sábado, 11 de junho de 2011

Qual é a graça?

É tênue a linha que separa certas crenças irrefletidas do ódio que leva sionistas a matar de fome crianças palestinas, neoconservadores a ridicularizar todo sujeito que não se encaixe no protótipo do macho moderno e intelectuais orgânicos da velha direita brasileira a desqualificar todo interlocutor que não cheire à tradição, família e propriedade.

Em artigo recentemente publicado nesta Carta Maior (“Os palestinos entendem Kadafi melhor do que nós”, 17/03/2011), Robert Fisk chama nossa atenção para comportamento que representa “tendência crescente e muito cruel no pensamento da direita israelense”.

Segundo o jornalista inglês, Michael Bernstam, membro da Hoover Institution, da prestigiada Universidade de Stanford, teria publicado, há algumas semanas, na revista estadunidense American Commentary, artigo denunciando o que alcunhou de “caldo de cultivo para o terrorismo internacional”.

Conforme Bernstam, o Organismo de Socorro e Obras Públicas das Nações Unidas (UNRWA - United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees in the Near East, na sigla em inglês), agência que desde os anos 60 ocupa-se da ajuda humanitária a refugiados palestinos, teria criado “refugiados de guerra permanentes” ao fazer desaparecer, através do fornecimento de auxílio-desemprego, os incentivos ao trabalho e ao investimento. Velha ladainha liberal sustentada, de um lado, pelo “laissez-faire” e, de outro, pelo voluntarismo do “self made man”, o argumento de Bernstam supõe que a vontade livre e irresoluta do “homo economicus”, mola-mestra da economia, e o interesse pessoal esclarecido são condições suficientes para que sujeitos empreendam e, desse modo, economia e sociedade evoluam. Incentivos públicos ou privados, portanto, seriam obstáculos ao desenvolvimento, pois tudo o que não é útil não pode ser bom.

Tese de rara selvageria especulativa, esse fatalismo reducionista sustenta que determinadas pessoas preferem viver sob lonas porque é a “condição de refugiado sem limite de tempo” que lhes “põe o pão na mesa, garante a casa sem pagar aluguel, além de um conjunto de serviços gratuitos” e, de quebra, torna-os indolentes. Donde, como “cabeça vazia é ofício do diabo”, ser nesses acampamentos que está, ainda segundo Bernstam, “a garantia de continuidade de um ciclo palestino autônomo destrutivo de violência, de derramamento de sangue fratricida e de uma guerra perpétua contra Israel”.

Ou seja, é a ONU a responsável, em última instância, pelo terrorismo de fundamentalistas palestinos, pois é nos acampamentos de refugiados por ela atendidos - “caldo de cultivo para o terrorismo internacional” - que ele se reproduz e se mantém, e isso graças às migalhas a eles distribuídas pela comunidade internacional.

A teoria de Bernstam não consegue dar conta, porém, da existência do sionismo, uma vez que em Israel estão ausentes as condições necessárias para a formação do caldo de cultivo para seu terrorismo ultranacionalista; sionistas não estão acampados, sob sol e chuva, em barracas miseráveis, vivendo à custa de auxílio-desemprego, o que os tornaria indolentes e, por conseguinte, justificaria toda violência física e moral que diariamente despejam sobre os palestinos. Nada como psicologia barata para se explicar a inconsciente tendência sionista de, pela força, invadir e tomar territórios alheios, isolá-los do restante do mundo e matar crianças de fome pelo bloqueio econômico a eles imposto. Como se vê, a solução para a Palestina Ocupada não passa pelo diálogo e nem pela mediação internacional, mas sim pelo estímulo ao trabalho e ao investimento através do cancelamento do auxílio financeiro internacional aos refugiados palestinos. Se disso não se seguir a paz e o desenvolvimento – na medida em que você pode empreender, produzir e gerar empregos em acampamentos - ao menos todos eles morrerão de fome.

Tendência semelhante e não menos cruel pode ser verificada no pensamento da direita brasileira reacionária. A “intelligentsia” de sua elite, perspicaz a ponto de deixar a cargo de seus leões-de-chácara intelectuais o tratamento de questões impopulares tal como o racismo e a homofobia (1) , tem dois alvos principais, sobre os quais não costuma tergiversar.

Recentemente, promotores de justiça gaúchos fizeram questão de deixar isso claro. Ricardo de Oliveira Silva, que atuou como assessor parlamentar de Simone Mariano da Rocha, Procuradora-Geral de Justiça no governo tucano de Yeda Crusius (2007/2010), Benhur Biancon Jr., ex-assessor de Carlos Otaviano Brenner de Moraes – que ocupou as pastas de Transparência e Meio Ambiente nesse mesmo governo - na Associação do Ministério Público e ex-Chefe de Gabinete da então Procuradora, e Luis Felipe de Aguiar Tesheiner, ex-chefe do Núcleo de Inteligência do Ministério Público, foram responsáveis pelo Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) proibindo as escolas itinerantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) no Rio Grande do Sul (RS). Já Biancon Jr. e Tesheiner assinaram, em 2008, a Ação Civil Pública contra o MST que acabou ganhando repercussão nacional e internacional pelo estilo “Guerra Fria” adotado contra o Movimento.

Segundo a referida Ação, os acampamentos Jandir e Serraria, no interior do RS, eram “verdadeiras bases operacionais destinadas à prática de crimes e ilícitos civis causadores de enormes prejuízos não apenas aos proprietários da Fazenda Coqueiros, mas a toda sociedade”. A Ação, que se baseou em um “trabalho de inteligência” composto, na sua maioria, por matérias de jornais, relatórios do serviço secreto da Brigada Militar e livros e cartilhas apreendidas em acampamentos do MST, definiu o Movimento como uma “ameaça à sociedade e à própria segurança nacional” em franca “estratégia confrontacional” com o Estado. Nesta época, comentou então o jornalista gaúcho Marco Weissheimer, “um documento do Conselho Superior do Ministério Público chegou a propor a extinção do MST, iniciativa que não prosperou em virtude da forte reação que surgiu contra ela”. Gilberto Thums, atual Coordenador-Geral da Procuradoria de Justiça Criminal do Ministério Público gaúcho, por sua vez, considera o MST um movimento “fora-da-lei”.

Esse tipo de paranoia ganha força quando nos damos conta que se trata da consequência, e não de causa, de uma predisposição discursiva dessa “intelligentsia”, em regra reproduzida irrefletidamente também, e infelizmente, por parcela de nossa classe média. A hoje senadora "progressista" Ana Amélia Lemos a ilustrou ao comentar a hipótese de revisão dos índices de produtividade rural discutida ainda no governo Lula (2003/2010). “O problema não é a produtividade – sentenciou a então comentarista política do Grupo RBS -, mas sim a interferência do Estado na liberdade do produtor, que pode perder a terra, sob esse manto legal. Breve, o governo poderá tentar resolver o déficit habitacional desapropriando campos de golfe e casas de praia que não cumprem função social”.

Dito de outro modo, pouco importa se o proprietário rural produz ou não de acordo com índices estipulados como razoáveis para que seja cumprido aquilo que nossa Constituição Federal chama de “função social da terra”, uma vez que “a questão é a interferência do Estado na liberdade do produtor, que pode perder a terra, sob esse manto legal“. O direito individual de propriedade – e de se dispor absolutamente mesmo de um bem de interesse público –, por conseguinte, é tratado pelo pensamento pré-colonial (2) de Ana Amélia Lemos como um direito acima dos sociais e coletivos.

Esses intelectuais orgânicos, todavia, não representariam adequadamente a parcela medieval de nossa sociedade se não fossem, também, críticos ferrenhos da mobilidade social de sua base. Todas as políticas públicas afirmativas – de inclusão social e distribuição de renda, como as cotas raciais em universidades públicas e o bolsa-família, p. ex. - postas em prática no governo Lula foram sistematicamente desqualificadas pelos bobos da corte de plantão, a despeito de terem promovido, a olhos vistos e com reconhecimento internacional, a maior distribuição de renda e de dignidade de nossa história.

Nem mesmo o equilíbrio entre desenvolvimento e poder aquisitivo, promovido pela associação entre tais ações afirmativas e as políticas monetária, fiscal e cambial postas em prática nos últimos oito anos – até então mera utopia tucana -, escapou dos menestréis do servilismo; em recente episódio de repercussão nacional, ex-comentarista do Grupo RBS (grupo de empresas que, ao arrepio da legislação em vigor, monopoliza a comunicação nos estados do RS e SC) em Santa Catarina viu como causa do aumento do número de acidentes de trânsito em seu estado o ganho aquisitivo das classes C e D, promovido pelo governo Lula – “Este governo espúrio permitiu que qualquer miserável tivesse um carro”, foram suas palavras. Como se sabe, lugar das classes C e D, como certa feita defendeu preconceituoso cronista do Grupo RBS famoso no bairro Azenha, em Porto Alegre, ao comentar a possibilidade de se discutir publicamente projetos para o trecho do porto fluvial da capital gaúcha conhecido como Cais Mauá, é em “shoppings populares”. O referido Cais, sustentou, “há que ser da nata, da classe A”. Só assim, complementou, “os menos favorecidos” teriam “onde trabalhar e onde flanar, que eles flanam”, referindo-se à atividade de cuidar de carros estacionados na rua exercida por pessoas popularmente conhecidas como “flanelinhas”.

Em matéria de mobilidade social, porém, nada provocou mais a ira dos abutres da miséria alheia do que o “bolsa-família”. E, nesse sentido, qualquer semelhança entre seus argumentos e o de Michael Bernstam não é mera coincidência. A única diferença é que o Governo Federal brasileiro, ao fazer desaparecer, através do fornecimento do referido auxílio, os incentivos ao trabalho e ao investimento, criou não “refugiados de guerra permanentes”, mas uma massa de vagabundos permanentes, condição que lhes “põe o pão na mesa, garante a casa sem pagar aluguel, além de um conjunto de serviços gratuitos”. Donde, por conseguinte, um acampamento do MST, por analogia, não passar de “caldo de cultivo” para a “prática de crimes e ilícitos civis causadores de enormes prejuízos” à toda sociedade”. Nada mais sensato, então, em sintonia com a política externa sionista para a Palestina Ocupada e os refugiados que ela gerou, do que postular a extinção dessas “bases operacionais”, verdadeira “ameaça à sociedade e à própria segurança nacional” em franca “estratégia confrontacional” com o Estado.

Não há diferença substancial entre a intolerância de Michael Bernstam, dos referidos promotores gaúchos, da senadora integrante da bancada ruralista, dos funcionários do Grupo RBS e dos supostos humoristas. Embora quase não possamos distinguir a essência de seus argumentos, tratá-los como mero preconceito de classe seria, na melhor das hipóteses, um cavalheiresco reducionionismo. É mais do que isso; trata-se do caldo de cultivo do ódio fascista que desconhece a humanidade do outro.

Não sei exatamente quando a apologia à violência contra a mulher e o machismo viraram humor, quando a homofobia e o racismo transformaram-se em argumentos e, muito menos, quando a insensibilidade histórica tornou-se algo engraçado. Sei, todavia, que é tênue a linha que separa certas crenças irrefletidas do ódio que leva sionistas a matar de fome crianças palestinas, neoconservadores a ridicularizar todo sujeito de razão que não se encaixe no protótipo do macho moderno – heterossexuais hedonistas metidos a engraçadinhos com suas eternas barbas por fazer, cujo narcisismo niilista asséptico é a própria negação da política e do debate público qualificado como espaço necessário à sua efetivação - e intelectuais orgânicos da velha direita brasileira a desqualificar todo interlocutor que não cheire à tradição, família e propriedade.

NOTAS

(1) Cf., p. ex., os recentes casos de racismo e de homofobia envolvendo o deputado federal progressista Jair Bolsonaro (RJ), a ameaça de processo à blogueira Lola Aronovich por parte de um certo humorista chamado Marcelo Tas, que a acusa de tê-lo caluniado e difamado ao supostamente chamá-lo de misógino, o caso de machismo e de apologia à violência contra a mulher protagonizado pelo humorista conhecido como Rafinha Bastos, que segundo a referida blogueira teria defendido “com todos os dentes piada de estupro (é um favor uma mulher feia ser estuprada, estuprador merece um abraço etc)”, o caso de insensibilidade histórica protagonizado pelo também humorista Danilo Gentili, que teria escrito em seu twitter, ainda segundo Aronovich, que entendia porque os judeus do bairro paulistano de Higienópolis seriam contra a construção do metrô em seu bairro, pois “da última vez que entraram num vagão, foram parar em Auschwitz”, assim como, também, os recentes casos de mobilização de variadas correntes protestantes e de católicos contra decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que equiparou a união de casais homoafetivos à figura civil da União Estável.

(2) O pensamento da senadora gaúcha é pré-colonial porque, como nos ensina Raimundo Faoro, “(…) vibra, nas normas jurídicas que orientaram a distribuição do solo aos colonos, a velha lei consolidatória de D. Fernando I (provavelmente 1375), lei de transação entre a burguesia rural e a aristocracia agrária, não aplicada no tempo, mas incorporados seus princípios nas Ordenações Alfonsinas, Manoelinas e Filipinas. A feição mais importante do instituto – a reversão da terra não cultivada à Coroa – conservou-se graças à revolução de Avis, com o perfil de predomínio da coisa pública – dos fins e objetivos públicos – sobre a ordem particular. A terra se desprende, desde o século XIV, de seu caráter de domínio, adstrito ao proprietário, para se consagrar à agricultura e ao povoamento, empresas promovidas pelo rei a despeito da concepção de propriedade como prolongamento da pessoa, da família ou da estirpe (…)“ (Raimundo Faoro. Os Donos do Poder – Formação do patronato político brasileiro. Vol. 1, Capítulo IV, p. 140). Ou seja, a manutenção da sesmaria recebida pelos então colonos estava condicionada ao seu aproveitamento, quadro jurídico assegurado pelas Ordenações, Direito então vigente na Colônia. Havia, portanto, uma noção de função social e de utilidade da terra mesmo entre nossos colonizadores. Ana Amélia Lemos consegue, na defesa dos proprietários rurais, ser mais atrasada socialmente do que se era há 500 anos. Daí sua defesa da propriedade absoluta, sem função social alguma, ser um pensamento pré-colonial.

* Mestrando em filosofia. Mantém o blog www.laviejabruja.blogspot.com

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