à atividade, ou melhor, à ociosidade tipicamente feminina”, enquanto os homens deveriam se ocupar de tarefas consideradas sérias: política, economia e trabalho.
Quando a era moderna pareceu, enfim, trazer a emancipação da mulher, a conquista revelou-se contraditória. Estar na moda, ser magra, bem-sucedida e boa mãe tornou-se uma exigência. Com a ajuda do photoshop, top models, estrelas de televisão e cantoras exibem nos meios de comunicação o êxito que conquistaram em todos os aspectos do sucesso – o que, na prática, nem sempre é verdade. Elas, em geral, são tão “irreais” quanto a Vênus grega. A verdade é que a mídia veicula uma série de estereótipos sobre como agir que se tornam um peso para a mulher. Não devemos nos esquecer de que quem assume o comando é o mercado interessado em vender roupas, revistas e produtos destinados ao público feminino – e não propriamente a mulher. Assim, mesmo no século 20, quando pareciam ganhar “autonomia”, elas passaram a ser atormentadas por padrões estabelecidos por outra base imaginária: a do consumo.
O que muda no século 21 para as mulheres que utilizam as redes sociais? Quanto à importância da imagem, nada. Ela -continua a ter papel central para a identidade social feminina, confundindo-se com ela. Por outro lado, vivemos, sim, uma revolução: pela primeira vez a mulher passa a se autorrepresentar, a produzir representações de si publicamente. Essa produção não está mais sob o domínio exclusivo dos homens, nem restrita a um grupo de mulheres como as artistas (atrizes, fotógrafas, cineastas, pintoras, escultoras etc.) ou as modelos. As mulheres comuns tornam-se protagonistas de sua vida. Chegam a dispensar a ajuda de outra pessoa para tirar a própria foto: estendem o braço e miram em sua própria direção. Algumas marcas de câmeras fotográficas desenvolveram inclusive um visor frontal para que a pessoa possa ajustar o foco caso use o equipamento para se fotografar.
A mulher “hipermoderna” reivindica algo novo: o seu protagonismo público e sua “autenticidade”. O que se soma, agora, à revolução tecnológica da sociedade capitalista. Com acesso facilitado a câmeras digitais, a telefones móveis que dispõem desse equipamento e à rede, além da existência de uma plataforma que dá suporte ao armazenamento e oferece possibilidades ao usuário para compartilhar essas imagens pela internet, a mulher passa a se autofotografar nas mais diversas ocasiões, de situações corriqueiras a viagens. Nas palavras do filósofo Gilles Lipovetsky: “O retrato do indivíduo hipermoderno não é construído sob uma visão excepcional. Ele afirma um estilo de vida cada vez mais comum, 'com a compulsão de comunicação e conexão', mas também como marketing em de si, cada um lutando para ganhar novos 'amigos' para destacar seu 'perfil' por meio de seus gostos, fotos e viagens. Uma espécie de autoestética, um espelho de Narciso na nova tela global”.
DITADURA DA ESPONTANEIDADE
Nesse novo ambiente o artificialismo e a mistificação da imagem passam a ser “out”. Deusas etéreas cedem espaço a mulheres que querem ser vistas como “reais”: escovam os dentes, fazem caretas para a câmera, dirigem seu carro e não se importam em ser fotografadas em momentos que antes estariam à margem da esfera pública. Tanto que 42% das usuárias do Facebook admitem a publicação de fotos em que estejam embriagadas e 79% delas não veem problemas em expor fotos em que apareçam beijando outra pessoa. A regra é: quanto mais caseiro, “mais natural”; melhor. O que não significa que essa imagem seja, efetivamente, “natural”, mas que há agora um “gerenciamento da espontaneidade”.
O imperativo da representação feminina nas redes sociais é: “seja espontâneo”. Uma norma paradoxal, assim como a afirmação “seja desobediente, é uma ordem”, escreve o sociólogo Régis Debray. Ele faz uma interessante leitura do que poderíamos chamar de “ditadura da espontaneidade”. Segundo o autor, abandonamos o culto da morte, vivido pelas sociedades tradicionais e religiosas, para vivermos o “culto da vida pela vida” – uma espécie de “divinização do que é vivo” que se apoia no eterno presente e não mais em uma crença no além.
Vemos emergir mulheres que cultuam o que veem no espelho e postam, “religiosamente”, novas imagens de seu cotidiano – sem que tal culto resulte em algum tipo de censura externa ou de autocensura moral. Em outro contexto, como durante o período em que a religião católica era dominante, esse “culto de si” e ao corpo seria considerado um dos sete pecados: a vaidade. Esse imaginário, aliás, é muito bem representado por um quadro do séc. 15, de Hieronymus Bosch, no qual o demônio segura um espelho para que uma jovem se penteie.
Hoje o novo espelho global não é marcado pela vigilância moral. Ao contrário, há um contínuo incentivo da cultura para que as mulheres “se valorizem”, busquem sua singularidade e não se baseiem mais em modelos inalcançáveis (como as top models e outras famosas). E para que percebam em si mesmas uma possibilidade legítima e singular de ser no mundo.
A própria familiaridade e aproximação da mulher com o universo da produção de auto-representações pode levá-la a questioná-las. As mulheres já estão, como escreve Lipovetsky em seu livro A tela global, “cultivadas” pela mídia. Educadas em sua gramática, sabem que o photoshop, a produção e a edição das imagens criam uma mulher irreal e passam a ver essas representações “entre aspas”, distanciando-se criticamente delas. Elas aprendem com recursos autoexplicativos a modelar sua iconografia, a alterá-la, brincar com ela ou melhorá-la (possibilidades, antes, restritas aos profissionais).
Mas a consagração do “culto de si” não significou um isolamento da mulher. Os álbuns publicados nas redes sociais conciliam, contra todas as expectativas, o individualismo e as trocas. Um se alimenta do outro. Há um ciclo: exponho minha individualidade, acompanho a do outro e ele a minha e, assim, somos incentivados a produzir e expor, cada vez mais, as nossas imagens. Trata-se do nascimento de uma “identidade coletiva”, em que a individualidade não elimina a interação, mas é seu motor. Nesse sentido, a identidade coletiva não é produto apenas de uma adesão grupal e sim uma forma de negociação de posições subjetivas – esse é o paradoxo identitário a ser considerado.
Fotos pessoais e “amigos” virtuais (ou não) ditam o ritmo desse espaço interativo. Quanto mais caseiro, mais cotidiano, mais espontâneo, maior o número de relações entre as pessoas, que passam a valorizar a autenticidade e a vida de quem é “próximo”, “real”. Há, na base desse fenômeno, uma democratização dos desejos de expressão individual na medida em que as mulheres buscam conquistar espaços de autonomia pessoal – que traduzem a necessidade de escapar à simples condição de consumidoras daquilo que outros produzem. Elas querem colocar seu rosto no mundo. Aparecer ou não na “tela global” passa a ser uma questão de existência. Por essa razão, ter visibilidade e oferecer sua identidade publicamente é conferir importância à própria existência. O que é, também, uma forma de poder. Nesse ponto a mídia – como campo de visibilidade – passa a ter papel central para entendermos a luta simbólica pelo reconhecimento.
No entanto, essa “democratização” da auto-representação feminina não deve ser tomada como sinônimo do fim da competição estética e ética entre as mulheres. O que tudo indica, o que presenciamos não é a instauração de uma igualdade, mas a ampliação do número de mulheres na disputa por visibilidade e poder. Amplia-se, assim, a arena para buscar um poder que não está dado de antemão, mas que deve ser conquistado e manejado pela apresentação e representação de suas singularidades, de suas diferenças. Um agir que se manifesta na criação, no controle e no poder simbólico de sua própria imagem no espaço público, que só se realiza com o reconhecimento do outro nas interações sociais, associativas e na ampliação dos círculos de reconhecimento que estão dentro e fora do espaço de produção da imagem.
Isabelle Anchieta é jornalista, doutoranda em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em comunicação social pela UFMG.
MC
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