sábado, 31 de janeiro de 2015

Raízes do sangue e do ódio



Por Juremir Machado da Silva

Judeu, historiador, professor da Universidade de Tel Aviv, autor de vários best-sellers, entre os quais “A invenção do povo judeu” e “Como deixei de ser judeu”, Shlomo Sand, 68 anos, é um intelectual polêmico que não teme enfrentar as posições dominantes nem a ira de alguns dos seus colegas de profissão. De Nice, na França, onde passava alguns dias ao sol e escrevendo um livro sobre a relação da história com a ciência, ele concedeu, por telefone, esta entrevista ao Caderno de Sábado. Como sempre, foi implacável.

Passado o impacto da tragédia de Charlie Hebdo, Sand faz o balanço da relação do Ocidente com a religião islâmica e do conflito israelo-palestino,

Caderno de Sábado – Por que, após os atentados de Paris, o senhor declarou, contra boa parte da intelectualidade, não ser Charlie?

Shlomo Sand – Logo depois dos atentados de Paris, escrevi um texto intitulado “Eu sou Charlie Chaplin”. Expus a minha recusa ao slogan “eu sou Charlie”, que reuniu pessoas solidárias aos cartunistas de Charlie Hebdo assassinados por extremistas. O crime cometido não tem justificativa nem desculpa. Dito isso, eu fiz a seguinte pergunta: devo me identificar com as vítimas e ser Charlie porque os mortos representavam a encarnação da liberdade de expressão? Algumas das caricaturas de Charlie Hebdo eram de mau gosto. Apenas algumas delas me faziam rir. Havia na maioria das charges publicadas pelo jornal uma raiva manipuladora com o objetivo de conquistar mais leitores. A caricatura de Maomé com um turbante-bomba publicada por um jornal dinamarquês em 2006 já me havia parecido uma pura provocação. Algo como relacionar judeu com dinheiro. Tudo isso só tem servido para associar islamismo e terrorismo. Incita ao ódio, dissemina preconceito, desrespeita a fé do outro. Sendo assim, não sou Charlie.

Caderno de Sábado – O que deve prevalecer, a liberdade de expressão, de sátira, de humor, ou o respeito às crenças e às diferenças?

Sand – O limite da liberdade de expressão é a difusão do racismo. Duvido que Charlie Hebdo se atrevesse, como escrevi no meu artigo logo depois dos fatos, a publicar uma caricatura do profeta Moisés de quipá com ar de agiota numa esquina. Concordo com a proibição, na França, a que o humorista e polemista Dieudonné faça piadas com o holocausto, mas não posso admitir que ele seja agredido. Se fosse, porém, eu não sairia com um cartaz dizendo “eu sou Dieudonné”. O limite ao humor é a incitação ao ódio, ao racismo e ao preconceito. Uma coisa é satirizar uma religião dominadora e opressiva. Outra, atacar a crença de grupos dominados e humilhados. O Ocidente está acostumado a apoiar as piores opressões no Oriente Médio. Dito isso, precisamos lutar contra o extremismo de organizações como o Estado Islâmico, sem esquecer que europeus deixaram esse crescimento acontecer bancando, muitas vezes, os bombeiros incendiários.

Caderno de Sábado – O Ocidente tem então responsabilidade no que aconteceu como sustentam alguns intelectuais de esquerda?

Sand – É disso que estou falando. O Ocidente não faz o papel de Voltaire no Oriente Médio ou no mundo islâmico. É preciso não ridicularizar grosseiramente o islamismo na Europa onde vivem milhões de muçulmanos em condições precárias, realizando os trabalhos mais insalubres. Por tudo isso, não sou Charlie. Minha simpatia fica com os muçulmanos que vivem em guetos e poderão ser vítimas do ódio desencadeado pelos atentados. Minha referência é outro Charlie, aquele que nunca zombou de pobres e humildes, Charlie Chaplin. É fundamental lutar contra o terrorismo, que existe e produz devastação, tomando-se o cuidado de não estimular racismo e ódio. Além disso, a Europa não pode esquecer seu passado colonialista recente e os rastros que isso deixou. A Europa acompanhou os Estados Unidos ajudando a criar o caos no Iraque e na região. Com apoio de aliados “esclarecidos”, grandes defensores da “liberdade de expressão”, como os sauditas, ajuda a preservar fronteiras ilógicas estabelecidas por interesses imperialistas. A minha conclusão é simples: o Ocidente não é a vítima ingênua e inocente como gosta de se apresentar. A França é responsável pela situação atual do Mali. Precisamos dar uma basta à hipocrisia que dá aos ocidentais sempre o bom papel. Intelectuais e escritores desempenham um papel nisso.

Caderno de Sábado – Livros como o romance de Michel Houellebecq, “Submissão”, que trata da ascensão ao poder na França de um presidente muçulmano, em 2022, incitam o medo do islamismo?

Sand – Michel Houellebecq, mesmo que não seja a sua intenção, contribui para que as pessoas sintam medo do islamismo. Ninguém pode escrever um livro tendo como tema uma ameaça de judeização do mundo, mas o autor de um romance sobre uma ameaça de islamização ganha todos os espaços de mídia. A questão é: como lutar contra o terrorismo? A resposta, como venho mostrando nas minhas reflexões sobre o conflito israelo-palestino, está em entender as origens do conflito. Sem desconstruir os mitos não se chega ao cerne dos problemas maiores.

Caderno de Sábado – Como viu a participação do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu nas manifestações de Paris depois do atentado contra a mercearia judaica e contra Charlie Hebdo?

Sand – Terrível. Netanyahu nem sequer compreende o fato de que judeus possam viver em outros países. Na cabeça dele, todo judeu fora de Israel está em situação temporária fora de casa e deveria voltar para o seu lugar. Ele não entende o conceito de cidadão e de cidadania.

Caderno de Sábado – Um dos assassinos dos atentados de Paris, o que invadiu a mercearia de produtos judaicos, fez menção à questão da Palestina. O senhor é um estudioso das relações entre judeus e palestinos. Vê uma saída para esse conflito que parece sem fim?

Sand – Não. Não vejo saída. Seria preciso uma forte pressão internacional para salvar Israel de si mesmo. Essa pressão teria de vir dos Estados Unidos, mas isso não acontecerá, pois Barack Obama não é presidente que se poderia imaginar. Ele cedeu rapidamente ao lobby sionista e aos interesses da indústria armamentista. Israel não percebe as próprias contradições. Desde 1947, instalou um regime de apartheid que não para de se acentuar. Temo pelo futuro de Israel. As reações e revoltas poderão se ampliar atingido até a Galileia.

Caderno de Sábado – Não vê Israel como uma verdadeira democracia?

Sand – Claro que não. Israel é uma etnocracia, o Estado dos judeus, o que se baseia numa visão etnocêntrica. Uma democracia é de todos os seus cidadãos independentemente das suas crenças ou “raças”. As medidas recentes com o objetivo de enfatizar o caráter judaico do Estado de Israel enfatizam esse elemento inaceitável de separação. Israel e Líbano são dois países com elementos liberais e democráticos, mas Israel não pode ser visto como uma verdadeira democracia na medida em que não aceita o fundamento universalista do regime democrático. Os assentamentos, que continuam, e a lógica empregada pelo sistema dominante alimentam esse apartheid que tem consequências cotidianas deploráveis para palestinos vivendo em condições precárias e insustentáveis. Qualquer um pode ver isso. Repito, só a pressão internacional poderá levar Israel a ser democrático. Quanto ao conflito, precisamos de dois Estados com base nas fronteiras de 1967. Fora disso, nada poderá funcionar mesmo.

Caderno de Sábado – Como superar a questão dos refugiados palestinos que gostariam de ter direito de retornar à terra de pais ou avós?

Sand – Temos de ver a situação com moderação. Todos os refugiados não podem voltar, pois isso significaria o fim de Israel. Mas precisamos fazer com que uma parte desses descendentes de palestinos possa voltar. O princípio é simples: em 1947, a terra onde está Israel era deles, dos palestinos, que foram expulsos de lá. Essa história de direito de dois mil à terra de Israel é uma bobagem. Ninguém tem esse tipo de direito. Ou todos os brasileiros de origem europeia deveriam sair do país e devolver o Brasil inteiro aos índios? Os Estados Unidos também deveriam ser evacuados? Não existe isso. Os judeus não são um povo, não são uma raça. Há judeus russos, poloneses, judeus saídos do Iêmen, de origens distintas. Só a religião é comum entre eles. Os brasileiros não são uma raça. Nem os judeus. Boa parte dos judeus de hoje não descende de ninguém que jamais tenha vivido na Palestina, mas de pessoas convertidas ao judaísmo em outros lugares.

Caderno de Sábado – E a lei de retorno para judeus?

Sand – Só devem poder ir viver em Israel judeus perseguidos. É um critério factível e sustentável moralmente. Os demais têm as suas nacionalidades e não são nem devem ser israelenses. Os fundamentos que justificam a existência de Israel são o holocausto e o fato consumado. Dado que Israel existe, precisa continuar existindo. Para isso, temos de conciliar israelenses e palestinos no mesmo espaço. Como a terra era dos palestinos e não se pode receber de volta todos os refugiados, cabe juntar dinheiro e indenizar todos os que foram despojados. Um mítico direito de dois mil anos atrás não pode se sobrepor ao direito de propriedade legítimo de 1947. Israel precisa assumir o seu papel na tragédia da população palestina.

Caderno de Sábado – Não acredita numa unidade genômica dos judeus?

Sand – De jeito nenhum. Essas pesquisas de DNA, essas pesquisas que falam de um DNA comum a todos os judeus, são uma empulhação. Tudo isso faz parte de um mito perigoso, o mito do povo judeu como raça.

Caderno de Sábado – Seus colegas o odeiam?

Sand – Historiadores apegados aos mitos sionistas me odeiam, mas meus livros são best-sellers em Israel. Estou escrevendo um livro sobre história e ciência para mostrar que história não é ciência. Ideologias, mitos e emoções permeiam boa parte dos relatos.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

A Petrobrás e a campanha do capital internacional

 
Fonte da Imagem: http://blogdaengenharia.com/wp-content/uploads/2014/06/plataforma-de-petroleo-blog-da-engenharia.jpg

Entrevista com Fernando Siqueira

Prossegue a oportunista campanha da imprensa que instrumentaliza as revelações do esquema de corrupção atuante na Petrobras para justificar a desnacionalização e entrega do petróleo brasileiro ao cartel internacional, ainda mais corruptos, já que se apoiam também em guerras e no uso de mercenários para garantir seus interesses em diversas partes do mundo.

A entrevista é de Rennan Martins, publicada pelo portal Desenvolvimentistas, 20-01-2015.

Cumprindo nossa missão de fazer o contraponto à narrativa hegemônica, atuando na guerrilha semiológica, como propôs Umberto Eco, o Blog dos Desenvolvimentistas segue colhendo e disseminando informações a fim de retratar o mundo de uma perspectiva que não a dos poderosos, essa já fartamente propagandeada.

É pra isso que entrevistei mais uma vez Fernando Siqueira, vice-presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras (AEPET). Siqueira defende que se deve investigar cada indício de corrupção, mas que a Petrobras é vítima dos saqueadores, “e não um antro de corrupção como eles tentam mostrar”. Ressalta que é uma companhia em melhor situação que as outras cinco grandes petrolíferas internacionais, lastreada em 84 bilhões de barris, e é justamente por essa riqueza que é tão atacada.

Eis a entrevista.

Qual a posição da AEPET em relação ao cartel/propinoduto que saqueou a Petrobras?

Achamos essa prática execrável, que deve ser punida com o máximo de rigor e prisão de todos os envolvidos. Em todo o Brasil. O ponto positivo é que a operação lava-jato trouxe as informações necessárias, inclusive dos corruptores, o que só foi possível com as delações premiadas. Vimos denunciando em todas as AGO´s (Assembleia Geral Ordinária, anual, dos acionistas) os indícios da corrupção (por exemplo, a cartelização pela prática de EPCismo – contratação de obras por pacote fechado – que sistematizou a cartelização). Mas não dispúnhamos das provas concretas. Sabíamos que o Duque (segundo dizem, concunhado do Zé Dirceu), o Paulo Roberto, o Barusco tinham procedimentos suspeitos, mas faltavam as provas. Agora temos a chance de deflagrar um combate sem tréguas à corrupção. Em todos os segmentos do País. Mas alguns membros do Ministério Público têm alertado para o risco de impunidade. A sociedade não pode aceitar um novo Satiagraha, que deu em nada.

Procedem os rumores de que a estatal está atolada em dívidas?

A Companhia tem realmente uma grande dívida. Porque tem a maior carteira de campos de petróleo a serem postos em produção. Portanto é uma dívida positiva, visto que é uma dívida para investimentos, os quais dão retorno superior a 80% ao ano. O retorno demora um pouco, mas já temos uma produção superior a 700 mil barris por dia no pré-sal. E o pré-sal já tem uma reserva descoberta de cerca de 70 bilhões de barris, que somada aos 14 bilhões pré-existentes, chegam a 84 bilhões de barris. Portanto, a dívida, além de ser positiva, tem um grande lastro.

O que explica a grande queda nos preços das ações da estatal? Em que extensão o escândalo de corrupção influencia nessa questão?

Há vários fatores. A queda do preço internacional do petróleo (temporária), a explicitação da nefasta corrupção, além da campanha sistemática da mídia defensora do capital internacional. Eles querem tirar a Petrobrás da condição de operadora única do pré-sal, pois isto inibe os dois focos de corrupção: superdimensionamento dos custos de produção, ressarcidos em petróleo e a medição fraudulenta da produção. Embora haja corrupção dessas empreiteiras em todos os segmentos do País, a da Petrobrás foi exacerbada ao máximo para desmoralizar a empresa. Na realidade a Petrobrás é vítima, e não um antro de corrupção como eles tentam mostrar. Ela tem 88000 empregados sérios, honestos e competentes.

Na esteira das revelações do esquema muitos analistas criticaram o modelo de partilha. Que pensa a AEPET sobre o atual modelo de exploração?

O modelo de partilha, não é o ideal, faltando, inclusive fixar o percentual do óleo-lucro que fica com a União. Mas é muito melhor do que o de concessão que eles defendem. A concessão dá todo o petróleo para quem produz. Por ela, o Brasil fica com 10% de royalties e cerca de 20% em impostos – tudo em dinheiro. No mundo, os países exportadores ficam com a média de 80% do petróleo produzido. Em nossa visão o modelo ideal é a volta do modelo existente antes da era FHC, previsto no artigo 177 da Constituição Federal de 1988: o Monopólio Estatal do Petróleo, conforme constava na Lei 2004/53. Ou a contratação por prestação de serviços, como é na Venezuela.

A proposta de retorno do regime de concessões interessa ao país? Quem ganha e quem perde com este modelo?

O modelo de concessão é pernicioso para o País, é puro entreguismo, pois conforme dito acima, só favorece as concessionárias integrantes do cartel internacional, em detrimento do povo brasileiro. Quem ganha com esse modelo é esse cartel do petróleo e os defensores do modelo, que, provavelmente, não fazem essa defesa gratuitamente.

A narrativa da grande mídia retrata nossa estatal como se estivesse à beira da falência. Por quê? Com que objetivos?

Faz parte da campanha do capital internacional. A Petrobrás, comparada às cinco grandes companhias petrolíferas internacionais, está muito melhor que elas. Aumentou suas reservas, aumentou a produção, o faturamento bruto, enquanto as outras têm indicadores negativos nesses quesitos. Ela ainda tem 70 bilhões de barris de petróleo descobertos no pré-sal, que fazem dela uma potência econômica e tecnológica. Aliás, ela poderia estar bem melhor se o Governo Dilma, por ditames eleitoreiros, não a houvesse obrigado a importar derivados e revender para suas concorrentes por preços inferiores. Segundo o Conselheiro Administrativo eleito, Silvio Sinedino, presidente da Aepet, esse rombo já atingiu a R$ 60 bilhões.

Que postura devem assumir os brasileiros que valorizam uma Petrobras forte e nacional?

Devem assumir a sua defesa como vítima da corrupção e combater sem tréguas essa prática. Lembrar que a Companhia é a mais estratégica do País e que ela pode alavancar o desenvolvimento tecnológico, econômico e financeiro, gerando empregos, tecnologia e desenvolvimento sustentado. Gosto sempre de citar a Noruega, que passou de segundo país mais pobre da Europa para o mais evoluído do Planeta: tem o melhor IDH – Índice de Desenvolvimento Humano - de todos por cinco anos consecutivos, o melhor bem-estar social e a segunda renda per capta do planeta. Por que a Noruega cresceu assim? Porque soube usar o petróleo que descobriu no Mar do Norte na década de 70. Desenvolveu-se magistralmente e criou um fundo soberano pós-petróleo, que já chega a US$ 900 bilhões. E nós temos muito mais petróleo do que eles, além de imensas riquezas fora do ramo petróleo – minérios, biodiversidade, água.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Mudança na política da China para o mundo

Fonte da Imagem: http://www.masterchessopenings.com/wp-content/uploads/2014/07/chess_00418821.jpg


Por Frederick William Engdahl * - de Nova York, EUA

Dia 29/11/2014, aconteceu em Pequim uma reunião pouco comentada, mas altamente significativa, que aconteceu enquanto quando Washington estava absorvida em suas tentativas para ‘’incapacitar’’ e, afinal, desestabilizar a Rússia de Putin. Os chineses realizaram o que chamaram de Conferência Central sobre Trabalho Relacionado a Assuntos Exteriores. Ali Xi Jinping, presidente da China e presidente da Comissão Militar Central pronunciou o que foi chamado de “Importante Discurso”.

Leitura cuidadosa do documento oficial do Ministério de Relações Exteriores da China sobre aquela Conferência confirma que, sim, foi discurso “importante”.

A liderança política chinesa já completou e agora divulgou oficialmente uma mudança estratégica global nas prioridades geopolíticas da política exterior da China.

A China já não vê como a mais alta prioridade o seu relacionamento com os EUA nem, sequer, com a União Europeia. Em vez disso, definiram agora um novo grupo de países prioritários, no novo mapa geopolítico que os chineses discutiram demoradamente e agora acabaram de definir.

Esse novo mapa inclui a Rússia e todos os países BRICS com suas economias em rápido desenvolvimento; inclui os vizinhos asiáticos da China, países africanos e outros países em desenvolvimento.

Prova de que é discurso importante, muitos já começaram a falar sobre “maiores riscos de confronto com o mundo desenvolvido” (por exemplo, Timothy Heath, em The Diplomat). [Aqui há um parágrafo truncado, ininteligível (NTs)].

No discurso que fez aos participantes daquela Conferência, o presidente Xi destacou um subgrupo de países em desenvolvimento: “grandes países em desenvolvimento” (kuoda fazhanzhong de guojia). Com esses, a China vai “fortalecer a unidade e a cooperação e integrar firmemente [o desenvolvimento chinês] com o desenvolvimento comum de todos os grandes países em desenvolvimento”, disse Xi.

Segundo intelectuais chineses, esses países aparecem agora como parceiros especialmente importantes “para apoiar a reforma da ordem internacional”. Nesse grupo estão Rússia, Brasil, África do Sul, Índia, Indonésia e México, quer dizer, os parceiros BRICS da China, mais Indonésia e México. A China também deixou de se autodefinir como “país em desenvolvimento”, sinalizando que há uma nova autoimagem [vide Sobe a periferia e rebaixam-se as ‘grandes potências’ (ing.) (NTs)].

O Vice-Ministro de Relações Exteriores, Liu Zhenmin, indicou outro aspecto significativo da nova política quando, na Conferência em Pequim, declarou que “o desequilíbrio entre a segurança política da Ásia e o desenvolvimento econômico tornou-se questão cada dia mais importante”. A proposta da China, de criar uma “comunidade de destino partilhado”, visa a resolver esse desequilíbrio. Implica que a China terá laços diplomáticos e econômicos mais próximos com Coreia do Sul, Japão, Índia, Indonésia, até o Vietnã e as Filipinas.

Em outras palavras, embora o relacionamento com os EUA vá continuar como mais alta prioridade, por causa do poderio militar e financeiro dos EUA, deve-se esperar ver uma China cada dia mais ativa contra o que vê como interferência dos EUA. É novidade que já se viu claramente em outubro, quando o jornal People Daily do Partido Comunista Chinês publicou editorial, durante a ‘revolução dos guarda-chuvas’ em Hong Kong, que interrogava “Por que Washington tanto se interessa por revoluções coloridas?” O artigo citava nominalmente, como envolvida naquela “operação”, a ONG National Endowment for Democracy, dedicada a “mudanças de regime” pelo mundo e mantida pelo vice-presidente dos EUA. Esse tipo de denúncia direta era impensável há seis anos, quanto Washington tentou criar problemas para Pequim insuflando protestos violentos do movimento do Dalai Lama no Tibete, pouco tempo antes dos Jogos Olímpicos de Pequim de 2008.

A China está agora rejeitando abertamente a crítica usual do ocidente sobre “direitos humanos” e recentemente declarou um esfriamento nas relações diplomáticas entre China e Reino Unido, depois que o governo de Cameron ter recebido o Dalai Lama; e entre China e Noruega, depois que o país reconheceu o dissidente Liu Xiaobo. Ao longo do ano passado, passo a passo, Pequim cuidou de esvaziar as críticas de Washington contra os direitos históricos que a China declara ter no Mar do Sul da China.

Mas talvez mais significativo de tudo, em meses recentes a China promoveu firmemente uma agenda para construir instituições alternativas aos FMI e Banco Mundial controlados pelos EUA – o que, se o movimento for bem-sucedido, pode ser golpe devastador contra o poder econômico dos EUA. Para resistir em oposição à tentativa, pelos EUA, de isolar economicamente a China na Ásia, com a criação de uma Parceria EUA Trans-Pacífico [US Trans-Pacific Partnership (TPP)], Pequim anunciou sua própria visão chinesa de uma Área de Livre Comércio do Pacífico Asiático [Free Trade Area of the Asia-Pacific (FTAAP)], acordo comercial “plenamente inclusivo, padrão ganha-ganha”, que realmente promove a cooperação no Pacífico Asiático.

Elevar as relações russas

Nesse momento, o que emerge claramente é a decisão da China de pôr sua relação com a Rússia de Putin no centro da nova prioridade estratégica chinesa. Apesar das décadas de desconfiança depois da ruptura sino-soviética de 1960, os dois países iniciaram cooperação em profundidade que é completamente sem precedentes. As duas maiores potências territoriais da Eurásia estão costurando laços econômicos que criam o único “desafiante” potencial imaginável, capaz de ameaçar a supremacia global norte-americana, como a descrevia o estrategista da política externa dos EUA, Zbigniew Brzezinski, em 1997, em seu O Grande Tabuleiro de Xadrez.

No momento em que Putin combate uma guerra sem tréguas de sanções econômicas impostas pela OTAN para derrubar seu governo, a China assinou não um, mas vários negócios-gigantes com empresas estatais russas, Gazprom e Rozneft, que permitem à Rússia enfrentar em melhores condições a crescente ameaça às suas exportações de energia para a Europa ocidental, que é questão de vida ou morte para a economia russa.

Durante a reunião da Associação dos Países Exportadores de Petróleo em Pequim, Obama foi oficialmente rebaixado no panteão diplomático, ao ser mandado postar-se ao lado da esposa de um presidente asiático, enquanto Putin permanecia ao lado de Xi. Os símbolos têm grande peso político, especialmente na China – e são parte essencial da comunicação.

Na mesma reunião, Xi e Putin assinaram o acordo para construir um gasoduto da Sibéria à China, chamado Rota Oeste, que se conectará ao histórico gasoduto Rota Leste já acordado com a Rússia, em maio. Quando os dois estiverem completados, a Rússia estará fornecendo 40% do gás natural de que a China necessita.

Na mesma ocasião, em Pequim, o Ministro do Exército da Rússia, anunciou importantes novas áreas de cooperação entre as Forças Armadas da Rússia e o Exército da Libertação do Povo, da China.

Agora, em plena guerra total que Washington faz contra o rublo russo, a China anunciou que está pronta para, se solicitada, ajudar seu parceiro russo. Dia 20/12/2014, em meio a uma queda histórica na cotação do rublo em relação ao dólar, o Ministro de Relações Exteriores, Wang Yi, disse que a China proverá ajuda à Rússia, se necessária, e tem confiança de que a Rússia conseguirá superar suas atuais dificuldades. Ao mesmo tempo, o Ministro do Comércio, Gao Hucheng, disse que expandir uma operação de swap de moedas entre as duas nações e fazer uso mais amplo do yuan no comércio bilateral são operações que, com certeza, darão grande alívio à Rússia.

Há outras sinergias entre Rússia e China, nas quais os dois países se autocoordenam em relação mais próxima, inclusive a decisão de Putin de encontrar-se na primavera com o presidente da Coreia do Norte, e com a Índia, aliado de longa data dos russos, e com quem a China tem relações sensíveis desde os anos 1950s. Assim também a Rússia tem posição forte com o Vietnã desde a Guerra Fria e a ajuda que os russos deram para a pesquisa e extração de petróleo em águas do Vietnã.

Em resumo, tão logo haja estratégia geopolítica harmônica entre Rússia e China, o pior pesadelo geopolítico de Brzezinski ganhará vida própria, graças, em grande parte, às próprias políticas estúpidas dos neoconservadores maníacos por guerras que governam Washington, do próprio presidente Obama e das famílias milionárias sem amor nem pudor, que pagam todas as contas desse pessoal.

Todos esses movimentos, embora todos carregados de inúmeros perigos, sinalizam que a China compreendeu em profundidade o jogo geopolítico de Washington e as estratégias dos neoconservadores norte-americanos obcecados por guerras; e que, como a Rússia de Putin, a China também não tem nenhuma intenção de ajoelhar-se ante o que interpretam como uma Washington-tirana-global. O ano de 2015 surge como um dos mais decisivos e interessantes da história moderna.

* Frederick William Engdahl é jornalista, conferencista e consultor para riscos estratégicos. É graduado em política pela Princeton University; autor consagrado e especialista em questões energéticas e geopolítica da revista online New Eastern Outlook.


Fonte do texto:  http://correiodobrasil.com.br/ultimas/mudanca-na-politica-da-china-para-o-mundo/747459/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=b20150116

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

O cinismo nosso de cada dia

Obra de Hieronymus Bosch


“Não vos conformai com o século presente, mas sede transformados pela renovação de vosso pensamento” (Romanos, 12:2)

Gilson Iannini *

 
1 O que pode estar errado com isso?

— A riqueza das oitenta e cinco pessoas mais ricas do mundo equivale à dos três bilhões e meio mais pobres.

— É fantástico. E é uma coisa ótima, porque inspira a todos, dá motivação para olhar para os 1% e dizer “eu quero ser uma dessas pessoas, eu vou lutar muito para chegar ao topo”. [...] O que pode estar errado com isso?

— Sério?

— Sim, sério. Eu celebro o capitalismo.

— Então, alguém que ganha um dólar por dia na África acorda de manhã e diz “eu vou ser Bill Gates”?

— É essa a motivação que todos precisam.

— A única coisa entre eu e essa pessoa é “motivação” [...].

— Eu não sou contra caridade. Veja, não me diga que você quer redistribuir riqueza outra vez. Isso nunca vai acontecer.

Esse diálogo, infelizmente, não é ficcional. Ocorreu entre a repórter Amanda Lang e o investidor Kevin O’Leary, a respeito de um relatório que mostrava que as oitenta e cinco pessoas mais ricas do mundo detêm a mesma riqueza que os três bilhões e meio de pessoas mais pobres. Isso mesmo, oitenta e cinco pessoas, que poderiam caber confortavelmente num jantar entre amigos num apartamento de cobertura, possuem o equivalente do que os três bilhões e meio de pessoas, contingente que ocuparia quase a totalidade do território da Ásia. Isso corresponde a dizer que a chance de alguém realizar essa “promessa inspiradora” é de bem menos do que 1%. Na verdade, é algo em torno de uma chance a cada quarenta e quatro milhões de pessoas. Como se uma pessoa num país do tamanho da Espanha pudesse ser extremamente rica, e todas as demais extremamente pobres. O que pode estar errado com isso?

Além disso, segundo o relatório, nos últimos vinte e cinco anos, houve um fenômeno mundial de concentração de renda. “Esse fenômeno global levou a uma situação na qual 1% das famílias do mundo são donas de quase metade (46%) da riqueza do mundo”, concluiu o documento do PNUD. Mas o que nos espanta nesse diálogo surreal é, justamente, o entusiasmo com que o investidor comenta o relatório. Para ele, são notícias fantásticas, inspiradoras, que deveriam motivar os mais pobres a trabalhar duro! A rigor, O’Leary disse apenas uma verdade grotesca, e disse sem véus, sem dissimular nada. Como um bufão. Retirou o verniz de cinismo necessário que, no dia a dia, encobre essa verdade acerca do modo de funcionamento do capitalismo. Quando retirado esse verniz, quando expostas as vísceras, sentimos apenas repulsa. Pois sabemos que o máximo que é permitido segundo essa lógica é que alguém (um em quarenta milhões) consiga furar o bloqueio e entrar para o seleto grupo dos podres de ricos. Mas mudar algo no próprio funcionamento do negócio, isso não, isso nunca vai acontecer. A história acabou, temos que aceitar os fatos. Redistribuir riqueza? Não, eu celebro o capitalismo. O diálogo termina assim:

— Nós estamos falando de pessoas que estão em abjeta extrema pobreza [...].

— Não, não estamos. Estamos falando de pessoas realmente ricas.

Para o investidor, os pobres não existem sequer como fatos de discurso. Não existem nem ao menos simbolicamente. Não por acaso, é plenamente possível saber de cor os nomes dos oitenta e cinco endinheirados, ao passo que os três bilhões e meio são, necessariamente, sem-nome. O máximo que podemos fazer é alguma caridade e contar-lhes histórias inspiradoras.

2 Histórias inspiradoras

Nas antípodas desse cinismo grotesco, o professor de ética prática Peter Singer, em sua palestra “O porquê e o como do altruísmo eficaz” convida-nos a nos valermos de nossa razão a fim de perspectivar o sofrimento do outro e nos engajarmos no que ele chama de “altruísmo eficaz”. Mobilizando nosso altruísmo e compaixão, podemos ajudar, por exemplo, crianças pobres dos países pobres. No entanto, apesar de estarem em extremos opostos quanto ao significado da pobreza e nossa tarefa diante dela, as duas perspectivas, ironicamente, se tocam num ponto: a naturalização da própria lógica que fundamenta tal estado de coisas. O melhor exemplo disso é o conselho de que estudantes desistam da carreira acadêmica e se tornem banqueiros ou trabalhem no mercado financeiro, porque quanto mais rico o indivíduo for, mais caridade poderá fazer. O que esse inspirador exemplo nos mostra é a total cegueira, senão a total impossibilidade de pensar fora da lógica que, justamente, resulta no estado de coisas que pretende remendar. Pois é justamente essa lógica financeira que resulta necessariamente na produção da miséria. Contudo, a má consciência pode dormir tranquila: depois de doar o excedente inútil, a consciência deita no travesseiro reconciliada consigo mesma. Esse é o altruísmo mais efetivo do mundo: reconcilia a consciência narcísica consigo mesma. Minha forma de vida, meu conceito de razão aprofundam a miséria social. Mas não há problema algum, pois minha moral me lembra de doar o excedente, ou até mesmo um tanto mais do que o excedente. No fundo, a lógica que inspira esse pensamento não é ainda pensamento, mas apenas justificação conceitual de uma forma de vida historicamente determinada. Uma forma de vida cuja lógica produz miséria e exporta pobreza. Nesse sentido, o altruísmo eficaz é um exemplo perfeito de um pensamento afásico e, no limite, conivente. Um pensamento piedoso e benevolente, i.e., culpado. Incapaz de interrogar seus próprios pressupostos, naturaliza formas de vida contingentes; impossibilitado de interrogar o próprio conceito central, o conceito de razão, naturaliza a razão instrumental calcada no individualismo, sem se dar conta de que é essa própria razão que é responsável pelo crime que sua consciência infeliz tenta expiar através da caridade. Em termos lacanianos, tal perspectiva solda o real à realidade.

Não restam dúvidas de que ações altruístas como essas devem ser aplaudidas e incentivadas. Mas elas pertencem ao domínio da ética. Não são ainda políticas. Não são ainda capazes de engendrar políticas públicas para fazer face àquele estado de coisas. Remendar os efeitos insuportáveis da desigualdade seria tarefa dos indivíduos, não do Estado ou da sociedade. Quando a moral serve para tampar o furo da política perdemos a capacidade de pensar, capitulamos diante do peso do já existente. Incapaz de interrogar sua própria ideia de razão, a filosofia se torna religião. Ou seu nome no mercado das palestras: motivação. Diante do conselho de Singer não há como não lembrar Brecht: o que significa roubar um banco, comparado a fundar um?

3 Fúria e economia

Certa feita, a filósofa Hannah Arendt escreveu: “A fúria não é de modo nenhum uma reação automática diante da miséria e do sofrimento em si mesmos; ninguém se enfurece com uma doença incurável ou um tremor de terra, ou com condições sociais que pareçam impossíveis de modificar. A fúria irrompe somente quando há boas razões para crer que tais condições poderiam ser mudadas e não o são”. Por essas razões, o maior desafio do sistema capitalista global é justamente o de naturalizar a crença de que é impossível modificar nosso sistema social, é nos fazer crer na naturalidade de nossas relações sociais. A única maneira de evitar a revolta dos segregados é envolvê-los nessa crença da inexorabilidade das condições sociais e econômicas. Para funcionar bem, a máquina precisa encobrir suas engrenagens. O véu cínico é absolutamente necessário para gerir os afetos sociais. A democracia liberal funciona como um desses sete véus. Histórias pessoais de sucesso, do tipo “comecei do zero e cheguei ao topo”, servem como um cimento imaginário que esconde as fraturas. O problema é que inclusão social massiva, quando ocorre, sugere que a doença não é tão incurável assim.

Mas como funciona essa inculcação sistemática da crença de que o estágio atual do capitalismo é um fato fechado em si mesmo e que a sociedade e a história devem se curvar a isso? As estratégias são muitas: a própria reprodução material de uma forma de vida esculpida para esses fins, com seus sonhos de consumo, de sucesso individual, de aquisição de bens. Tais desejos são esquematizados na indústria cultural do sucesso, incluindo aí o culto à personalidade, impregnado na verdadeira religião das celebridades, suas ilhas caras e suas carreiras. Contudo, uma das estratégias mais eficazes raramente é lembrada: trata-se da naturalização da linguagem econômica.

Acostumamo-nos a medir a política pela economia. Fomos habituados a escutar e falar em economês: “o Mercado está apreensivo com as eleições”. Bingo. Quem é o mercado? Alguém já fez essa simples questão? Essa entidade metafísica pós-moderna a que chamamos de mercado parece ser um vetor de humores extremamente voláteis: falamos em temor, apreensão, confiança, pessimismo, credibilidade, etc. Uma certa economia, e mais ainda o jornalismo econômico, é, na verdade, o prolongamento de uma psicologia mal fundada (com suas teorias dos jogos, da escolha racional etc.), que não consegue esconder seu viés ideológico debaixo da camada científica de modelos matemáticos e de estatísticas. O mercado, essa entidade metafísica, nem é tão metafísico assim: metade de seu capital pertence a pouco mais de algumas dúzias de investidores e seus grupos, todos de carne e osso, com fotos sorridentes nas listas da Forbes. Parte do jornalismo é, no melhor dos casos, um psico-economês pseudo-científico.

Em nosso jornalismo, não há lugar para a política. De um lado, a política é reduzida à economia. De outro lado, é judicializado, transformado numa novela, com seus maniqueísmos grotescos, seus mocinhos e bandidos, como mostrou Ivana Bentes recentemente. O paradigma dos programas de polícia vigora no noticiário político. Nos dois casos, estamos diante de uma espécie de corrupção da política pela antipolítica.

Há alguns meses, um programa televisivo resolveu debater um tema importante, a polarização do debate “esquerda x direita” na política nacional. Para falar de “esquerda x direita”, W. Waack escalou L.F. Pondé, B. Lamounier e R. Azevedo! O equivalente de assistir a um Fla-Flu em que o juiz, o narrador e o comentarista estão todos de um lado só. Entre outras pérolas, eles diziam que não havia nada como uma “guinada direitista da midia”. Ao contrário, completavam, “a midia é toda de esquerda”! Só se esqueceram de olhar para si mesmos: a própria forma do programa comprovava o inverso do que eles diziam. Tecnicamente, isso se chama “contradição performativa” – ou seja, quando minha forma de dizer prova o contrário do que digo.

O resultado disso é que a média da população brasileira, inclusive aquela que se orgulha de seu bom nível de escolaridade, simplesmente desconhece que existe pensamento político de esquerda. E que existe um pensamento sofisticado, posterior à queda do muro de Berlim. Um pensamento que embasa políticas sociais em vários países democráticos ou que serve de contraponto ao discurso hegemônico das democracias liberais como realização máxima da justiça possível. Não por acaso, qualquer “crítica ao capitalismo” é rapidamente sugada para o buraco negro dos exemplos de fracasso de ditaduras comunistas: “vai pra Cuba”, “bom é na Coréia do Norte”, ouvimos recentemente nas patéticas manifestações contra os resultados das eleições brasileiras. Como escutamos de alguns sábios jornalistas, gestores do medo e do ódio: “estão querendo implantar uma espécie de bolivarianismo tropical!”.

Uma nova política necessariamente passa pela distinção entre ato e potência, como bem mostra Agamben. Nenhuma forma de justiça efetivamente existente no presente ou já experimentada no passado pode nos dar a figura de uma sociedade justa. Ideais normativos de justiça já realizados não podem ser tomados como critérios definitivos de validade de um pensamento político renovador, pois isso equivaleria a renunciar à possibilidade de criticar nossa forma de vida contingente, como se vivêssemos na realização máxima da justiça social. Ali onde o pensamento se conforma ao positivamente dado, eliminando a historicidade do existente, retiramos aquilo que é mais caro ao pensamento: ultrapassar coordenadas efetivamente dadas. Nossas democracias liberais querem fazer crer que o real e o possível são equivalentes. Trata-se de uma redução do real à imagem. Um efeito colateral disso é que ali onde não há pensamento, tudo o que temos são imagens, com seus véus. Ora, não nos ensina Lacan que a colonização do real pelas imagens é a fonte da agressividade especular?

4 Quem disse “corrupção”?

Para concluir, não poderia deixar de dizer uma palavra sobre a corrupção. A corrupção é um problema muito mais grave do que parece. E a solução, muito mais difícil. Não é um problema de um ou outro partido. É endêmico. Não é um problema exclusivo da classe política, está enraizado em nosso jeito de levar vantagem em tudo, e isso nivela o porteiro do prédio ao empresário que mora na cobertura. A única maneira de realmente enfrentar o problema da corrupção é reconhecer sua gravidade. Reconhecer que ele envolve não apenas o Estado e a classe política, mas parte considerável do sistema financeiro e do empresariado, assim como o cidadão comum, com diferença apenas de escala, não de natureza. A tentativa de amalgamar a ameaça em apenas um culpado é, na verdade, uma tentativa de encobrir o funcionamento podre de toda a máquina, dos indivíduos ao Estado, passando pelo mercado, há muitas e muitas décadas.

A ideia de que tirar este ou aquele partido do poder seria uma maneira de combater a corrupção é, na verdade, uma tentativa de deixar tudo como está, trocando apenas as peças, sem mexer nas engrenagens.

* Gilson Iannini é psicanalista, Doutor em Filosofia e Professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

domingo, 11 de janeiro de 2015

DRONE

Fonte da imagem: http://dronewarsuk.files.wordpress.com/2010/06/predator-firing-missile4.jpg




Não sei bem como funcionam essas coisas, porém imagino que alguém levanta de manhã no Afeganistão, onde está trabalhando, toma um bom banho, faz uma refeição reforçada com bacon, ovos e panquecas, escova os dentes e, após, se dirige a seu local de trabalho.

Nesse local, certamente refrigerado para manter a temperatura agradável, se acomoda à frente de um monitor e inicia o usual processo de comunicação para tomar conhecimento da missão do dia.

Recebida a missão, ajusta os procedimentos para decolagem do drone de sua responsabilidade, o qual responde suave e precisamente aos comandos, iniciando a operação.

Após algum tempo de voo, o nosso personagem observa que o veículo aéreo remotamente pilotado, por ele comandado, chega a uma área povoada.

Observa, então, que muitas pessoas, dentre as quais várias do sexo masculino, com grandes barbas e vestes típicas da região, se deslocam em direção a uma construção de tamanho relativamente grande.

Como é uma zona com suposta concentração de talibãs, relata o caso para a chefia e pede permissão para disparar mísseis.

Com a permissão concedida, já que é uma situação rotineira nesse local, efetivamente dispara os foguetes, que explodem precisamente, destruindo o alvo.

Na sequência comanda o retorno do veículo não tripulado para a base, o qual obedece com precisão aos comandos, pousando suavemente no local adequado.

Nosso personagem olha o relógio e vê que já se aproxima a hora do almoço (como o tempo passa rápido quando a gente se diverte!). Desliga o equipamento e se prepara psicologicamente para tomar o tradicional aperitivo antes de se dirigir ao refeitório.

No dia seguinte (1º de janeiro de 2015) aparece no jornal a notícia de que pelo menos 20 pessoas morreram e 45 ficaram feridas, a maioria mulheres e crianças, pelo impacto de um míssil durante a realização de um casamento na província de Helmand, no sul do Afeganistão, conforme divulgado pela agência EFE. (*)

Segundo outras informações não foi somente um míssil disparado, foram vários, e o resultado foram oito mulheres e doze crianças assassinadas e mais 62 pessoas feridas, algumas em estado grave.

Nosso personagem percebe, então, que terá que preencher novamente vários formulários, o que é, de fato, uma chatice.


-x-


São vários os relatos de ocorrências similares.

Em 2012 um sargento do exército dos EUA se armou até os dentes, tipo o personagem Rambo, e entrou na aldeia de Pnajwayi, também no Afeganistão, disparando em tudo o que se movesse. Matou 16 civis.

No Yemen, em 2013, convidados de um casamento estavam se dirigindo em comboio ao local do evento, e também foram alvo de foguetes disparados por um drone dos EUA, o que deixou várias vítimas fatais.

Etc.

Tais ocorrências foram divulgadas pela mídia mundial de forma parcimoniosa e discreta, muitas vezes tentando justificá-las como sendo efeitos colaterais não esperados porém inevitáveis.

Será que algumas vidas têm mais valor que outras?



(*) http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2015/01/01/missil-atinge-cerimonia-de-casamento-no-afeganistao-e-mata-20-pessoas.htm

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

La canción de los efectos vivificadores del dinero


Obra de Jacek Yerka

Bertolt Brecht

Por baja cosa cuenta el dinero en este mundo
Que resulta empero frío a falta de numerario.
Y puede trocar al pronto en harto hospitalario
Merced al gran poder del material dinerario.
Todo eran ecos de lamento vagabundo
Y ahora resplandece soleado
Lo que antes andaba congelado.
A cada quien, lo que desea.
De rosa el horizonte tintado
Mirad: ¡la chimenea, humea!

Sí, todo ahora se ve harto diferente
Late a pleno ritmo el corazón. Gana altura la mirada.
Abundante es la comida. Holgado el abrigo.
Y el hombre es ahora otro hombre.

¡Ah! Yerran todos
Cuantos creen que nada importa el dinero.
La fertilidad se hace yerma
Cuando el buen flujo se ciega.
Todos van tras algo, que toman do se halle
Mas no todo resultaba tan duro
Que quien no sufre el dentellazo del hambre, bien que se allana.
Todo está ahora desierto de corazón y de amor.
Padre, madre, hermanos: ¡todo es pugnaz!
Mirad: ¡ya no humea la chimenea!

Aire espeso por doquiera, que a nadie para nada contenta.
Todo rebosa odio, todo rebosa envidia.
Nadie quiere ser ya caballo, que todos se pretenden jinete.
Y el mundo es un mundo frío.

Así ocurre con todo lo bueno y grande
Que no tarda en atrofiarse en este mundo.
Pues con estómago vacío y pies
Desnudos nadie está para grandezas.
No se quiere lo bueno, sino dinero
Y todo cobra un porte pusilánime.
No bien tiene el bueno algo de dinero
Tiene lo que precisa para ser bueno
Quien ya preparaba una atrocidad
Observa: ¡la chimenea, humea!

Sí, vuelve a creerse en el género humano
Noble es el hombre, y bueno y todo eso.
Prosperan las buenas intenciones, que andaban flojas.
Se afirma el corazón. Se ensancha la mirada.
Se reconoce lo que es caballo y lo que es jinete.
Y solo así consigue el derecho volver a ser derecho.

NB/ Hanns Eisler puso música a esta canción de su amigo Bertolt Brecht. La mejor versión cantada es la de la gran actriz brechtiana Gisela May –entrañable amiga y compañera sentimental del filósofo marxista disidente Wolfgang Harich—: https://www.youtube.com/watch?v=SFmnMCANTB8

Traducción para www.sinpermiso.info: Antoni Domènech

Sinpermiso electrónico se ofrece semanalmente de forma gratuita. No recibe ningún tipo de subvención
pública ni privada, y su existencia sólo es posible gracias al trabajo voluntario de sus colaboradores y a las
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domingo, 4 de janeiro de 2015

DÉJÀ VU NO RS




Desenho de Maurits Cornelis Escher


Déjà vu é um galicismo que descreve a reação psicológica da transmissão de ideias de que já se esteve naquele lugar antes, já se viu aquelas pessoas, ou outro elemento externo.  O termo é uma expressão da língua francesa que significa, literalmente, "Já visto". (Wikipedia)


A sensação de repetição que fica, para quem acompanha a transição de um Governo para outro, no Estado do RS, neste final do ano 2014 e início de 2015, é bastante forte.

É considerado normal que novos governantes questionem, muitas vezes de forma ríspida, beirando a deselegância, a gestão anterior, principalmente se não ocorreu um processo de continuidade, ou seja, se os novos governantes eleitos exerceram oposição ao governo anterior.

Já ocorreram situações em que os governantes que estavam saindo literalmente fugiram da cerimônia da passagem de poder.

Também é considerado aceitável, em algumas situações, que ocorram fortes divergências de avaliação a respeito do estado atual do Governo, entre os governantes que saem e os que entram.

Por outro lado, em alguns casos, essas diferenças de pontos de vista são enormes.

O Governo que sai muitas vezes jura que está deixando para trás uma situação confortável para quem está entrando.

O Governo que entra, por sua vez, quando não é de continuidade, constata que a situação encontrada é ruim, principalmente em relação às finanças, insuportavelmente deficitárias.

No caso da transição atual, o Governo que está entrando adotou a postura de que a situação financeira está caótica, próxima da insolvência.

Não existem recursos para pagamento dos fornecedores e para continuidade de investimentos em andamento, salvo poucas exceções, e se corre grande risco de faltar recursos financeiros para o pagamento dos salários do funcionalismo.

Ou seja, o Governo do RS, segundo os governantes que entram, encontra-se à beira da catástrofe e com um pé já dentro.

Não se diz claramente, porém se induz o pensamento, com apoio da mídia, de que essa situação catastrófica é fruto de desmandos da gestão anterior.

A continuidade dessa lógica no tempo é clara: o caos cada vez aumenta, todos ficam desesperados e o Governo chega à conclusão de que a única solução viável para salvar o Estado, não mais o Governo, é a venda de patrimônio público.

E, assim, é lógico cogitar a venda de várias organizações, como é o caso do Banrisul, CEEE, Corsan (é grande o apetite pela privatização da água), CRM, SULGAS, etc.

A grande mídia, sócia e interessada nessa matéria, martela sistematicamente essa ideia, procurando torná-la aceitável para setores amplos da população.

No final surge o Governador, emocionado, não permitindo o absurdo de todas essas privatizações. Somente permitirá aquelas absolutamente necessárias para a salvação da República Riograndense. Banrisul e Corsan, por exemplo.

O povo suspira, aliviado.

Esse parece ser um roteiro que está sendo colocado em prática.

O que chama a atenção para alguém que não está de posse das informações dos bastidores, é que os governantes que terminaram a gestão em 2014 parecem estar conformados com essa situação.

Obviamente que não estão, porém parecem estar, às vezes.

Por exemplo, como já citado anteriormente, existe um verdadeiro abismo entre a percepção de como o Governo anterior deixou a administração do Estado, comparando com a percepção que está sendo martelada pelos novos governantes do aparentemente estado caótico com que receberam o Governo.

Ressalte-se novamente que os novos governantes têm o apoio firme da "grande mídia" para divulgar seus pontos de vista de terra arrasada, pois parecem existir vários interesses em comum entre os atuais governantes e os proprietários dos meios de comunicação.

Seria de se esperar um grande esforço de divulgação, por parte dos governantes que saíram e seus apoiadores, das enormes discrepâncias entre a realidade dos fatos e a versão que está sendo tornada pública, se essas discrepâncias realmente existem, e parece que existem.

O que se vê são pronunciamentos isolados, algumas vezes quase em tom de desculpa, procurando apresentar de forma tímida as divergências de dados e de avaliação.

Claro, todas essas observações são de alguém que não detêm a totalidade das informações.

Pode ser que existam explicações para tudo, tendo em vista o reconhecido brilhantismo intelectual dos envolvidos.

Porém como já dizia Carl Sagan, "o brilhantismo intelectual não é garantia contra... estar errado".