segunda-feira, 13 de agosto de 2012

A FAXINA ÉTNICA

Obra de Debret: um funcionário público sai a passeio com sua família.












Preconceito racial e racismo institucional no Brasil

por Márcia Pereira Leite
“Na primeira vez em que estive aqui, em 1987, fiquei chocado ao ver que na TV, em revistas, não havia negros. Melhorou um pouco. Mas há muito a fazer. Quem nunca veio ao Brasil e vê a TV brasileira via satélite vai pensar que todos os brasileiros são loiros de olhos azuis.” (Spike Lee)1

O comentário do cineasta norte-americano Spike Lee, em recente visita ao Brasil para filmagem do documentário Go Brazil Go, no mesmo período em que o Supremo Tribunal Federal (STF) julgava a constitucionalidade das cotas raciais em universidades públicas, despertou várias discussões na imprensa e nas redes sociais sobre o racismo na sociedade brasileira. Desses debates, é possível depreender quanto ainda persiste do mito de que o Brasil seria uma “democracia racial” em que, a despeito do preconceito, não haveria nem o ódio nem a segregação que caracterizaram o regime do apartheid. Nosso racismo combinaria o preconceito de cor e o preconceito de classe, diluindo-se no caso de negros educados e bem-sucedidos e implodindo no samba, no carnaval, enfim, na cultura popular brasileira.

Queremos chamar a atenção para o que ficou ausente nesse (e em outros) debate sobre o racismo no Brasil: os mecanismos de discriminação produzidos e operados pelas estruturas e instituições públicas e privadas que os reproduzem e os fortalecem. Nesta reflexão, propomos seguir o giro da ciência social, nos anos 1960, em sua análise das relações raciais: “Abandonar os esquemas interpretativos que tomam as desigualdades raciais como produtos de ações (discriminações) inspiradas por atitudes (preconceitos) individuais, para fixar-se no esquema interpretativo que ficou conhecido como racismo institucional, ou seja, na proposição de que há mecanismos de discriminação inscritos na operação do sistema social e que funcionam, até certo ponto, à revelia dos indivíduos”.2

O racismo constitui, como se sabe, um mecanismo fundamental de poder utilizado historicamente para separar e dominar classes, raças, povos e etnias. Seu desenvolvimento moderno se deu com a colonização, com o genocídio colonizador. O racismo é, como disse Foucault, “o meio de introduzir [...] um corte entre o que deve viver e o que deve morrer”. “No contínuo biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação das raças como boas e de outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo do biológico de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos em relação aos outros. [...] o racismo faz justamente funcionar, faz atuar essa relação de tipo guerreiro − ‘se você quer viver, é preciso que o outro morra’ − de uma maneira que é inteiramente nova e que, precisamente, é compatível com o exercício do biopoder.”3

Para o autor, “a especificidade do racismo moderno, o que faz sua especificidade, não está ligada a mentalidades, a ideologias, a mentiras do poder. Está ligada à técnica do poder, à tecnologia do poder”,4 isto é, ao biopoder enquanto um poder (estatal) de regulamentação que se exerce sobre populações e consiste em “fazer viver e deixar morrer”.

Racismo institucional no Brasil

O argumento central deste artigo consiste em que, no Brasil, negros sofrem não só a discriminação racial devida ao preconceito racial e operada no plano privado, mas também e sobretudo o racismo institucional, que inspira as políticas estatais que lhes são dirigidas e se materializa nelas. Trata-se de discriminação racial praticada pelo Estado ao atuar de forma diferenciada em relação a esses segmentos populacionais, introduzindo em nossas cidades e em nossa sociedade, pela via das políticas públicas, “um corte entre o que deve viver e o que deve morrer”, a faxina étnica.

A expressão, utilizada para evidenciar as relações entre o racismo e as políticas estatais para territórios e populações negras no Brasil, não é mera retórica. Antes, sustenta que as elevadas taxas de homicídio e de “autos de resistência”5 nos territórios de maioria negra, as políticas de remoção e de despejo de sua população, os altos índices de encarceramento de negros pobres, a precariedade das políticas públicas de habitação, saúde e educação para o conjunto da população negra e o desrespeito a suas tradições culturais e religiosas não são sucessivos produtos do acaso ou do mau funcionamento do Estado,6 mas traduzem o racismo institucional que opera no Brasil bem ao largo de qualquer perspectiva de integração social e urbana desses segmentos populacionais pela via da cidadania.

Esse modo específico de gestão estatal das populações negras e de seus territórios de moradia − que “faz viver e deixa morrer”, como diz Foucault − pode ser identificado no âmbito das políticas públicas praticadas pelo Estado brasileiro.

Examinemos alguns dados empíricos que expressam o sentido e o escopo de sua formulação e de sua realização.

Os negros são as maiores vítimas de homicídio. No período de 2002 a 2008, segundo dados do Mapa da violência 2011,7 o número de vítimas brancas na população brasileira diminuiu 22,3%; já entre os negros, o número de vítimas de homicídio aumentou 20,2%. Os dados são mais dramáticos quando se consideram os jovens: o número de homicídios de jovens brancos caiu, no período, 30%, enquanto o de jovens negros cresceu 13%, o que significa que a brecha de mortalidade entre brancos e negros cresceu 43%. Se considerarmos os homicídios praticados pelas forças policiais e registrados/encobertos pelos “autos de resistência”, vemos que eles também vitimam mais intensamente os negros: de 2001 a 2007, incidiram sobre esse segmento 61,7% dos homicídios praticados por agentes do Estado.8 Não se trata simplesmente de abuso policial ou de despreparo de policiais em situações de confronto. A consistência dos dados e sua persistência no período, em que pese a redução desses homicídios nos últimos anos em algumas grandes cidades brasileiras, como Rio de Janeiro e São Paulo,9 indicam uma política de extermínio de negros (jovens, sobretudo) − o “fazer morrer” − praticada pelo Estado, por meio de seus agentes, ou por ele tolerada.10
Mas, como vimos, a tecnologia do poder também “faz viver”, ainda que em distintas condições para esses diferentes segmentos populacionais, brancos e negros. É o que demonstra uma pesquisa realizada em 2003 pelo Ministério da Saúde,11 que revelou indicadores de saúde diferenciados da população brasileira segundo o critério raça/cor. Analisando seus resultados, Meireles12 destaca que 62% das mulheres brancas ouvidas realizaram sete ou mais consultas de pré-natal, enquanto somente 37% das mulheres negras passaram pelo mesmo número de consultas. Talvez por isso a hipertensão arterial durante a gravidez, uma das principais causas de morte materna, tenha sido mais frequente entre as mulheres negras. Além disso, o risco de uma criança negra morrer antes de completar 5 anos por causas infecciosas e parasitárias é 60% maior do que o risco de uma criança branca falecer pela mesma razão, enquanto o risco de morte por desnutrição é 90% maior entre crianças negras do que entre as brancas.

Já os dados do Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil, 2009-2010, demonstram que os negros representam cerca de 60% daqueles que, por motivos diversos, não conseguem atendimento no SUS, sendo os maiores percentuais os relativos às mulheres negras − o que, sem dúvida, argumenta o autor, evidencia a precariedade do dispositivo constitucional que assegura a universalidade do direito à saúde no país.

No plano da educação, todas as pesquisas apontam que, ainda que o acesso tenha crescido no país nos últimos anos, a presença dos negros no ensino médio, universitário e na pós-graduação permanece significativamente menor do que a dos brancos – diferença que se torna exponencial nos níveis superiores de formação. A razão, ressaltam, é clara: enquanto os brancos recorrem a escolas particulares (sabidamente, no Brasil, de melhor qualidade) no ensino fundamental e médio e, assim, obtêm melhor formação intelectual para ingresso nas universidades públicas, aos negros restam as escolas públicas (crescentemente sucateadas) nos níveis fundamental e médio e o caminho das universidades privadas. Mesmo com essa estratégia, também no campo da educação as desigualdades raciais são gritantes: em 2008, a probabilidade de um jovem branco, de 18 a 24 anos, frequentar uma instituição de ensino superior era 97,8% maior do que a de uma jovem negra da mesma faixa etária.13

No plano da moradia, os indicadores sociais revelam a mesma diferenciação no interior das políticas públicas, ou como o Estado “faz viver” esses contingentes populacionais. Os territórios de maioria negra nas cidades (favelas, loteamentos, bairros pobres e periferias) são carentes de equipamentos urbanos e serviços públicos de boa qualidade. O déficit habitacional brasileiro (cerca de 5,5 milhões de unidades) é fruto da ausência de uma política estatal de habitação popular, o que resultou na precariedade que caracteriza as atuais condições de moradia e vida nessas localidades.14

Além disso, em várias de nossas grandes cidades que vêm sendo reestruturadas para favorecer a especulação imobiliária e/ou sediar “grandes eventos” e assim se inserir nos fluxos internacionais de acumulação urbana, essas populações têm sido compulsoriamente removidas das localidades em que sempre viveram, criaram seus laços de vizinhança e parentesco, suas alternativas de sobrevivência (em trabalhos formais, pequenos comércios ou “virações”).15 São, então, reassentadas em locais distantes, ambientalmente precários,16 com infraestrutura urbana de má qualidade, sem redes de sociabilidade nem alternativas de trabalho; enfim, sem lugar na sociedade, sem direito à cidade.

Muito além do preconceito

Os dados analisados e as situações descritas revelam quanto as desigualdades sociais têm cor e estão profundamente enraizadas no racismo institucional que estrutura a sociedade brasileira e se materializa por meio das políticas praticadas pelo Estado, em todos os seus níveis. O que queremos sublinhar ao discuti-los é que, no Brasil, as desigualdades sociais se somam e são elevadas pelas desigualdades raciais. Mais do que isso: as desigualdades raciais estão no cerne do modo de gestão estatal dos territórios de maioria negra e desta população.

Trata-se de um novo modo de gestão estatal de territórios e de populações, que dispensa os tradicionais discursos e práticas de integração à sociedade nacional pela via da cidadania (da educação, do trabalho e dos direitos) por entender que essas populações são desnecessárias ao atual desenvolvimento do capitalismo.
Vivemos, hoje, uma mudança no eixo da atuação do Estado, cujo sentido passou a ser – simplesmente – evitar que essas populações negras, pobres e moradoras em territórios de favelas, loteamentos, bairros pobres e periferias produzam problemas para a ordem social. Suas estratégias combinam, desde então, diferentes políticas e mecanismos de controle social repressivo (até o “deixar morrer”) com políticas de mera inserção17/mínima sobrevivência (o “fazer viver”), travestidas, no plano discursivo, de integração à cidadania e à sociedade.
No primeiro caso, especialmente nas situações em que a criminalização da pobreza tem sido mais eficiente, o Estado atua promovendo ou acobertando a segregação socioespacial e as políticas de extermínio e de encarceramento, sobretudo de jovens negros. No segundo, atuando nos territórios de maioria negra, o Estado oferece a essas populações uma ilusão de integração por meio de políticas públicas que há muito abandonaram os princípios da universalidade e da justiça (são pontuais, descontinuadas; os serviços e equipamentos que criam são de má qualidade) ou patrocinando projetos sociais realizados por organizações não governamentais que seguem a mesma lógica, além de criminalizar sua clientela, entendida como “população vulnerável ao crime”. Em ambos os casos, o racismo institucional soma-se às desigualdades sociais, raciais e urbanas que historicamente estruturaram nosso país, aprofundando-as e revelando que estamos muito longe da “diluição” dessas desigualdades e da possibilidade de uma efetiva integração social e urbana dos negros pobres na sociedade brasileira.

Márcia Pereira Leite

Professora associada da Uerj, pesquisadora do CNPq, membro do Círculo Palmarino/Rio de Janeiro e do Conselho Deliberativo da Fase

Veja as fontes citadas AQUI.

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