domingo, 5 de junho de 2016

Democracia e Poder

Obra de Jheronnimus Bosch


Por Paulo Müzell

John Kenneth Galbraith definiu o poder como “habilidade de um indivíduo ou de um grupo conseguir a submissão de outros a seu(s) propósito(s)”. Bertrand Russell complementou, afirmando que o poder na vida social tem um papel correspondente ao da energia no mundo físico. De que forma se exerce o poder, quais os meios utilizados para exercê-lo? Galbraith sintetiza citando o primeiro: punição, coerção, medo, a forma mais antiga de poder. Maquiavel aconselhou o príncipe: “é melhor ser temido do que amado.” Segundo: compensação, premiando aqueles que se submetem ao poder, é exatamente o inverso do medo e da punição. Terceiro: persuasão, que é conseguir a adesão através do convencimento, da crença. A sua forma mais perene: quem adere se sente ou tem a ilusão de ser partícipe.

A história da vida em sociedade é a história do poder. A produção do excedente econômico libera mão de obra da atividade diretamente produtiva: nasce a classe ociosa, nas figuras do líder político e chefe da guerra, do pajé e do curandeiro. Resumidamente, os cinco mil anos da história da humanidade consistem na luta da imensa maioria para ser ouvida, participar das decisões e se beneficiar do aumento da renda e da riqueza gerada. Não querendo ser pessimista, considero que os resultados foram até agora extremamente modestos.

Nas idades antiga, média e moderna, ao longo de quarenta e oito séculos, tivemos lentos e milimétricos avanços na luta contra a tirania e o poder absoluto de uma minoria. Durante séculos e séculos os reis e a Igreja lutaram – e tiveram sucesso – para manter seu poder e privilégios. Só no século XIII, na Inglaterra, tivemos um avanço: revolta dos barões, num episódio de enfrentamento dos excessos do monarca João Sem Terra. A limitação do poder real só ocorreu efetivamente, também na Inglaterra, quatrocentos anos depois, no século XVII: a revolta liderada por Cronwell foi consolidada na Revolução Gloriosa que depôs Jaime II em 1688. Institucionalizou-se ali o Parlamento e uma Constituição que estabeleceu limites ao poder absoluto do rei.

Decorrem pouco mais de duzentos anos da Revolução Francesa, da ascensão de uma nova classe, a burguesia, do iluminismo, do nascimento da democracia formal, do Estado laico estruturado em três poderes teoricamente autônomos e harmônicos entre si. Apesar do triunfante lema de uma Revolução que prometia – liberté, égalité, fraternité -, as desigualdades não foram superadas, se mantiveram. As potências europeias exploraram suas colônias na África, Ásia e América Latina até poucas décadas atrás; o sufrágio universal extensivo às mulheres tem apenas oitenta anos. A escravidão foi abolida formalmente há pouco mais de um século: de fato ainda existe nos países pobres e até aqui no Brasil. Em muitos países não ocorreu ainda a separação Igreja-Estado. Quase um terço da população mundial vive em países muçulmanos onde a fé religiosa se sobrepõe aos direitos da cidadania e há extrema desigualdade de gênero Mais de dois bilhões de chineses, indianos e japoneses vivem numa sociedade onde ainda impera um patriarcalismo primitivo.

O sistema econômico concentra cada vez mais capital: um pequeno número de empresas multinacionais controla o avanço tecnológico e a produção mundial. Defendem a livre concorrência e uma economia de mercado que não existe mais. Um capital financeiro cada vez desregulamentado e especulativo provoca frequentes crises cíclicas: os lucros são privados; os prejuízos públicos. No final da estória o contribuinte é quem acaba pagando a conta, ou seja, cobre os “rombos bilionários”. É a “socialização do prejuízo”, um capitalismo sem riscos. A oligarquia concentra cada vez mais a riqueza dos países, é dona dos meios de comunicação, financia partidos, elege políticos e controla de fato os governos. Este é o cenário mundial: nos Estados Unidos, na Europa e aqui na América Latina.

A crescente concentração da riqueza e do poder torna cada vez mais distante a democracia real. Resta-nos a democracia burguesa e mesmo esta ainda não se consolidou no Brasil. A grave crise política que vivemos hoje é uma prova disto. Um Congresso reacionário liderado por um criminoso montou uma farsa grotesca, um golpe parlamentar, expondo o país ao ridículo. O golpe – uma agressão às leis e à Constituição – contou com a cumplicidade de um poder judiciário cuja instância maior, o Supremo uma vez mais envergonhou a nação, dando respaldo a um justiceiro que cometeu flagrantes arbitrariedades, desrespeitou o direito de defesa e descumpriu as leis. Um juiz cujos atos evidenciam sua parcialidade: um juiz que tem lado. Aquele mesmo Supremo que já se acovardara durante a ditadura militar – dando ares de legalidade à violência e ao arbítrio -, tapou os ouvidos e fechou os olhos no episódio do golpe, chegando ao absurdo de impedir a posse de um ministro de Estado legitimamente indicado pela presidência. Um Supremo que desrespeita a Constituição, influenciado e submisso a uma mídia que falseia os fatos, a serviço de uma oligarquia atrasada, entreguista. Um judiciário corporativo, que instituiu a auxílio moradia, que desrespeita o teto salarial do serviço público e ainda pleiteia novos benefícios absurdos. Um judiciário que se pensa e se organiza como casta, fechado, sem controles externos, um verdadeiro acinte à cidadania. A recente atuação do judiciário brasileiro mostra que a reforma do judiciário é tão ou mais urgente que a reforma política que há tantos anos o país aguarda.

Fonte: http://www.sul21.com.br/jornal/democracia-e-poder/

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